Tomasz Konicz
FARINHA DO MESMO SACO
Nova
Guerra Fria uma ova: Rússia e China são parte integrante do capital mundial
Desde o
agravamento da luta geopolítica pelo poder na Ucrânia muitos meios de
comunicação parecem estar numa viagem retro para a segunda metade do século XX –
quando o confronto de sistemas entre o socialismo de Estado e o capitalismo
dominava os assuntos mundiais. Formadores de opinião, do FAZ, passando
pelo New York Times, o Financial Times, até à Stern e ao
Zeit escrevem sobre uma nova "Guerra Fria" entre o Leste e o Oeste, sobre
uma idade do gelo entre os países da NATO e a Rússia e, possivelmente, também a
China. Enquanto o Ocidente está tentando isolar a Rússia, Pequim coloca-se
ostensivamente ao lado do Kremlin, lamentava-se por exemplo a Spiegel
on-line em 20 de Março: “Nos bastidores, Moscovo e Pequim trabalham já nos
planos para uma aliança político-militar" Essa aliança poderia "alterar o
equilíbrio de poder no mundo de forma dramática", disse a revista on-line que
ilustrou a notícia com o mais belo kitsch soviético sobre a inviolável amizade
soviético-chinesa dos anos 50, que tinha aproximadamente o mesmo conteúdo de
verdade que as prevenções de então sobre o perigo vermelho e amarelo.
Publicações
como o Süddeutsche ou a Focus vêem no Presidente Putin da Rússia
mesmo uma espécie de reencarnação de Lenine ou Estaline, que quer restaurar uma
"União Soviética light" (Focus) e cuja "vontade de poder sobre o
território da antiga União Soviética não tem limites" (Süddeutsche).
Partes da esquerda alemã também se esforçam vigorosamente por reproduzir essa
visão de mundo como simples imagem invertida num espelho e por fazer da Rússia
de Putin um baluarte anti-fascista pré-socialista, recorrendo maciçamente à
nostalgia soviética, ou por atribuir ao regime de modernização chinês um papel
objetivamente progressista. O cálculo por trás de tais considerações é o
seguinte: O domínio global do centro ocidental do sistema mundial capitalista,
altamente endividado e próximo da ruína, seria finalmente quebrado pelas
potências emergentes da semi-periferia (BRICS), o que deveria de algum modo
contribuir para a emancipação humana.
O problema
com esta analogia, entretanto, é que o actual aumento das tensões geopolíticas
na Europa de Leste e no Sudeste asiático não pode ser apropriadamente ilustrado
recorrendo ao século XX, mas mais tomando por referência as lutas imperialistas
pelo poder do século XIX. O great game euroasiático entre as grandes
potências não é a expressão de um conflito de sistemas entre o Leste e o Oeste,
mas uma luta neo-imperialista por esferas de influência e matérias-primas.
Portanto, não existe simplesmente um conflito de sistemas, porque tanto a Rússia
governada por um ex-agente da KGB como a República Popular da China são partes
integrantes do sistema capitalista, cujo caráter específico de capitalismo de
Estado resulta da sua história e da sua posição no sistema mundial.
Ambas as
grandes potências capitalistas desenvolveram uma estrutura de poder e económica
característica da sua posição no sistema capitalista mundial, a qual apresenta
um papel económico dominante do aparelho de Estado e também é influenciada pelas
manifestações de desintegração características do capitalismo tardio. A ideia de
imaginar o capitalismo de Estado autoritário da Eurásia como uma alternativa
sistémica embrionária ao sistema de estilo ocidental só pode ocorrer a quem
atribui potencial emancipatório ao Estado e, num reflexo especular da ideologia
neo-liberal, idealiza este como um contrapolo (ordenador) do mercado (obviamente
caótico), em vez de o entender como "capitalista colectivo ideal" (Marx),
enquanto seu correctivo ncessário.
Foi o Estado
absolutista, com a fome insaciável de dinheiro da sua máquina militar – exigindo
a monetarização de toda a sociedade – que apadrinhou a imposição histórica do
capitalismo no início da idade moderna. E foram os aparelhos de Estado da
periferia e da semi-periferia, conduzidos autoritariamente e agindo com
crueldade, que tiveram um papel central em todos os esforços de modernização
capitalista atrasada, desde a industrialização bem-sucedida da Alemanha na
segunda metade do século XIX.
O Estado
protegeu a indústria nacional nascente da concorrência estrangeira através de
tarifas aduaneiras, estabeleceu o regime de trabalho assalariado se necessário
com violência brutal, dirigiu o investimento em sectores estratégicos e forçou a
construção da correspondente infra-estrutura. Só depois de conseguida a
modernização ocorreu a retirada do Estado da esfera económica da economia
capitalista desenvolvida – e as elites, de repente, começaram então a exaltar os
méritos do mercado livre aos que ficaram na periferia.
Tanto a
China como a Rússia foram influenciadas profundamente por esta história de
"modernização atrasada" mais ou menos bem-sucedida, que foi aplicada pelo
respectivo regime de modernização capitalista de Estado ou socialista de Estado.
Ambos os países passaram uma grande parte do século XX a tentar minimizar a
distância até aos centros do sistema mundial por meio da construção de um
sistema de produção de mercadorias com a maior rapidez possível e com muitas
vítimas. A diferença entre o socialismo de Estado defunto e o capitalismo de
Estado actual consiste sobretudo no facto de que, até à transformação da
acumulação de capital no final dos anos oitenta, passaram inteiramente sem a
mediação do mercado e da propriedade privada dos meios de produção, com um
governo nacional centralizado – e, com a crescente diferenciação da produção de
mercadorias a partir dos anos oitenta (revolução das tecnologias de informação),
esgotaram o seu potencial de desenvolvimento (estagnação sob Brejnev). Isso
ainda não será claro para os neo-liberais e comunistas ortodoxos alemães, mas é
muito bem entendido pelas elites funcionais locais, que explicam a relação
positiva com Mao ou Estaline com as campanhas de modernização brutais que
prepararam o terreno para a actual condição económica dos dois países.
No decurso
contraditório desta modernização, marcado por uma profunda mudança no final do
século XX, acabaram por se reflectir as contradições nos cálculos de
possibilidade objetiva de uma transformação do sistema ou revolução, que Marx e
Lenine puderam definir com poucas diferenças. De acordo com Lenine, seriam os
"elos mais fracos" subdesenvolvidos da cadeia dos "Estados imperialistas" que
estariam maduros para a revolução. Marx, no entanto, só vê como possível a
transformação quando o capitalismo esgotar completamente o seu potencial de
desenvolvimento e for destruído nas suas contradições internas. Só então as
relações de produção se tornam grilhões das forças produtivas. Como levantamento
revolucionário iniciado em sociedades atrasadas, tanto a revolução russa como a
chinesa se transformaram afinal após algumas décadas de aberrações completas – a
maior parte das vezes sanguinárias – novamente num regime ordinário de
modernização capitalista de Estado.
À primeira
vista, portanto, os dois países parecem ter actualmente a estrutura social
característica de uma modernização atrasada da sociedade, marcada por um Estado
autoritário "forte" com uma posição dominante na economia. Na Rússia, no quadro
de uma estratégia política de poder do "império de energia" em grande parte
moldada por Putin – que pretende o controlo se possível sem falhas do Kremlin
sobre toda a produção e distribuição da energia, desde os campos de gás na
Sibéria até às estações de distribuição na Europa – ocorreu uma renacionalização
de grande do sector energético russo. O Estado russo também controla muitos
outros sectores estratégicos da economia russa, como a indústria de armamento
com bastante sucesso internacional.
Na sequência
de conflitos violentos nos primeiros anos do reinado de Putin foi quebrado pelo
aparelho de Estado o poder da oligarquia russa, que antes tomara o controlo de
grande parte da economia no processo de privatização selvagem após o colapso da
União Soviética. O símbolo da vitória do Estado contra a casta oligarca
predatória, significativamente em grande parte originários da antiga
nomenklatura soviética, é o ex-bilionário Mikhail Khodorkovsky recentemente
amnistiado por Putin. Desde o rompimento de Putin com o ex-proprietário da
Yukos, que desafiou o chefe do Kremlin abertamente, mais nenhum oligarca ousou
aassumir uma oposição séria ao Kremlin.
Apesar de
todos os postulados oficiais da liderança do partido e do Estado chineses, que
anuncia repetidamente a retirada do Estado da esfera económica, o aparelho
estatal chinês é agora o principal motor do ritmo alucinante do crescimento da
"República Popular". Com a eclosão da crise económica mundial ocorreu uma
transformação do "modelo de negócio" chinês, até 2008 baseado no objectivo de
atingir os mais elevados excedentes de exportação possíveis. A queda das vendas
no mercado externo obrigou Pequim adoptar o maior pacote de estímulo económico
do mundo – tendo em conta o peso económico da China – (representando então 12
por cento do PIB), e assim transformar a acção de investimento dirigida ou
promovida pelo Estado no mais importante motor da retoma económica. Os pacotes
públicos de estímulo económico actuaram como uma espécie de faísca inicial:
entretanto os investimentos na China atingiram cerca de 55 por cento do PIB, o
que é um máximo absoluto. Claro que são principalmente os dominantes das grandes
empresas estatais a beneficiar desta bonança de investimento alimentada pelo
crédito, empresas que ainda predominam na maioria dos sectores do país e geram
cerca de 40 por cento da produção de bens de China. Pequim também exerce
controlo estrito sobre o sector financeiro e os bancos, o que permite ao governo
responder mais rapidamente e de forma abrangente às crises financeiras cada vez
mais frequentes por todo o país.
No entanto,
a forte posição do Estado autoritário em ambos os países só cria a ilusão de um
controlo profundo da máquina da valorização em crise e da esfera económica.
Ambos os opositores aparentes do Ocidente assentam numa base económica muito
frágil – tal e qual como as economias altamente endividadas da Europa Ocidental
e dos Estados Unidos. Nem a Rússia nem a China têm uma dinâmica de acumulação
interna resultante da valorização auto-sustentável do capital na produção de
mercadorias. A estabilização sócio-económica da Federação Russa sob Putin é
devida à orientação do país para a exportação de matérias-primas, cujas receitas
agora já não são totalmente extorquidas para fora do país por uma casta
oligárquica voraz. O sector das matérias-primas – para além da indústria de
armamento – constitui a única indústria da Rússia que é competitiva
internacionalmente, enquanto os restantes sectores económicos, que sofrem de um
enorme sub-investimento, nunca recuperaram do colapso do socialismo de Estado. A
economia da Rússia está, portanto, dependente ao mais alto grau da evolução da
conjuntura económica no centro do sistema mundial, que influencia decisivamente
os preços das matérias-primas.
Durante anos
foi a dependência da China dos centros do sistema mundial nos elevados
excedentes comerciais que actuou como propulsor económico e fonte de divisas e
só ela permitiu a modernização capitalista tempestuosa do país. Após a eclosão
da crise de 2008, a República Popular está numa conjuntura económica de déficit
promovida pelo investimento, caracterizada pelas bolhas de dívida que aumenta
cada vez mais rapidamente. O boom do investimento e da construção financiados
pelo crédito na China, que catapultou a dívida total do país entre 2008 e início
de 2014 de cerca de 150 por cento do PIB para quase 250 por cento, vai de braço
dado com o crescimento explosivo do sector bancário sombra, onde os créditos são
concedidos de forma completamente desregulada – e de cuja extensão realmente
ninguém pode dar um número preciso. As estimativas variam aqui entre um volume
de mercado equivalente a 2,5 biliões de euros (cerca de 40 por cento do PIB da
China!) e 4,4 biliões de euros. O Estado chinês há muito que se tornou
prisioneiro de dinâmica da dívida: ele só pode tentar atrasar o pânico do
estouro da bolha – à custa da continuação do seu inchaço.
A crise
mundial do capital, que devido aos contínuos aumentos de produtividade na
produção de mercadorias embate no "limite interno" (Robert Kurz) da sua
capacidade de desenvolvimento, desenrola assim também o seu efeito devastador
nos países de capitalismo de Estado da semi-periferia. Por isso também a
analogia feita no início do texto com a época do imperialismo no século XIX
apenas na superfície geopolítica é válida, enquanto é a crise sistémica que mina
continuamente as entranhas da produção de mercadorias do capitalismo tardio.
China e
Rússia também estão marcadas por grandes contradições internas e enormes
convulsões sociais e pelo conflito latente em crescendo que traz consigo a
divisão social da sociedade. A China está literalmente dependente de altas taxas
de crescimento para que o descontentamento em fermentação não se transforme em
rebelião aberta. O mesmo se aplica à Rússia, que só pode manter sob controlo a
instabilidade sócio- económica latente através da venda a bom preço das
matérias-primas.
Os aparelhos
de Estado autoritários de ambos os países são, portanto, um sinal da fraqueza
estrutural e não da força das duas economias. Rússia e China já não podem tomar
o caminho das economias capitalistas ocidentais para um capitalismo liberal de
mercado, porque a dinâmica da crise as mantém aprisionadas na fase de
desenvolvimento de capitalismo de Estado. O Estado na semi-periferia só a muito
custo consegue manter a sua função de "capitalista colectivo ideal": aqui, o
aparelho do Estado em geral tem dificuldade em optimizar as condições de
valorização a nível do conjunto da sociedade – se necessário à custa de frações
individuais de capital. Em vez disso, estes Estados da semi-periferia, muitas
vezes agindo como capitalistas colectivos verdadeiros, degeneram no saque de
tudo o que apanham e – numa paródia mordaz da nomenklatura do socialismo de
Estado – produzem uma classe de capitalistas de Estado.
A vitória de
Putin sobre a oligarquia predadora da transformação foi comprada com o advento
de uma oligarquia estatal emergente do ministério da energia e do aparelho de
segurança, cuja riqueza e poder crescem fora do controlo das empresas públicas.
O sucesso do negócio no sector privado na Rússia, portanto, como antigamente nos
tempos do czar, depende dos bons contactos com o Kremlin e duma posição segura
dentro dessas panelinhas. O Estado não é apenas a política, mas também o centro
económico do poder.
A situação é
semelhante na China, como ilustra a composição do Congresso Nacional do Povo e
da sua Conferência Consultiva no ano passado: ao todo há aí 83
multimilionários,com mais de mil milhões de dólares cada um. Tal densidade
oligarca nem mesmo no Congresso dos EUA. A ascensão do sector-sombra da banca
chinesa também foi apoiada pelo facto de que as empresas com fracas ligações ao
aparelho de Estado têm muito menos crédito do sector financeiro estatal oficial
do que as suas concorrentes que são propriedade do Estado. O alto nível de
corrupção nos dois países (a Rússia, segundo a Transparência Internacional, está
entre os países mais corruptos do mundo) é justamente a expressão dessa
degradação induzida pela crise prestes a ocorrer no "poder vertical" (1)
estatal, com a qual a posição do poder de Estado se tranforma numa licença para
imprimir dinheiro.
Nesta
situação, estes Estados autoritários, corruptos e em transição para selvajaria
poderão revelar-se com o andamento da outra crise como um modelo real para o
futuro. As tendências autoritárias que nos últimos anos não param de se
desenvolver no Ocidente, tais como a expansão maciça do aparelho de vigilância e
de segurança, apontam claramente nessa direção. A barbarização que se espalha
cada vez mais massivamente com a crise de capital poderá, assim, triturar o
processo civilizacional entre duas mós, que já actualmente interagem com
bastante frequência: o Leviatã asselvajado e o caos que se espalha com uma
cegueira raivosa.
Talvez esta
circunstância de uma aproximação gradual das formas de declínio e dos níveis de
repressão entre o Oriente e o Ocidente explique também a atitude ambivalente da
opinião pública alemã para com Putin ou com a China, que oscila entre a
admiração e o ódio aberto. No entendimento que traz para o lado da acção de
Putin na Criméia amplas camadas da população e muitas celebridades – como o
ex-chanceler Helmut Schmidt – acabam por se exprimir as próprias tendências
autoritárias, a saudade da mão dura que finalmente possa pôr fim ao caos da
crise, enquanto que o ódio à Rússia – para além do alinhamento “atlântico”
muitas vezes existente de diversos actores – é motivado pela prestação histórica
mais importante de Putin e do “PC” chinês: eles têm evitado até hoje que os seus
países pudessem ser transformados numa periferia do Ocidente.
(1)
Em 2000 Putin fez aprovar
o “Poder Vertical” que dividiu a Federação Russa em sete regiões comandadas por
representantes nomeados por ele (Nota trad.).
Original
Mitgefangen,
mitgehangen. Von wegen neuer Kalter Krieg: Russland und China sind Bestandteil
des Weltkapitals
em
www.exit-online.org.
Publicado em
KONKRET
06/2014. Tradução de Boaventura Antunes