Uwe Stelbrink
O TROPEÇÃO DO PRIMEIRO BAILARINO
“A meu ver, de facto, estamos a caminho de entender, também numa base ampla da sociedade, que um país da nossa dimensão, orientado para o comércio externo e por conseguinte dependente desse comércio externo, também precisa de saber que, na dúvida, em caso de necessidade, terá necessariamente de agir com operações militares para salvaguarda dos nossos interesses, por exemplo, para garantir rotas comerciais livres, para evitar, por exemplo, instabilidades regionais, as quais teriam certamente um impacto negativo nas nossas oportunidades de manter os postos de trabalho e os rendimentos através do comércio."
Horst Köhler
Temos agora quatro semanas para nos confrontarmos com a simples verdade de que, para a nossa vida do dia-a-dia, é completamente irrelevante se esta república alemã é dirigida por um Presidente ou não. A azáfama política que começou oficialmente no dia 31 de Maio às 14h15, a qual contudo na realidade começou ao meio dia – o Bundeshotte realizou ainda, a expensas da presidência do Estado, uma ronda de telefonemas com todos os “organismos constitucionais” antes de atirar ao estilhaço um par de estilhaços lidos – mostra que a elite do poder tem outra perspectiva: para manter a ilusão ideológica de um Estado funcionalmente capaz, a seus olhos é preciso obviamente uma figura de proa, um primeiro bailarino que demonstre pelo seu modo de vida a auto-valorização do valor como dia-a-dia normal, como alegre virtude burguesa nunca questionada. É neste sentido que Horst Köhler pretende ser um “Presidente do Povo”, ou seja, quase a “média de toda a população alemã”. Quem não quer alinhar pela mediocridade de Köhler (sua sintaxe muitas vezes irritante não se deve certamente a Adorno) já há muito que não faz parte da ronda de amigos, amigos estes a quem o ex-presidente fala ao coração ou ao estômago, o que para a rodada significa praticamente a mesma coisa. Alinha assim dignamente na tradição dos seus antecessores, os quais, salvo raras excepções, nunca tiraram muitas lições da história alemã, faziam discursos empolgantes ou deixavam os negros ao critério dos cuidados sociais alemães. É verdade que Köhler, ao contrário de Lübke, dominava o “pc”, mas também ele foi movido para África, de certo modo foi até a um velho local do crime, pois, enquanto Director do FMI e no fiel cumprimento das necessidades expansionistas do capital mundial, ajudou a estabelecer uma situação que ele agora, com retórica gasta, acreditaria poder alimentar ainda um pouco, no campo da valorização que se esgota. No seu tom populista que, no caso, com toda a certeza lhe vem do fundo do coração e do abdómen profundo, este escolhido como bandeira do projecto neoliberal transforma-se em tribuno popular da mudança, o qual ultimamente, acusando os bancos de serem os culpados pelo crash do mercado financeiro especulativo, poderia ter-se tornado membro legítimo de uma esquerda alemã que apresenta propostas de melhoria para a gestão da crise, como outrora já fizera na ATTAC o convertido ao comunismo primordial Heiner Geisler. E assim poderia Horst Köhler, suportado pela anuência dos amigos das rodadas alemãs, ficar no seu gabinete, secretamente ostracizado por todos aqueles que a seu tempo o nomearam e deixando-se ridicularizar pela indústria dos média. Mas não o fez.
Em vez disso, a sua alma transborda de aspiração pela saída – e transbordou-lhe num avião sobrevoando o Afeganistão e em directo para a emissora alemã “Kultur”. Impressionado com o espírito de luta dos nossos voluntários mal assegurados no Hindu Kuch, tentou dar-lhes apoio, bem como conseguir o apoio do povo para doutrinas militares há muito estabelecidas no livro branco das forças armadas federais. E deu expressão à verdade, verdade conhecida entre a elite, mas que contudo não se pode expressar, tal como não se podia chamar Rumpelstilzchen pelo nome: Para os interesses de valorização do capital, especialmente do capital alemão, pode-se “na dúvida, em caso de necessidade” utilizar uma “operação militar”, ou seja, travar uma guerra. E a fim de também receber aplauso dos amigos do costume: para “manter os postos de trabalho e os rendimentos através do comércio”. Perturbadas, as elites primeiro silenciaram, contudo, dias mais tarde, alinhavam pelo diapasão das opiniões fabricadas, truncando o falacioso discurso do Chefe do Estado (a meia frase demasiado popular acima citada, foi omitida), para dele dizerem mais tarde que se tratou de um mal entendido embaraçoso. O Presidente terá falado do Afeganistão, pelo facto de se encontrar sobre o Afeganistão no momento da sua imparável torrente de verdade. Pois aí defendia-se a liberdade em geral e no Corno de África, por acção da ATALANTA, a liberdade de comércio externo internacional. Como se em última instância não fosse realmente mesmo isso, o que se deveria ler nas entrelinhas das suas polémicas declarações. A ex-presidência federal do ex-presidente federal declarou às pressas que “foi exactamente assim que o Horst quis dizer!” Todavia já era demasiado tarde. Representantes do povo – que já ouviram declarações como esta, que o presidente terá proferido e com o mesmo objectivo, aquando da guerra da fragmentação da Jugoslávia, cuja missão se enquadraria num objectivo de impedir uma catástrofe humanitária ou mesmo um segundo Auschwitz – acusam-no de usar uma diplomacia de canhoneira. E de outras afirmações possivelmente inconstitucionais. O que, para o guardião supremo da Constituição, ainda faz sentir mais tais justificações como total falta de respeito (justificações desnecessárias, já que o art. 26º da Lei Fundamental estabelece claramente: “São inconstitucionais e, como tais, devem ser punidas todas as missões levadas a efeito com intenções perturbadoras de uma coexistência pacífica entre os Povos, especialmente aquelas que visam a preparação de uma guerra de agressão”).
Seria este um motivo suficiente para a renúncia de um Presidente? O Guardião da Lei Fundamental como o desmantelador da mesma? Nem tanto. É, então, ilegítima a razão de base de todo o orgulho da República Alemã. E o que diz mais a “Lei Fundamental” sobre o assunto? “Esta Lei Fundamental, que, após concretizada a unidade e a liberdade da Alemanha, se aplica a todo o povo alemão, perderá a sua validade no dia em que entre em vigor uma Constituição validada por todo o povo alemão por livre vontade” (Artº.146º). Em vez disso, representantes eleitos por esse mesmo povo decidiram, por livre vontade e unilateralmente, que, afinal, a Lei Fundamental não é para ser levada tão a sério.
Não, o vulnerável sentiu-se magoado porque os seus entronizadores lhe fizeram sentir que a opinião pública arranhou seu verniz ou, como diz o povo, fizeram-no estrebuchar (ou deixaram-no pendurado, como ainda mais certeiramente diz o povo).
E a sua Eva Luise deve ter-lhe dito: Horst, querido, nós não temos que passar por isto. E o que Eva Luise diz é lei. E a verdade é que ela está certa. E assim o inconcebível aconteceu. Horst surgiu perante câmaras e microfones e leu: “Venho por este meio renunciar ao meu mandato como Presidente” e da página seguinte leu corajosamente, acentuando a surpresa: “Com efeito imediato”
Um outro alemão completamente diferente propôs um dia “trazer à baila as relações petrificadas, tocando-lhes a sua própria melodia”. Naturalmente que, ao tempo, Marx não tinha em mente propriamente o primeiro bailarino do Estado, como marcador do compasso. Não é de estranhar, por conseguinte, que este tenha tropeçado.
Nada de fatalismos. Dentro de quatro semanas teremos outro. Business as usual.
Original DAS STOLPERN DES VORTÄNZERS in www.exit-online.org em 06.06.2010