AUSCHWITZ COMO ÁLIBI?
A obstinada negação de tomar posição diante da mudança de paradigma no sentido da elaboração de uma "crítica do valor" esbarra, em primeiro lugar, na nostalgia da luta de classes*. Também, há bastante tempo a maioria do marxismo tradicional despediu-se silenciosamente da crítica explícita da economia política. Não são poucos os ideólogos que intentam, como substituto à ação, guarnecer o já superado marxismo do movimento operário com todo tipo de constructos incompatíveis, supostamente modernizados: desde o raciocínio pop-cultural da sociologia de um Pierre Bourdieu, até o "discurso" pós-estruturalista.
O impulso em si justificado de apoderar-se criticamente do aspecto cultural da socialização capitalista habitualmente ignorado numa esquerda tradicionalmente "economicista" (melhor dito: "sociologista") não tem nada que ver, nessas manifestações, com uma superação do marxismo do movimento operário. Os pós-modernos "marxistas da cultura" que, na realidade, já não são propriamente marxistas, só encontram-se à altura dos tempos com seus extravagantes óculos de sol. Teoricamente, não podem e nem querem se envolver na mudança historicamente pendente da teoria crítica, reduzida ao sociologismo da luta de classes, para a crítica do valor. Pelo contrário, tomam essa tarefa como ameaça, à semelhança dos partidários da luta de classes, que ficaram sem ação. A temática cultural não se manifesta num contexto novo, mas apenas como sua defesa e se converte, dessa maneira, num puro álibi espetacular. O velho economicismo totalmente mutilado é substituído por um culturalismo igualmente obtuso.
Com especial crueza, entra em cena essa troca barata de reducionismos teóricos no tema de Auschwitz. O setor do marxismo tradicional mais ou menos orientado à cultura quer eliminar toda tentativa de reformulação da teoria do fascismo à luz da crítica do valor. No passado, a esquerda limitou os crimes contra a humanidade do nacional-socialismo ao mero contexto sócio-econômico do "interesse do capital". Também, limitou-os aos processos sociológicos superficiais de transformação do aparato de dominação capitalista durante a crise econômica mundial, relegando ao segundo plano o poder da ideologia biológico-antisemita como especificamente alemão. Agora, ao contrário, desaparece o contexto capitalista do regime nazista em um descontextualizado estado de coisas cultural-ideológico "puramente alemão".
Não estranha que, desse ponto de vista, Günter Jacob tenha que atacar o Schwarzbuch tão violentamente, já que neste se expõe uma relação sistemática entre a história do desenvolvimento capitalista e uma "ideologia alemã" específica (isto é, não se opõe simplesmente uma a outra). Como porta-voz do marxismo ortodoxo, acostumado a um público "adestrado", Jacob decreta que o Schwarzbuch está "construído sobre uma revisão da teoria marxista do valor", sem, contudo, explicar o que isso significa. De qualquer modo, para o que ainda lhe resta dizer, já não é necessária uma teoria do valor, seja ela marxista ou revisada. Só flerta com a velha crítica radical de esquerda do capitalismo por necessidade tática e, então, se utiliza do destronado marxismo dos anos 70 como ficha de jogo e apresentação, unicamente com a finalidade de forçar o conceito de economia política a eliminar sua crítica. Explicitamente, em Jacob figuram os conceitos críticos da socialização do valor apenas como supostas "categorias que se tornaram incertas devido ao holocausto". Quase se tem a aparência macabra de que o assassinato de seis milhões de judeus encontrasse seu sentido naquilo que lhe atribui uma certa esquerda alemã: o privilégio de, com toda a tranqüilidade, poder dissimular culturalmente a velha identidade de luta de classes, já ruída. Jacob não apenas instrumentaliza Auschwitz para enterrar a crítica radical da economia, mas também quer chamar Adorno como testemunha principal, a quem, no entanto, trata como cachorro morto nas questões essenciais. Na realidade, a Teoria Crítica jamais deixou de ver Auschwitz em sua relação com o sistema produtor de mercadorias, enquanto a postura de Jacob se baseia nessa exigência, invertendo completamente o adágio de Horkheimer: aquele que deseja falar de Auschwitz deve imediatamente guardar silencio sobre o capitalismo.
Para poder apresentar essa fuga ao culturalismo como posição ponderada, Jacob lança mão de um meio quase inacreditável: falseia literalmente a argumentação do Schwarzbuch acerca do nacional-socialismo e mente ao público afirmando que ali está escrito exatamente o oposto do que se diz. Dessa maneira, assevera que o Schwarzbuch retoma no fundamental a explicação historicizante de Götz Aly, com referência positiva a Ernst Nolte (!), com o que se põe em dúvida Auschwitz como ato singular e o subordina aos crimes gerais da modernização do século XX. Justamente ao contrário, o Schwarzbuch explora, a partir da história da segunda revolução industrial, a diferença decisiva entre Auschwitz e o gulag soviético, bem como o fordismo norte-americano e, dessa forma, ajusta as contas com Nolte muito mais profundamente que seus críticos caseiros, democráticos de esquerda da RFA. Jacob vai ainda mais longe em seu falseamento, afirmando que no Schwarzbuch apresenta-se o massacre dos judeus de maneira "funcionalista" como um meio para atingir outro fim (a modernização), mas, contudo, ao autor fica difícil extrair os "cálculos de utilidade por trás da aparência" e "de repente" parece "tudo irracional". Justamente, pelo contrário, o Schwarzbuch (entre outros, em relação a Moishe Postone), mostra o porquê de Auschwitz não poder ser explicado em função de qualquer "cálculo de utilidade", estando ele enraizado em profunda irracionalidade e ressentimento, cujos elementos, por um lado, caracterizaram desde o princípio a socialização do valor como tal e, por outro lado, compuseram-se na Alemanha, desde Herder e Fichte com um conteúdo específico: a legitimação culturalista da "ideologia do sangue" presente na formação da nação alemã. Esse contexto, que percorre todo o Schwarzbuch é inteiramente escamoteado por Jacob.
O falseamento é tão patente que não se pode menosprezar a idéia de um cálculo denunciatório consciente. Pode-se supor, entretanto, que o problema de Jacob é também o da compreensão limitada do problema do valor. Como mais uma vítima dos "ensinamentos" do marxismo tradicional, ele compartilha do conceito positivamente reduzido de socialização do valor, sendo absorvido por "cálculos racionais de utilidade" de "interesses de classe". E como Auschwitz não pode ser explicado desse modo, ele abandona a crítica do capitalismo. Nessa perspectiva, aquele que expõe a relação entre a forma fetichista do valor e Auschwitz teria que reduzir o crime contra a humanidade a um "cálculo racional de utilidade". Isso é justamente o que Jacob enxerga no Schwarzbuch. Ele não se dá conta de que se trata de seu próprio problema fundamental aquilo que atribui aos demais.
Por isso, logo em seguida, a análise do anti-semitismo em sua relação com o trabalho abstrato lhe parece uma limitação, quando na verdade trata-se de uma ampliação. Já que ao marxismo do movimento operário escapava tal relação, por causa da positivação e da ontologização do "trabalho", também lhe escapava a projeção anti-semita do caráter abstrato negativo desse "trabalho" numa suposta "essência judaica". Assim, a teoria marxista tradicional sobre o fascismo reduzia-se ao "interesse de classe", não obstante incluir também, e não só desde os insultos de Engels contra os "cortes de cupom", certos elementos da "economia política do anti-semitismo" (sem, contudo, ser simplesmente idêntico a ela). Só uma crítica radical do valor e, por isso, uma crítica do trabalho, põe a descoberto uma tal relação e, ao mesmo tempo, analogamente às formas gerais do sujeito da concorrência e do trabalho abstrato, explica o caráter, que está acima das classes, da formação da ideologia anti-semita (e da formação da ideologia em geral). A afirmação marxista de que o ser determina a consciência libera-se, dessa forma, da redução ideológica de classes e se eleva ao âmbito formal das categorias fundamentais da sociedade. Pelo contrário, Jacob elimina de sua análise a referência ao conceito de valor, reduzido-o a um mero objeto da "economia" e do "interesse", para converter aquilo que se pode explicar de Auschwitz numa mistificação culturalista.
Para os efeitos de uma crítica radical que não coisifica teórico-economicamente o valor, mas o entende como forma geral do sujeito, pode se definir historicamente a relação entre capitalismo, ideologia anti-semita e holocausto. A ideologia anti-semita moderna como tal, da mesma maneira que o racismo, encontra-se na sociedade burguesa desde o Iluminismo e, nesse sentido, é um fenômeno capitalista universal. Os nazistas não só tomaram do liberalismo anglo-saxão a sua ideologia social-darwinista, como também uma série de outros elementos repressivos da modernidade (entre eles, por exemplo, os campos de concentração). Nesse registro, Auschwitz é parte constituinte da totalidade histórica do capitalismo. No entanto, só na Alemanha o anti-semitismo, num contexto de formação da nação legitimada pela ideologia do sangue, converteu-se em processo eliminatório. Nesse sentido, Auschwitz é parte constituinte essencial da história específica alemã. Por outro lado, esse anti-semitismo alemão eliminatório não se converteu, durante o século XIX, em programa estatal de assassinato em escala industrial, o que só veio a ocorrer no contexto da crise econômica mundial do nazi-fordismo. Auschwitz é também parte constituinte da segunda revolução industrial. É completamente errôneo tornar excludentes estas duas referências como na pergunta insinuante da Konkret se o holocausto foi "em última instância uma conseqüência da catástrofe capitalista geral" "ou" uma "conseqüência do anti-semitismo alemão específico". Não se pode pensar um sem o outro.
Nesse contexto, é importante fazer uma análise do problema, como a do livro de Gerhard Scheit acerca da dramaturgia do anti-semitismo, no contexto da crítica do valor, que persegue o caráter eliminatório específico dessa ideologia, ao longo de toda a história cultural alemã. Porém, justamente um culturalismo como o de Jacob não é capaz de realizar essa empreitada, já que em sua visão de mundo "pós-estruturalista" não há história, ao menos no sentido da continuidade de um processo que se desprende, mas somente como a superfície de "eventualidade" de manifestações temporárias historiadas sobre outras de maneira puramente externa, que teriam de ser sempre e imediatamente sua própria essência. Nesse sentido, Jacob não só separa Auschwitz do capitalismo, mas também o separa de toda a continuidade da história alemã. Assim, não se entende polemicamente o holocausto, contra os historiadores apologetas, como história ainda não superada, e que só se poderia superar mediante uma crítica categórica da socialização pelo valor, mas se converte num brinquedo a-histórico do "discurso". Também a relação estrutural entre a forma do valor e a formação da ideologia pode alumiar-se por meio da crítica do valor. Já que para Jacob a relação entre o "sujeito automático" e as pessoas que atuam, entre forma do sujeito e conteúdo da vontade, segue sendo um livro de sete selos, ele lê o Schwarzbuch como se não fossem os indivíduos e sim as categorias abstratas mesmas as que "atuam" imediatamente e, dessa forma, desculpa as pessoas como objetos sem vontade "do valor". Enquanto à vista dos interesses sociais são justamente os conteúdos subjetivos da vontade que executam inconscientemente uma grande parte do processo de valorização na forma do sujeito da concorrência, a formação da ideologia também exige aos sujeitos uma parte ainda maior de trabalho da consciência. Não se trata apenas da execução cotidiana, mas de uma relação elaborada conscientemente à negatividade experimentada praticamente e às contradições da socialização pelo valor.
Os conteúdos ideológicos da vontade, por isso, não podem simplesmente ser "deduzidos" formalmente do valor, ao contrário de instituições como dinheiro, mercado e Estado. Quem interpreta a irracionalidade da forma do valor de maneira projetivamente anti-semita, o "quer" também com a finalidade de desembaraçar-se de contradições ameaçadoras. Como essas contradições não são atingidas argumentativamente pelo "esclarecimento", resta apenas combatê-lo. Tais conteúdos ideológicos da vontade, "escolhidos livremente", não se explicam como uma formação reativa automática ou necessária da consciência, pois esses conteúdos têm uma determinada história (também especificamente alemã) que os contextualiza. Jacob elimina as duas coisas: resolve a formação da ideologia anti-semita como uma variante assassina alemã de seu objeto social e a converte num ato de arbitrariedade incondicional. Dessa forma, ele cai numa moral individual puramente burguesa, substituindo a crítica social por imperativos éticos; um pensamento reduzido e não-reflexivo que só tem audiência porque se coaduna perfeitamente com o "giro" neoliberal. Olhando com os olhos de Thatcher, só se manifesta o sujeito individual atomizado – o "indivíduo responsável por si mesmo", e nada mais.
* Referência ao ensaio Tanto que nós amámos a luta de classes do mesmo autor e que compõe, juntamente com o presente texto, uma resposta aos críticos alemães do Schwarzbuch Kapitalismus (Livro Negro do Capitalismo) [N do T].
Original
Junho de 2000
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