Roswitha Scholz

ESTENDE O TEU MANTO, MARIA!

Produção e reprodução na crise do capitalismo


Nota prévia: O presente texto foi publicado na revista de Leipzig "Phase 2" nº 36 (junho 2010), cujo tema é "a questão da ideia de comunismo no presente", em que se pretende esclarecer também a noção de "reprodução", com várias contribuições. Referências da edição em: abo (at) phase-zwei (dot) org. Endereço postal: Phase 2, Bernaische Str. 3 d, 04277 Leipzig.


1. Após a cultural turn e a fobia à crítica radical da economia que lhe estava associada, diversos marxismos sofreram novo impulso desde a década de 1990, em paralelo com o desabar da crise não propriamente esperado. A teoria feminista também não ficou imune a esta situação. Frigga Haug desdobra-se em visitas pela República; em 2009 uma edição da revista Argument foi dedicada ao tema "Elementos de um novo feminismo de esquerda". Nancy Fraser proclamou: "Mulheres, pensai economicamente!". E mesmo feministas (ex?)-desconstrutivistas exigem agora que seja abordada a opressão das mulheres no contexto da crítica do capitalismo. (1)

De repente também a boa e velha relação entre "produção" e "reprodução" ressurge como explicação para as más relações de género, explicação que há muito tinha sido descartada como modelo dualista. Agora retoma o seu lugar, mesmo no pensamento feminista queer. Por exemplo, em Gabriele Winker: "Com o surgimento de estruturas capitalistas na história concreta, uma grande parte do trabalho reprodutivo foi realizado fora do sistema de valorização capitalista, em famílias heterossexuais e sobretudo pelas mulheres." (2) É estranho: em "recente e divertida jornada" (Adorno), argumentos feministas marxianos, que já parecem meio esquecidos, são agora obviamente misturados sem mais com padrões de pensamento desconstrutivistas; e isto apesar de na década de 1990 ter ocorrido uma disputa entre antigas feministas "materialistas" e pós-feministas (des)construtivistas.

Quando, sem grande actualização, se torna necessário voltar a tratar da questão imediata de saber que "fazer na prática" na crise, nos últimos tempos reúnem-se de repente críticas queer tornadas “críticas da economia”, um supostamente novo conceito de “commons”, a ideologia da open source segundo o padrão do desenvolvimento de software "livre" e até mesmo uma ominosa "economia solidária". "Small is beautiful" volta a ser o lema e pretende marcar a passagem para condições completamente diferentes. O que permanece do pós-modernismo no "regresso da economia" é o apagar da totalidade negativa. Está out a "sociedade" e é a "comunidade" que está in, em diferentes variações. As críticas anteriores à tacanha ideologia alternativa de comunidade são postas de parte. Neste auto-esquecimento e recalcamento as pessoas permitem-se, de certo modo, uma fase de segunda inocência.

2. Em tais contextos, também clichés da minha crítica da dissociação e do valor desempenham um determinado papel, que lhes é aprontado, contra a sua própria intenção, nos conceitos supostamente novos da relação de produção (capitalista) e das relações de reprodução que nela não ficam absorvidas. Portanto, é preciso começar por fazer a revisão de alguns pontos-chave da crítica da dissociação e do valor, a fim de a relacionar com as tendências recentes.

Como o nome já sugere, a questão é que actividades reprodutivas definidas essencialmente como femininas, e também as correspondentes atitudes (como cuidar etc.) e qualidades menorizadas, tais como emoção, sensualidade etc., foram dissociadas do valor e da sua substância, ou seja, do trabalho abstracto, e atribuídas às "mulheres". Estas atribuições caracterizam na sua essência a ordem simbólica do patriarcado produtor de mercadorias. (3) Refere-se, portanto, à partida uma face da socialização capitalista que não pode ser apreendida pelos instrumentos conceptuais de Marx. Esta face, que é imposta com o valor, pertence-lhe necessariamente; por outro lado, no entanto, encontra-se no seu exterior, sendo, contudo, também seu pressuposto. Valor e dissociação estão, pois, numa relação dialéctica recíproca. Um não pode ser derivado do outro, mas ambos os momentos resultam um do outro. É precisamente neste sentido que se pode conseguir entender a socialização fetichista, e não apenas na base da relação de valor.

Ora, decisivo para o contexto aqui em causa é que a relação de dissociação, como o Outro da relação de valor, é, tal como esta, definida num alto nível de abstracção, historicamente no conjunto da sociedade e negativamente. É um princípio social a todos os níveis e em todas as áreas, não podendo ser separado mecanicamente nas esferas pública e privada, de produção e reprodução. É verdade que inclui actividades reprodutivas não abrangidas pelo trabalho abstracto, mas vai além disso. É o que se revela no processo histórico interno da dissociação e valor. As mulheres são hoje "duplamente socializadas", como diz Becker-Schmidt, alterando mesmo os percursos biográficos. Ou seja, embora as mulheres tenham sido integradas em grande parte na sociedade "oficial" do trabalho abstracto e da esfera pública burguesa, continuam a ser responsáveis pelo lar e pelos filhos, têm de lutar mais do que os homens para alcançar postos superiores e ganham em média menos do que eles, embora os tenham entretanto igualado no nível de instrução. A estrutura de dissociação e valor mudou, mas basicamente mantém-se.

Também a partir do desenvolvimento mais recente da relação social total se conclui que a dissociação é um momento da socialização negativa. As velhas ideias burguesas de género já não são apropriadas para o "turbo-capitalismo", com a sua exigência de flexibilidade rigorosa, levando à formação de identidades flexíveis compulsivas, que no entanto continuam a apresentar-se com especificação de género de diferentes maneiras, mesmo estando a velha imagem da mulher obsoleta. Mais ainda: análises sobre o tema globalização e relação de género sugerem a conclusão de que, passado algum tempo em que poderia parecer ou ser mesmo um facto que as mulheres tinham conquistado mais espaço livre na imanência do sistema, chegou-se simultaneamente a um “asselvajamento do patriarcado", com novas formas de sexismo no âmbito da globalização.

A dissociação-valor em certa medida desprende-se dos posicionamentos institucionais rígidos da família e do trabalho remunerado, sendo que a hierarquia de género não desaparece, perante o recuo do Estado social e as medidas coercivas da administração de crise. Aqui as velhas estruturas emocionais são reconfiguradas. Caso contrário não aconteceria as mulheres continuarem a assumir como antes as actividades de reprodução dissociadas e as respectivas atribuições; papel realmente desempenhado pela ex-Ministra da Família von der Leyen que, além de várias vezes mãe, parecia ao mesmo tempo ser médica, ser membro do governo, cuidar dos pais e muito mais. Por outro lado, vê-se a renovada regressão desamparada à imagem tradicional da mulher, mesmo no caso de mulheres mediáticas de carreira como Eva Herman, que proclamou mais uma vez "O Princípio de Eva", conseguindo assim um bestseller. Identidades profundamente enraizadas na estrutura básica do capitalismo não podem, obviamente, ser desconstruídas de modo apenas superficial, como tinha parecido a algumas pesquisadoras do género. A "dupla socialização" das mulheres é funcional de forma paradoxal. Assim, por exemplo, os grupos de ajuda da administração de crise no Terceiro Mundo são apoiados principalmente por mulheres, enquanto, ao mesmo tempo, é preciso dizer que, em tempos de orientação just in time, as actividades de reprodução são passadas geralmente ainda mais para trás do que antes. São atribuídas às mulheres duplamente socializadas como uma espécie de lixo.

Este esboço já mostra que a dissociação não pode ser entendida como “resto” ontológico, nem sequer como "área" demarcada, e muito menos como um momento positivo ou como uma "antecipação" ou "modelo" de estruturas não capitalistas ou pós-capitalistas. Pelo contrário, ela é determinada de modo histórico e capitalista tanto como o trabalho abstracto e o valor e, consequentemente, é para ser igualmente eliminada. Portanto, a estrutura da dissociação constitui essencialmente a dinâmica capitalista.

3. A referência da crítica da dissociação e do valor ao feminismo marxiano foi fundamentalmente crítica, mas também teve ligações com ele. Com Frigga Haug, entendo o patriarcado produtor de mercadorias como modelo de civilização, incluindo as estruturas emocionais e simbólicas. Para lá de Frigga Haug, isto significa que não são apenas as definições normativas de masculinidade e feminilidade que são essenciais, como nos conceitos (des)construtivistas. Pelo contrário, a capacidade e a vontade de desempenho também são definidas por uma racionalidade económica específica, pelas estruturas objectivas do contexto global, pelos seus mecanismos e pela sua história, bem como pelas máximas para a acção dos indivíduos. Assim poderia falar-se do sexo masculino acentuando que é o sexo do capitalismo, na medida em que uma versão dualista de masculinidade e feminilidade em posicionamento hierarquizador constitui a concepção dominante de género na modernidade em geral. Neste contexto, também tomo de Frigga Haug a tese de que na modernidade, por um lado, existe uma "lógica de poupar tempo", que é atribuída principalmente à esfera da produção ou à "lógica de exploração da economia empresarial” e, por outro lado, uma lógica de "esbanjar tempo”, que corresponde ao domínio da reprodução (cuidado, atenção, etc.).

O que é problemático em Frigga Haug, no entanto, é a relação de género ser percebida como uma "relação de produção" sui generis e a sua "lógica" própria ser percebida por assim dizer apenas fenomenologicamente e ser posicionada abaixo do nível das categorias basilares da forma social, tendo como pano de fundo hipóteses antes de mais do antigo marxismo. É sobretudo a ontologia do "trabalho" do marxismo tradicional que se mostra responsável por isso, situação em que a crítica feminista tem de ser de certo modo contrabandeada para dentro do contexto sistémico sobrejacente não rompido. A crítica da dissociação e do valor, pelo contrário, coloca à partida as atribuições de género no mesmo nível de abstracção que o trabalho e o valor, como relação de dissociação igualmente basilar.

Frigga Haug, ainda assim, continua a ter uma perspectiva sobrejacente ao sistema, não dependendo apenas do detalhe, mas mantém-se a velha dificuldade. Ela gostaria de fazer face à crise profunda do capitalismo pugnando por uma redução radical do tempo de trabalho na área do trabalho remunerado, de modo a ficar tempo suficiente para a reprodução cultural, tendo em vista também o desenvolvimento pessoal activo e a actividade política. Esta formulação das suas ideias iniciais corresponde mais ou menos ao que agora propaga sob a fórmula da "perspectiva quatro em um" (trabalho, reprodução, cultura, política), para promover o desenvolvimento ecológico, económico e social da sociedade humana (4). Nesse sentido, ela defende a intervenção política de um novo feminismo de esquerda, em ligação com um sistema de quotas.

No entanto, é questionável se essa perspectiva, nas actuais condições de crise, continua a ser de todo realista. Além do facto de que a redistribuição dos vários domínios do "trabalho" deverá ter lugar apenas no quadro dado, ela também sobrestima as possibilidades de influência da política tradicional, no seu recurso à "relação de forças" de Gramsci. Há muito se tornou evidente que, após a queda maciça na crise de 2008, está na ordem do dia a preservação do capitalismo a todo custo. Sob o signo da bancarrota iminente do Estado e de um limite evidente da lógica da valorização, parece ser pouco viável a referida perspectiva que, sob condições capitalistas, acaba por ir dar na subvenção do Estado. Não seria melhor fazer as mesmas exigências imanentes na perspectiva de uma transformação radical do sistema, que é insusceptível de ser abordada por Haug, em virtude dos seus pressupostos do antigo marxismo? Isso seria porventura “mais realista" do que as concepções pseudo-concretas que, basicamente, sugerem a possibilidade de aplicar um programa neokeynesiano, o qual é apresentado como transcendente ao sistema, mas de facto se limita a uma mera reconfiguração, sobre os fundamentos da ontologia do trabalho, das esferas constituídas de modo capitalista, que como tais se tornam agora obsoletas.

4. Se o problema da socialização negativa ainda emerge em Frigga Haug, embora de uma forma limitada às aparências, no caso do "regresso do económico" pós-pós-moderno ele é explicitamente desfeito no particular. As novas tendências para a "economia solidária", para os "commons", para os conceitos de open source etc., têm em parte as suas raízes (frequentemente não identificadas) em ideias de trabalho de subsistência ou independente, representadas na Alemanha especialmente por Maria Mies, Veronika Bennholdt-Thomson e Claudia von Werlhof. Concentrando-se numa economia agrária pequeno-burguesa e no entendimento redutor de reprodução daí decorrente rejeitou-se globalmente qualquer ideologia industrial ou de alta tecnologia. Pois é aí que assenta, segundo Mies & Cª., a opressão das mulheres, da natureza e de outros "povos". Esta concepção foi amplamente traficada como a mais radical concepção de abandono do mercado e do Estado. Na minha opinião, erradamente, pois além de a hostilidade indiferenciada à tecnologia ser altamente problemática, a perspectiva de subsistência não institui o abandono da racionalidade do mercado em geral, mas sim a instalação de um mercado interno local. Aí a (re)produção de subsistência feminina deverá tornar-se o centro social.

Na teoria da economia de subsistência, os planos e contextos sobrejacentes levam apenas uma vida obscura, ou aparecem principalmente na análise negativa da socialidade mundial, como se um pensamento dicotómico em termos de "comunidade" e "sociedade" não pertencesse estruturalmente desde sempre ao capitalismo, pelo menos desde Ferdinand Tönnies. Por isso, tais projectos são excelentes como conceitos legitimadores da transição, numa fase que se caracteriza pela passagem da socialização negativa ao asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias. Eles fazem da necessidade virtude. A terra queimada da economia de mercado já é nolens volens uma realidade em muitas partes do mundo. Uma perspectiva de mera subsistência associada a isso, a fim de poder de algum modo sobreviver, é agora transformada em projecto de emancipação. Aqui reaparece mais uma vez implicitamente a ideologia do "trabalho honesto".

As ideologias do small is beautiful, no entanto, também sofreram uma metamorfose. Ao contrário dos anos de 1980 e 1990, hoje oferece-se sobretudo uma mistura. Ideias de trabalho de subsistência e de trabalho autónomo transformaram-se em abordagens tecnologicamente guarnecidas, agora por sua vez rebaixadas a "modelos" particulares reduzidos. No conceito difuso de "economia solidária" combinam-se variadas ideias tradicionais de subsistência e de alternativa (como a pequena produção cooperativa de mercadorias, desde lojas gratuitas a reformas monetárias e moedas locais alternativas, etc.) com o conceito de open source digital, em que uma tecnofobia geral é simplesmente substituída por uma ideologia primitiva de apropriação precisamente da tecnologia. Neste contexto, surge agora a ideia dos "commons", que idealiza o momento da reprodução pré-moderna dos "baldios" (terra comum para uso comunitário) em termos das ideologias modernas de comunidade.

Precisamente neste contexto geral são agora frequentemente envolvidos elementos degradados da crítica do valor, ou da crítica da dissociação e do valor, que entretanto deu entrada em segmentos dos círculos de esquerda. Ignorando-se, no entanto, a crítica por ela feita desde o início ao pequenino da ideologia de alternativa e à constatação conexa de que a verdadeira vida não se move na área da reprodução. Assim, por exemplo, Stefan Meretz instrumentaliza displicentemente a teoria da dissociação sexual nos conflitos há muito existentes entre esta abordagem e as posições por ele representadas dos "commons" e da "open source. (5) Ele escreve: "O capitalismo dissociou momentos essenciais da produção da vida social e relegou-os para a esfera da reprodução. A produção, como 'economia' conotada como masculina, e a reprodução, como ‘a vida privada’ conotada como feminina, foram separadas. O capitalismo e o patriarcado moderno são igualmente originários”. A "igual originariedade" de valor e dissociação está aqui novamente transformada numa relação derivada secundária, uma vez que a dissociação surge como reduzida à "esfera privada" do domínio da reprodução em sentido estrito, quando na realidade e como foi demonstrado ela atravessa todas as "esferas", inclusive a “economia", e só por isso é "igualmente originária".

A partir daqui destila-se uma perspectiva de superação redutora: "A produção privada que só a posteriori é mediada só pôde expandir-se porque, por um lado, o fez sempre à custa da produção de subsistência e dos commons e, por outro lado, podia também apontar para uma produção complementar de subsistência e dos commons, a qual podia e devia compensar as consequências da ‘economia’. A produção de mercadorias retira permanentemente da esfera dos commons, mas não lhe dá nada de volta. Os commons apresentam a potencialidade para substituir a mercadoria como função social determinante" (6). A relação de dissociação entendida afinal como secundária é assim curto-circuitada com a perspectiva dos "commons" ou de subsistência e já não é definida como relação complementar da socialização negativa, mas sim idealizada positivamente e declarada como campo ou princípio de uma particular "superação da forma da mercadoria".

5. Entretanto também a crítica queer "económica" se adapta a tais tendências. Assim Banz/Gerbig criticam um "pensamento capitalocêntrico", que se centra no capital e no trabalho, em vez de os desconstruir e visar outras disparidades sociais e identidades intermédias (7). Mulheres, gays, freelancers, hacker-nerds etc. são assim colocados imediatamente no mesmo plano. É verdade que também se observa que as mulheres raramente se encontram nas redes de hacker-nerds (isto apenas como exemplo de outras exclusões que aí podem ocorrer). Nada disso, no entanto, faz qualquer mossa a uma infatigável crítica queer "económica”, por vezes designada feminista queer. Pois "por todo o mundo… (estão a acontecer) coisas que fazem os nossos corações bater com mais força. As pessoas estabelecem relações entre si, trabalham juntas e em rede, desenvolvem projectos fantásticos e inventam dispositivos incríveis. Criam-se espaços abertos que são experimentados e diferenciados com prazer". (8) Alega-se que o capitalismo não seria "normal", pelo contrário, segundo Gibson-Graham, já haveria práticas não capitalistas, que estariam para além dele. Tais ideias compreendem agora o capitalismo como mera "ficção regulativa", à semelhança do que Judith Butler sugeriu para a identidade de género (9). Aqui se revela a dificuldade crucial do (des)construtivismo virado "económico”. O modus de socialização negativa não é qualquer constructo simbólico arbitrariamente (re)interpretável, mas uma dura realidade sobrejacente.

Aqui se esquece propositadamente que o valor já precisa sempre do seu Outro; imputando-se, pelo contrário, a este Outro, que lhe pertence, um carácter per se já transcendente, que também pode ser apresentado de diferentes modos, à semelhança do "ser melhor" em Meretz. O carácter fetichista da dissociação-valor é recalcado e promove-se sem cerimónia uma saída voluntarista no plano de "práticas quotidianas" não comprovadas. Assim se chega a uma nova configuração da hipostasiação da diferença: Todas as diferenças são iguais e, por exemplo no pensamento dos "commons", estão supostamente superadas. Também os debates (feministas) da interseccionalidade têm aqui obviamente o seu lugar. Até já foi admitido há muito tempo pelas teóricas queer, noutro sítio, que o idílio queer outrora imaginado está entrecruzado com hierarquias. (10)

Se, até mesmo em bairros que tinham como factor de localização ser gay ou lésbica essa mesma clientela tem agora um estatuto precário, talvez nada mais reste de diferente para ninguém sob tais condições. Mas por isso mesmo não se deve continuar, nem de perto nem de longe, a fazer da necessidade virtude. Na circunstância, é precisamente a altissonante ideologia comunitária que mata todo o tipo de diversidade. Quem teria pensado que todos os actores, desde o porteiro até à hospedeira aérea, têm carga de género (Ganz/Gerbig); a visão dualista e dicotómica deveria, pois, ser verdadeiramente desconstruída de vez. Se já no início do feminismo houve sempre uma corrente significativa que pretendeu fugir da estreiteza da área da reprodução e da tacanhez das actividades domésticas, e defendeu isso com veemência, também hoje o homem/a mulher procura novamente sair desta área para o reino da liberdade. E é assim que acontece, quando a precarização se espalha; e quem é que fica com a batata quente? "Care", na acepção de actividade de reprodução até aqui feminina, tem de ser apenas um exemplo entre muitos na dança comunitária queer, e assim estamos confrontados mais uma vez com a não tematização das actividades femininas e das suas estruturas, como nos séculos da velha tradição patriarcal. (11) Pois continuam a ser maioritariamente as mulheres que executam essas actividades, apesar das mudanças nas últimas décadas, e essa tendência também se aplica aos contextos de esquerda. Mantém-se assim inalterada a supremacia masculina, que não aparece apenas nos círculos antifascistas e que talvez pretenda ou tenha de fazer-se sentir mais ainda quando existe a ameaça de “transformação em dona de casa” (Claudia v. Werlhof). Nós condenámos tudo isso simplesmente para grande divertimento recíproco. A base da vida deve ser então um rendimento mínimo que os liberais conservadores trouxeram a terreiro à sua maneira há muito tempo.

Simultaneamente, no entanto, nos contextos queer feministas, quando se trata do ordenamento de género como "questão concreta", não se passa sem a relação entre as esferas da produção e da reprodução há muito tempo insultada como dualista (ver acima). A "viragem materialista" nos últimos anos exige que se lhe preste tributo, e onde se há-de ir buscar os conceitos, senão à velha teoria feminista há muito rejeitada?

6. O publicista conservador Frank Schirrmacher sabe do que fala, quando a sociedade avança cada vez mais no sentido da megacrise e por isso para a orientação pelo "mínimo". Ele pergunta, no livro do mesmo nome, com o subtítulo "Do perecimento e renascimento da nossa comunidade": "E se o Estado não puder manter a sua promessa de ajuda? Quem salva então quem, se a situação for grave, quem cuida de quem, quando for necessário, quem confia em quem, se a situação ficar ruim (...) E, acima de tudo, quem trabalha para quem, mesmo não havendo dinheiro?" (12) De acordo com as minhas observações anteriores, não deveria causar surpresa que Schirrmacher se lembre “das” mulheres, mas ele procura uma formulação à altura do tempo: "Afirmar que as mulheres têm uma competência emocional muito forte e provavelmente são mesmo as fundadoras da nossa comunidade não significa que isso se aplique simultaneamente a todas as indivíduas, nem que deva ser forçoso o papel de mãe para as mulheres (...) Não podemos fazer o tempo andar para trás (...) Investigações dos últimos cinquenta anos (Schirrmacher refere-se às pesquisas sobre o cérebro, mas também à psicologia evolutiva, à antropologia e à psicologia, R.S.) provam que cabe às mulheres o papel fundamental no apoio às famílias e na construção e estabilização de redes de amizade, que no futuro tomarão cada vez mais o lugar das famílias tradicionais (...) Até lá (na UE até 2050) será exigido às mulheres que façam duas coisas: fazer crescer o produto social bruto e dotar o país de descendência (...) Mas isso não é suficiente. As jovens têm de aumentar nas profissões científicas."

Muitas críticas feministas são aproveitadas neste plano: a insistência na "dupla socialização”, contra a velha ideia da mulher dona de casa e considerada heroína; a comunidade como recurso em termos de afinidade electiva (propagada não em último lugar pelos/as queer), mesmo se o velho modelo da família nuclear está desgastado – mas sempre mantida ainda unida pelas mulheres a isso predispostas socialmente "por natureza"; e também são invocadas hipóteses desconstrutivistas á la Judith Butler, que gostariam de descredibilizar radicalmente por via da desconstrução as relações de género tradicionais de qualquer maneira tornadas obsoletas. Schirrmacher consegue assim recuperar implicitamente abordagens desconstrutivistas, sem por isso dispensar hipóteses biologistas vindas da pesquisa do cérebro etc. Ele salienta que nem toda a mulher fica absorvida nos seus novos estereótipos.

Poderia reduzir-se a questão à fórmula consagrada: Estende o teu manto, Maria, cobre-nos e protege-nos com ele, como se diz num antigo cântico da igreja católica; agora numa versão por assim dizer pós-moderna de meninas alfa. Ou seja, uma nova variante da "feminilidade como preparado de limpeza e desinfecção", na expressão de Christina Thürmer-Rohr. A valorização aparente das mulheres hoje e o facto de cada vez mais mulheres acederem a posições na economia e na política devem, pois, ser encarados com desconfiança. Vendo bem, trata-se basicamente de uma espécie de sexismo invertido.

7. A economia queer pretende com razão relações de reprodução não-familiares, onde, ao contrário da crítica da dissociação e do valor, apenas o princípio da valorização (estruturalmente masculino) deve ser não dialecticamente o Sobrejacente ao capitalismo. (13) Mas o facto é que a perspectiva de "care", no entanto, torna a ser novamente determinada na realidade social pelas relações de parentesco e mantida como ponto de fuga na família monoparental materna. Mas uma orientação feminista queer também se sente tão bem com os seus hacker-nerds masculinos! As mulheres, na realidade, têm a carta marcada, que Schirrmacher lhes entrega com pseudo-reconhecimento e ao mesmo tempo apodicticamente, e com a qual devem ser as novas salvadoras do mundo.

Quanto à questão do envolvimento prático, é preciso constatar com realismo que o patriarcado produtor de mercadorias não pode ser abolido através de esforços práticos políticos, que assentam apenas numa reconfiguração das esferas de produção e reprodução, constituídas de modo igualmente capitalista. Não se podem encontrar novas saídas sem estabelecer como objectivo a abolição da relação social no seu conjunto. Os diferentes momentos da reprodução social não devem ser abstractamente negados e nivelados na sua singularidade, mas as relações não podem ser abolidas em cada esfera individual, nem também numa hiopostasiação das actividades de reprodução conotadas como femininas, como foco de um “bem” ontológico. Não se trata de "meta-Commons" (14), uma ideia que reduz o modus de socialização a uma reelaboração no sentido da ideologia da comunidade, mas sim de uma crítica radical para além da dicotomia "comunidade e sociedade". O "regresso da economia" ocorre numa dimensão da crise à qual não se pode fazer face com conceitos particularistas baratos.



Notas

1. Das Argument 281, Elemente eines neuen linken Feminismus [Elementos de um novo feminismo de esquerda], Heft 3/2009; Fraser, Nancy: Frauen denkt ökonomisch [Mulheres, pensai economicamente]: Taz 25.5.2005; Macrobbie, Angela: Top Girls. Feminismus und der Aufstieg des neoliberalen Geschlechterregimes [Top girls. O feminismo e a ascensão do regime de género neoliberal], Wiesbaden 2010.

2. Winker, Gabriele: Traditionelle Geschlechterordnung unter neolibalem Druck. Veränderte Verwertungs- und Reproduktionsbedingungen der Arbeitskraft [O ordenamento tradicional de género sob pressão neoliberal. Mudança nas condições de valorização e de reprodução da força de trabalho], in: Groß, Melanie/Winker, Gabriele (Hg): Feministische Queerkritiken neoliberaler Verhältnisse [Críticas queer feministas às condições neoliberais], Münster, 2007, 19.

3. Ver, em detalhe, Scholz, Roswitha: Das Geschlecht des Kapitalismus, Feministische Theorien und die postmoderne Metamorphose des Patriarchats [O Sexo do Capitalismo. Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado], Bad Honnef, 2000.

4. Haug, Frigga: Die Vier-in-einem-Perspektive. Politik von Frauen für eine neue Linke [A perspectiva quatro em um. Política das mulheres por uma nova esquerda], Hamburg, 2008.

5. Ver, por exemplo, Scholz, Roswitha: Der Mai ist gekommen. Ideologische Verarbeitungsmuster der Krise in wertkritischen Kontexten [Maio chegou. O padrão de digestão ideológica da crise nos contextos da crítica do valor]. In: Exit! 2, 2005, p. 106–137; Kurz, Robert: Der Unwert des Unwissens. Verkürzte Wertkritik als Legitimationsideologie eines digitalen Kleinbürgertums [O desvalor do desconhecimento. “Crítica do valor” truncada como ideologia de legitimação de uma nova pequena-burguesia digital]. In: Exit! 5, 2008, p. 127–195.

6. Meretz Stefan: Die gesellschaftliche Logik der Commons [A lógica social dos Commons]. In: ak 549, p.13, ver também: Moller, Carola u.a. (Hg): Dissidente Praktiken: Erfahrungen mit herrschafts- und wertkritischer Selbstorganisation [Práticas dissidentes. Experiências de auto-organização crítica da dominação e do valor], Königstein/Taunus, 2006. Habermann, Friederike: Halbinseln gegen den Strom. Anderes leben und wirtschaften im Alltag [Penínsulas contra a corrente. Vidas e economias diferentes no quotidiano], Königstein/Taunus, 2009.

7. Ganz, Katrin/Gerbig Do.: Diverser leben, arbeiten und Widerstand leisten. Queerende Perspektiven auf ökonomische Praxen der Transfrormation [Viver, trabalhar e resistir com mais diferenças. Perspectivas queer sobre as práticas económicas da transformação], http://arranca.org/ausgabe/41/diverser-leben-arbeiten-widerstand-leisten 20.4.2010

8. Ibidem.

9. Ibidem.

10. Cf. Wehr, Christiane: Queer und seine Anderen. Zu den Schwierigkeiten und Möglichkeiten queerer Bündnispolitik zwischen Pluralismusansprüchen und Dominanzeffekten [Queer e os seus outros. Sobre as dificuldades e possibilidades da política de aliança queer entre pretensões de pluralismo e efeitos de dominância]; In: Groß, Melanie/Winker, Gabriele (Hg): Feministische Queerkritik neoliberaler Verhältnisse [Crítica feminista queer das relações neoliberais], Könistein/Taunus, 2007.

11. Ibidem.

12. Frank Schirrmacher, Minimum. Vom Vergehen und Neuentstehen unserer Gemeinschaft [O minimo. Do perecimento e renascimento da nossa comunidade], München 2006.

13. Cf. Winker 2007, ob. cit.

14. Exner, Andreas: Die Potentiale der Commonsdebatte [O potencial do debate dos commons]... http://www.scial-innovation.org/?p=1644 25.4.2010

Original MARIA BREIT DEN MANTEL AUS. Produktion und Reproduktion in der Krise des Kapitalismus em www.exit-online.org. Publicado na revista de Leipzig "Phase 2" nº 36 (junho 2010)