TEMPOS DE CRISE DOURADOS?
"Receamos pelo nosso dinheiro!": as manchetes da imprensa sensacionalista falam ao povo, mais uma vez, a partir da sua alma da mercadoria. Ontem era o choque da queda do imobiliário e da crise financeira global subsequente, agora é o choque da falência do Estado grego, ao pé da porta, que aumenta a incerteza geral. Com cada novo caso vai-se revelando o encadeamento do crédito malparado, o qual vai tão longe que, mesmo a grande distância, há vítimas. Não é por acaso que o agudizar das contradições se concentra no dinheiro, como meio e fim em si mesmo da “riqueza abstracta" capitalista (Marx). Isso levanta novamente a questão há muito tempo reprimida da substância e da ancoragem institucional do próprio dinheiro. Até à Primeira Guerra Mundial não havia qualquer problema, por causa da vinculação de todas as moedas centrais ao ouro. Nas economias de guerra e na crise económica mundial teve que ser cortado esse vínculo. Da necessidade fez-se virtude; Keynes chamou ao ouro "relíquia bárbara".
Após a Segunda Guerra Mundial, o sistema monetário de Bretton Woods foi inicialmente ancorado ao dólar, como dinheiro mundial, pois este era a única moeda ainda convertível em ouro. Desde que esta última ligação também foi revogada, em 1973, o sistema monetário mundial entrou em livre flutuação das moedas, com incerteza crescente nos câmbios. O keynesianismo desfez-se numa inflação antes conhecida apenas como resultado das economias de guerra. A doutrina monetarista do neoliberalismo ainda prometeu uma estrita limitação da oferta monetária, mas mesmo esse compromisso puramente formal foi liquidado desde a virada do século, sob o impacto do estouro das bolhas financeiras e, de facto, substituído por uma “política de taxa de juros zero” dos bancos centrais. Agora, a inundação de dinheiro, com que foram alimentadas as conjunturas de deficit, desagua numa crise aos solavancos dos mercados financeiros e das finanças públicas. Entre os economistas há cada vez mais vozes namoriscando com uma “remonetarização” do ouro para, numa espécie de golpe libertador, restabelecer a estabilidade monetária.
Mas não se pode fazer o relógio andar para trás. Como já Marx mostrou no segundo volume de O Capital, a produção de ouro como base do sistema monetário constitui um encargo improdutivo, que hoje representaria cerca de 5 por cento do produto interno bruto; aproximadamente da mesma ordem de grandeza que o complexo militar-industrial, igualmente improdutivo do ponto de vista capitalista. Mas o problema é mais profundo. O desacoplamento do dinheiro da sua substância de valor corresponde ao desacoplamento das mercadorias da sua substância de trabalho. O sistema de preços já é apenas formal e paira, por assim dizer, no ar. Esta é apenas outra maneira de dizer que as forças produtivas não mais podem ser representadas na forma do valor, como Marx previra. Depois de um longo período de incubação, desde 1973, esta situação repercute-se agora à superfície, como crise do meio que é o dinheiro. Não por acaso a crise passou rapidamente dos mercados financeiros para os garantes estatais da moeda. Os elos mais fracos da cadeia quebram primeiro, como sempre, mas o problema é comum. Como, presentemente, um socialismo para além da lógica da valorização e do seu meio próprio parece inconcebível para a consciência pública, as medidas de emergência desencadearão apenas novas contradições, que se farão sentir cada vez mais rapidamente. O regresso da "relíquia bárbara" não conseguiria dourar os tempos de crise, mas apenas trazer o carácter fetichista do modo de produção dominante à sua derradeira reconhecibilidade.
Original GOLDENE KRISENZEITEN in www.exit-online.org.  Publicado em Neues Deutschland, 30.04.2010