Robert Kurz
CRISE E
CRÍTICA
O limite
interno do capital e as fases do definhamento do marxismo.
Um
fragmento. Segunda parte
Nota
prévia editorial: Em 10 de Fevereiro de 2010 Robert Kurz enviou à então
redacção da EXIT! por email um texto com as seguintes palavras: junto a
primeira parte do projecto de livro mais pequeno Crise e Crítica destacado do anterior projecto Trabalho Morto, para discussão no próximo encontro. Poderá ser
retirado do prefácio e da introdução tudo o que for considerado necessário”.
Após o referido encontro o texto foi objecto de pequenos acertos de redacção e
não foi mais modificado desde Maio de 2010.
Como
ele explica no prefácio ao seu último livro Dinheiro
sem Valor, Robert Kurz tinha decidido fazer uma série de livros a partir do
projecto original do livro de grande dimensão Trabalho Morto. O único que ele ainda pôde realmente terminar foi Dinheiro Sem Valor, que apareceu nas
livrarias poucos dias após a sua morte. Crise
e Crítica teria sido outro livro desta série. Dos 36 capítulos por ele
previstos – incluído Introdução e Epílogo – Robert Kurz só teve tempo de
escrever 10. A Introdução e os capítulos 1 a 4 foram publicados na EXIT! nº 10. Os capítulos 5 a 9 são
apresentados de seguida.
Prefácio * Introdução * 1. A teoria da
crise na história do marxismo * 2. O capital vai muito bem. Ignorância situacionista
da crise como falta da dimensão histórica do tempo * 3. Mitologização da teoria
do colapso * 4. Os cavaleiros do apocalipse *
5. Psicologismo para pobres * 6. Será o
capitalismo criticável apenas por falta de funcionalidade? * 7. Crise e
emancipação social * 8. Excurso: a dissociação-valor faz do fetiche o criador
de um mundo de marionetes? * 9. A crise como relação subjectiva de vontade
Mais capítulos
previstos mas já não escritos:
10. O capitalismo
como eterno retorno do mesmo * 11. Empirismo histórico: a admirável
flexibilidade da lógica da valorização * 12. Regresso à má normalidade? * 13. A
crise como mera “função de ajustamento” das contradições da circulação *14. Excurso:
o enfraquecimento e abandono parcial “críticos do valor” da teoria radical da
crise * 15. Sempre de novo o “problema da realização” * 16. A crise tem de ser
pequena ou grande? O conceito reduzido de sistema * 17. A caminho do
biocapitalismo? * 18. Reducionismo ecológico * 19. Capacidade de sobrevivência
do capital individual ou um capitalismo de minoria? * 20. O carácter da
economia pós-moderna das bolhas financeiras * 21. Excurso: crítica redutora do
mercado financeiro, anti-americanismo e anti-semitismo estrutural * 22. A
última instância ou a crença no milagre do Estado * 23. A ilusão democrática * 24.
A questão equivocadamente colocada da propriedade * 25. Keynesianismo de
esquerda ou a redução da teoria do subconsumo * 26. A guerra como solução para
a crise? * 27. Será que a crise apenas desloca as relações globais de poder? * 28.
O sexo da crise * 29. O fracasso na crítica categorial * 30. Síntese social e
socialismo * 31. Excurso: “Forma embrionária” – um mal-entendido grave * 32.
Quem não é mediador? Critérios da imanência sindical * 33. Carnaval de “lutas”
e pacifismo social da ideologia da alternativa * 34. Como Herr Biedermeier (a)
gostaria de tornar tudo bom * Epílogo
5. Psicologismo para pobres
Seguindo os
passos dos críticos e dos adversários da teoria radical da crise pouco se
avança no que respeita ao seu conteúdo. As armas principais deles são outras:
não é a refutação dos conteúdos que constitui o ponto forte da sua
argumentação, mas sim a retórica denunciatória. Sendo óbvio que a polémica visa
atingir os destinatários pessoalmente, e em muitos casos com golpes baixos, ela
tem de ser bem apontada. O que exige uma observação penetrante. Este critério
aplica-se inteiramente sobretudo quando se gostaria de inquirir a psique pretensamente
debilitada do adversário, procedendo-se como que imaginando-se no lugar dele.
Neste aspecto, os habituais críticos de esquerda da teoria radical da crise apresentam-se
muito paternalistas: eles supõem subjacente a toda a abordagem, incluindo o seu
conteúdo analítico, um trabalho de compensação psiquicamente condicionado.
Michael Heinrich
é inultrapassável neste empreendimento de olhar bem no fundo do seu coração
abatido os representantes desta teoria supostamente abalados por uma crise
sobre o sentido da vida: “Encontramos em Kurz a variante modernizada de uma significativa
filosofia da história sem a qual aparentemente não conseguem passar pelo menos em
grande parte aqueles que exercem uma crítica fundamental da situação vigente: a
própria impotência é relativizada pela certeza de que pelo menos também os
adversários superiores não terão longa vida e ao menos isso é uma certeza
segura” (Heinruch, 2000, 41). O que não passa de um truque engraçado para mudar
o terreno da argumentação, de modo a ficar sempre por cima, independentemente
da capacidade de fundamentação.
Vista mais de
perto esta exposição do estado mental mergulha obviamente numa estranha
penumbra. Pois ou Heinrich assume que “grande parte” daqueles que “exercem uma
crítica fundamental da situação vigente” simplesmente tem de se assustar com
irrefutável necessidade perante o superpoder do adversário, precisando por isso
de muletas psíquicas – podendo ele, por sua vez, ter este ponto de vista apenas
porque no fundo não pertence aos críticos fundamentais nem precisa por isso de
quaisquer psicofármacos teóricos, mas pode, pelo contrário, estudar num objecto
exterior como o nosso a necessidade viciante da “filosofia da história” (1). Ou
então, e esta seria uma variante mais engraçada, Heinrich pertence de facto aos
críticos fundamentais, mas àquela pequena minoria de uma espécie de elite
oxfordiana desta crítica que está de tal modo cheia de saúde mental e de força
do ego que consegue olhar nos olhos o adversário, apesar do seu superpoder, sem
o auxílio de substância dopante.
Em qualquer dos
casos Heinrich está a ser, pelo menos no seu mundo imaginário, um veterinário
de almas que de vez em quando deita no divã os teóricos e teóricas do colapso. E
os observadores deste teatro retórico, segundo os seus cálculos, naturalmente hão-de
fazer que sim com a cabeça, quando o senhor da bata branca dirigir as perguntas
ao paciente e (piscando o olho ao público) com grande caridade fizer como se
levasse a sério as suas histórias; sendo que tanto ele como o público sabem que
um limite interno absoluto do capitalismo existe tanto como o monstro de Loch
Ness. A terceira possibilidade, nomeadamente que a interpretação psíquica
“clínica” da teoria radical da crise é uma mera manobra de diversão e que toda
essa atribuição não passa de psicologismo para pobres, isso é que Heinrich e os
seus jeitosos pupilos não querem de modo nenhum admitir.
Naturalmente que
os argumentistas da tertúlia de esquerda, que berram aos quatro ventos de modo
meramente associativo, não em último lugar na blogosfera, para os quais a
discussão do conceito de crise de Marx é um livro fechado a sete chaves, gostariam
de se sentir adulados na sua pretensa firmeza pessoal de um “anticapitalismo”
oco e de pertencer em todo o caso à elite oxfordiana da crítica; e assim a
pichelaria de almas de Heinrich para a teoria radical da crise cai em terreno
fértil, justamente porque essa gente não se quer envolver em questões de
conteúdo com tal teoria. O que já significaria ser preciso assumir pessoalmente
o esforço de uma leitura concentrada, e a questão não pode ser levada tão a
sério. A interpretação psicologista serve justamente para se poder sentir por
cima dos “teóricos do colapso” sem o esforço do conceito nem a fundamentação
desagradavelmente obrigatória.
Consegue-se
assim ignorar com à-vontade que o psicologismo da questão das motivações não
adianta nada para saber se uma teoria é certa ou errada dentro da sua
condicionalidade histórica. Já Marx teve de ser repetidamente “refutado”
através da recondução da sua teoria a motivações pessoais nada limpas. (2) De
resto, não admira que nos tempos pós-modernos tal apoio da opinião pejorativa
sobre conteúdos teóricos tenha boa saída. O relativismo da ideologia da
circulação dá-se bem com a revitalização do assédio psicologista; pois na
economia neoclássica as preferências subjectivas dos participantes no mercado
também são consideradas como decisivamente constitutivas da relação social e a
economia possivelmente deve ser “até 90 por cento de psicologia”. Numa época de
redução virtual do mercado à psicologia, que actualmente caminha para a ruína,
este pensamento também tinge o discurso de esquerda, tornando-se meio de luta.
Teríamos de ter uma nova “teoria do colapso”, simplesmente porque estamos
psiquicamente perturbados e de algum modo doentes.
6. Será o capitalismo criticável apenas por
falta de funcionalidade?
A retórica de
uma intervenção sem conteúdo, que pretende atribuir alguma coisa ao adversário
antes de se ter colocado sequer no terreno da sua fundamentação, continua imputando
à teoria radical da crise que ela vai dar em não se criticar o capitalismo “em
si”, mas apenas se lhe censurar a sua falta de funcionalidade. Já aqui se dá a
entender que a relação entre crise e crítica constitui um problema central
também para as fases de definhamento da discussão do marxismo residual e do
pós-marxismo em torno da inacabada teoria da crise de Marx, discussão à qual,
no entanto, se querem apenas furtar. As invectivas sobre o tema tentam separar
o capitalismo como tal do seu potencial de crise e tirar proveito disso
denunciatoriamente. Assim perguntam retoricamente os ideólogos “anti-alemães”:
“Seria o capitalismo uma coisa racional se não tivesse as suas dificuldades de
valorização…?” (Initiative Sozialistisches Forum 2000, 105). Naturalmente que
ninguém afirma que o capitalismo sem crise seria uma “coisa racional”; esta
suposta implicação é uma pura invenção, a fim de não ter de se envolver na
argumentação da teoria da crise rejeitada ou para atribuir-lhe um odor de falta
de radicalidade.
Tal saltar para
outro plano encontra-se também em Michael Heinrich. Assim afirma ele “que Kurz,
apesar da mais furiosa demarcação do ‘marxismo do movimento operário’, reproduz
alguns dos seus elementos centrais: assim, por exemplo... uma crítica moralista
do capitalismo (o capitalismo é medido pelos objectivos que ele de modo nenhum
tem, por exemplo, quando se constata o ‘fracasso’ do capitalismo por ele produzir
desemprego e miséria)” (Heinrich 2000, 1). Ora, por um lado, a crítica da
dissociação-valor de modo nenhum avalia o capitalismo pelos objetivos que ele
não tem, acontece é que um aspecto da argumentação consiste em assinalar o
fracasso da ideologia em curso desde
Adam Smith sobre o carácter do capitalismo como “aumento do bem-estar geral”,
ideologia que há mais de duzentos anos se tornou cada vez mais popular e que é
debitada tanto pelas ciências sociais e históricas como pelos historiadores
académicos. Trata-se, portanto, de uma intervenção de crítica da ideologia, tanto
em relação à história capitalista como em relação à propaganda neoliberal desde
o colapso do socialismo real.
Esta
argumentação de crítica da ideologia fundamenta-se justamente no facto de o
capitalismo não ter por objectivo o aumento do bem-estar, mas apenas a
valorização do valor; ou seja, a produção de uma mera “riqueza abstracta”
(Marx) como fim em si, enquanto a satisfação das necessidades materiais e
sociais poderá ser na melhor das hipóteses um subproduto da lógica da
valorização e também por isso é repetidamente negada na prática – e de modo
nenhum apenas na crise. A crítica do marxismo do movimento operário a estes
fenómenos desliza sobretudo para o moralismo, porque toma por última causa o
desejo subjectivo de domínio da classe capitalista e ignora notoriamente o
carácter fetichista do fim em si da máquina social capitalista e das suas
determinações categoriais (ver caps. 8 e 9). Em contraposição a isto, na
elaboração teórica da crítica da dissociação-valor desde o início que foi
fundamentalmente rejeitado o “discurso da justiça” moral até hoje dominante.
Não é só Heinrich
que coloca este verdadeiro contexto da argumentação de pernas para o ar, por
razões óbvias. Também Ingo Stützle se compraz na mesma atribuição
contrafactual: “A fonte a partir da qual Kurz alimenta a sua crítica é um
critério normativo que é aplicado à realidade social, sendo a discrepância
entre ‘ser’ e ‘dever’ contraposta repreensivamente ao capitalismo. Os fenómenos
denunciados por Kurz como a pobreza, a fome, a destruição da natureza, no
entanto, não são mais que a expressão da dinâmica do modo de produção
capitalista. Robert Kurz está prisioneiro de uma autoconfiança burguesa de
constituição idealista, que pretende poder modificar as realidades sociais com
um ideal normativo” (Stützle 2001). Também neste ponto de uma falsa atribuição
denunciatória os opositores da teoria radical da crise se copiam uns aos outros
para ganharem “autoconfiança”.
Desemprego
estrutural de massas, subemprego global, empobrecimento e miséria naturalmente
que não devem ser criticados dum ponto de vista ético abstracto, como uma
fasquia exterior. O discurso da ética leva sempre a esconder o complexo causal
do contexto formal e funcional capitalista e a deslocar o problema para um bom
ou mau comportamento social individual e subjectivo dos funcionários. A crise não
é então entendida como limite interno temporário ou absoluto da lógica da
valorização, mas sim reduzida a deficiências morais pessoais, ou a “má gestão”
etc. Independentemente da actualização do potencial de crise imanente, a
repressão e exclusão sociais já pertencem sempre à relação de capital e portanto
de concorrência. Para Marx a análise dos mecanismos capitalistas já era per se “crítica através da exposição”.
Isso implica que a negação do desaforo fundamental não precisa de qualquer
“ética” exterior, sendo pelo contrário inquestionável em si, porque o carácter
negativo de uma produção social de miséria não carece de fundamentação extra e
por isso a relação de capital surgida em processos históricos cegos não tem
qualquer razão justificativa em torno da qual se devesse regatear. (3)
Por outro lado,
a fundamentação específica da teoria da crise de modo nenhum consiste numa
referência geral ao “desemprego e miséria” que o capitalismo produziu sempre e
não apenas nas grandes crises. Consiste, sim, no facto de na terceira revolução
industrial, para lá do conceito de Marx do “exército de reserva” que aumenta e
diminui ciclicamente, se ter constituído à escala mundial uma base
qualitativamente nova de desemprego e subemprego em massa, que aumenta
independentemente dos ciclos. Isto é interpretado, com referência ao conceito
de substância de Marx, como um indício do limite histórico interno do movimento
de valorização. (4) Não tem nada a ver com uma crítica moralizadora; trata-se
apenas de uma determinação da teoria da acumulação e da crise. Heinrich e
outros teriam de aduzir neste plano, relativamente ao conceito de mero
“exército de reserva”, uma contra-argumentação fundamentada, em vez de irem
para a denúncia retórica. É um simples facto que o desemprego estrutural global
vai de par com processos de empobrecimento e miséria fenomenologicamente semelhantes
aos do capitalismo inicial, mas situados num nível completamente diferente do
desenvolvimento capitalista; só que não é a referência a essa facticidade que
constitui a fundamentação da teoria da crise.
Se, portanto, a
nova qualidade do desemprego em massa e do subemprego, para lá do simples
“exército de reserva” habitual, é incluída na argumentação da teoria radical da
crise, não é por razões ético-morais, mas sim por razões da teoria da crise. A
falta de “emprego” global, por causa do nível de produtividade atingido na
imanência, conduz à falta de “capacidade de exploração” do capital, e portanto
à falta de produção de mais-valia real e com isso à falta de poder de compra no
conjunto da sociedade. Para a reprodução sempre alargada do capital desenvolve-se
assim aquele limite interno que, finalmente, após um período de incubação
condicionado pelos ciclos de retorno (e pelos processos de simulação do capital
financeiro), acaba por se manifestar na superfície do mercado como quebra das
vendas. Situação em que a restrição do poder de compra social para lá de uma
determinada medida, que o marxismo vulgar percebe como mera pobreza de massas a
favor do capital, torna-se num problema da própria valorização.
A finalidade do
capital não é a satisfação das necessidades, através da produção de “riqueza
concreta”, mas sim o fim em si da valorização, a produção de “riqueza
abstracta”. Todavia, a existência física dos seres humanos e a reprodução
material da sociedade constituem simultaneamente uma condição de possibilidade
(ainda que permanentemente manobrada de forma restritiva) deste fim em si; esta
reprodução material é o “suporte” necessário da valorização, a abstracção do
valor não passa sem a “encarnação” nos corpos reais das mercadorias e, nessa
medida, o aspecto abstracto e o aspecto concreto, físico já se limitam e
condicionam sempre reciprocamente na “abstracção real” do capital.
Assim, é um
perfeito disparate o que os ideólogos “anti-alemães” (que aqui se limitam a
representar o marxismo vulgar do costume) afirmam: “Quanto mais profunda,
drástica e catastrófica é a miséria que ele (o capitalismo, R. K.) produz –
tanto melhor funciona o capital, tanto melhor ele faz jus ao seu conceito”
(Initiative Sozialistisches Forum 2000, 106). Isso seria assim se a “miséria
catastrófica” constituísse a finalidade imediata e subjectiva do capital (tal
pensamento constitui, ele próprio, aquele raciocínio aconceptual,
superficialmente moral que é simplesmente imputado à crítica da
dissociação-valor). Mas a finalidade imediata consiste no fim em si da
valorização, sendo completamente indiferente a quantidade de miséria ou do chamado
“bem-estar” que daí deriva como subproduto. O capital funciona tanto melhor
quanto mais ele consegue extorquir socialmente mais-valia e realizá-la; e
funciona tanto pior quanto menos o consegue. A miséria só lhe é útil se estiver
associada ao aumento do espremer do material humano; e não lhe serve de nada ou
torna-se na sua própria ruína se resultar do facto de este espremer já não ser
conseguido ele próprio suficientemente, por caírem fora da reprodução
demasiados “supérfluos” que nem produzem mais-valia nem a realizam através da
compra de mercadorias.
Entre o fim em
si fetichista e a miséria há portanto um nexo, mas não qualquer identidade
imediata, como uma espécie de reciprocidade quantitativa (quanto mais miséria,
mais valor). Pelo contrário, o capital, como relação social, até um certo grau
tem de reproduzir a sociedade segundo os seus critérios e sob o ditame dos seus
desaforos fundamentais, para “fazer jus ao seu conceito”. Quando a queda do
poder de compra, sistemicamente condicionada por falta de suficiente produção
alargada de mais-valia, ultrapassa o limite de dor, cai a própria reprodução
alargada do capital sistemicamente necessária (ver sobre isto Kurz 2009). Os
opositores da teoria radical da crise, ao reinterpretarem este argumento como
um argumento “moral”, simplesmente se furtam a fundamentar o seu próprio
postulado de que a produção de mais-valia real poderia continuar desenfreada
sob as condições da terceira revolução industrial.
O próprio
Heinrich, no fim da sua introdução à crítica da economia política, cai
embaraçosamente no preciso contexto de fundamentação em curto-circuito e
sobretudo moralizador que ele imputa simplesmente à teoria radical da crise. Para
ele “as destruições sociais que o capitalismo global causa… através de crises e
desemprego” (Heinrich 2004, 221), a “destruição das bases naturais da vida”
(ibidem), bem como as guerras sempre novas são no caso “razões suficientemente
boas para abolir o capitalismo” (ibidem). Isto pode ser dito assim não se
separando o capitalismo dos seus efeitos, nem o seu contexto funcional do seu
potencial de crise. Naturalmente que já se trata também e sempre do capitalismo
como relação de submissão ao fim em si do trabalho abstracto e da valorização,
tal como ela foi formulada desde o início pela crítica da dissociação-valor e
que como tal inclui os efeitos negativos e as crises.
Não pode deixar
de se achar justo que ele próprio experimente realmente (e com mais razão) da
parte da Gegenstandpunkt a mesma
reinterpretação retórica que ele aplica à teoria radical da crise. Aí se diz,
na recensão da sua brochura introdutória: “Ele enumera os males sem classe que as
pessoas boas e conscientes dos problemas dificilmente encontram sem qualquer
leitura de Marx; abusos generalizadamente deplorados, sob os quais não ocorre
de facto a exploração da maioria trabalhadora, mas antes fortes efeitos deste modelo económico, que ameaçam
a sua própria existência… O modo de produção merece crítica não pelo
funcionamento da sua finalidade, mas sim pelas crises periódicas e temporárias
e pela extraordinária necessidade a que ele então obriga a sociedade… Não é o
facto de as pessoas viverem para o capital que fala a favor da sua abolição…,
(não) é o curso normal da economia capitalista, mas as grandes catástrofes
causadas pelo capitalismo…” (Gegenstandpunkt
2008, 116 sg. Destaque da Gegenstandpunkt).
A Gegenstandpunkt refere aqui “as interpretações erradas… de Robert Kurz…,
das quais Heinrich está mais próximo do que lhe devia agradar” (ibidem, 107).
Trata-se, porém,
de uma má interpretação da Gegenstandpunkt
e já antes da parte dos publicistas “anti-alemães”, tal como dos próprios
Heinrich, Stützle & Cª, quando pretendem separar a crítica da relação de
submissão basilar ao trabalho abstracto da reflexão sobre as crises inerentes e
a dinâmica histórica interna desta relação. O que deve então ser
particularmente “radical”? Ambos os aspectos pertencem um ao outro real,
conceptual, analítica e historicamente. Ou se critica o capitalismo no seu todo
ou não se critica; e faz parte deste todo justamente que o desaforo existencial
fundamental de deixar enchouriçar a sua vida pela máquina da valorização e pelo
seu fim em si (na formulação frequente da crítica da dissociação-valor) está
atacado por um potencial interno de crise que pertence a este carácter de
desaforo e o agrava.
Quando a
exigência de “viver para o capital” já não pode ser cumprida, mesmo se é
querida, estamos apenas perante uma potenciação desta relação. É por isso que
passamos presentemente, quando a crise surge como uma “catástrofe natural”, de
acordo com um entendimento que explica a reprodução capitalista como “relação
natural”. Aqui é invocada uma falsa solidariedade que assenta na aceitação do
desaforo e, no limite interno da valorização, exige às pessoas uma penitência pessoal
em seu nome. Pretender criticar o capitalismo apenas no seu “curso normal”,
deleitar-se nisso e esconder o carácter da crise na crítica – esta atitude é
ela própria suspeita de falta de radicalidade e cheira a um resseguro, tão
inconsciente como imaginário, de que este “curso normal” seja atingido pela
crise apenas superficialmente e que por fim se possa continuar nele.
Não pode passar
em claro que a afirmação de que a crítica da dissociação-valor, com a sua
crítica radical, criticaria “… não o modo de produção capitalista, mas apenas a
sua propensão para a crise” (Diederichs 2004, 129) não passa de uma insinuação.
Disto, segundo o observador da discussão, dificilmente os seus representantes
poderiam ser acusados: “Nas suas obras eles criticam expressamente o
capitalismo como um todo. Kurz, por exemplo, no Schwarzbuch Kapitalismus [O livro negro do capitalismo] argumenta
claramente sobre o assunto, indicando detalhadamente os horrores da época
capitalista…” (ibidem, 130).
Daí tira o autor
efectivamente a conclusão: “Ora se se rejeita a justificação da existência do
modo de produção capitalista in toto,
nesse caso a teoria do colapso é irrelevante para a motivação de tal crítica”
(ibidem). A questão, porém, não é a motivação pré-teórica, que já se alimenta
sempre da raiva contra a situação, independentemente de qualquer análise
conceptual, mas sim o estatuto e o conteúdo desta análise em si. Para que a
raiva não permaneça espontânea e desamparada ela precisa dessa análise para
conseguir compreender em toda a sua extensão o terreno da luta e o seu objecto.
Uma crítica que considera a crise um mero epifenómeno tem de ser designada como
ingénua e “existencialista” no mau sentido, mesmo que se apresente com a
retórica “materialista”.
7. Crise e emancipação social
A falsa acusação
de que a posição da crítica da dissociação-valor fundamentaria a sua oposição
ao capitalismo unicamente nesta falta de funcionalidade reduz toda a abordagem
à teoria radical da crise considerada isoladamente, ao mesmo tempo que gostaria
de apagar a crítica fundamental (justamente categorial)
da moderna relação de fetiche e do carácter desaforado do trabalho abstracto
que dela fazem parte. No entanto aqui também salta à vista um quiproquó digno de nota, nomeadamente porque o
conceito de crise ou de limite interno é projectado sem mediação na intencionalidade da crítica e da
suplantação práticas do modo de produção e de vida capitalista. Aqui se
expressa mais uma vez a confusão sobre a moderna dialéctica sujeito-objecto que
já marcara os antigos debates sobre a teoria da crise. Essa confusão
apresenta-se como falsa identificação da crise com a crítica, ou seja, de
limite interno objectivo, por um lado, e vontade de emancipação social, por
outro. Tal como nos debates antigos, nem ambas podem coincidir imediatamente
(crise em sentido forte apenas como resultado da crítica prática), nem podem
constituir uma alternativa exterior da interpretação (crítica em sentido forte
como oposição à objectividade da crise).
Aqui reside
também a razão essencial da mitologização da “teoria do colapso” do marxismo do
movimento operário feita por Michael Heinrich e outros. Rosa Luxemburgo e
Henryk Grossmann aproximaram-se, ainda que com fundamentações redutoras, do
conceito de limite interno objectivo da valorização do capital. Mas a gritaria
geral contra esta fundamentação objectiva a partir do próprio processo de
acumulação do capital levou a que ambos os protagonistas isolados fizessem
regredir esta fundamentação objectiva para uma mera “ficção teórica”, como se viu,
e não apenas isso. Ocorreu também uma reinterpretação subjectiva do conceito de
“colapso”, no sentido do “sujeito de classe” da acção: enquanto a corrente
social-democrata reprovava este conceito em favor de uma política de reformas
sem rupturas, nas interpretações leninista e de extrema-esquerda o “colapso”
surgia de repente como resultado da acção revolucionária do proletariado; ou
seja, já não como determinação interna, mas plenamente separado da
autocontradição interna da valorização. A falta de clareza teórica era no caso metaforicamente
inflada, pois um “colapso”, de acordo com o significado da palavra, só pode ser
um acontecimento inconsciente, enquanto a ultrapassagem consciente da relação
de capital é uma situação completamente diferente. A reinterpretação segundo a
qual o capitalismo “colapsa” através dum simples acto de vontade do proletariado
dissolve a fundamentação na teoria da acumulação em retórica revolucionária e
passa ao lado do problema fundamental. É disso que vive a mitologização histórica
de Heinrich, tomando esta redefinição “na teoria da revolução” falsamente como
prova do predomínio de uma “teoria do colapso” objectiva no marxismo do movimento operário, que há muito estaria
assente. Na realidade foi com isso justamente que se reiteraram os sentimentos
do marxismo do movimento operário contra qualquer fundamentação objectiva de um
limite interno da valorização.
Deste ponto de
vista, tal como nos debates clássicos, é repetidamente imputada à teoria
radical da crise uma certa ideia de que o atingir de um limite interno
objectivo deveria substituir a crítica ou simplesmente torná-la supérflua.
“Fim” ou “limite” objectivo é imediatamente equiparado a “suplantação
emancipatória”. Uma vez que esta última, evidentemente, não pode dar-se sem
acção emancipatória consciente das pessoas, a valorização do valor só “deve”
esbarrar no limite de uma contravontade e não no seu próprio limite interno: “O
capitalismo está no fim? Uma sociedade após o capitalismo pressupõe sobretudo
uma consciência que a ambiciona e por ela luta… Se a consciência das massas não
pretende para si qualquer sociedade libertadora – e de momento não vê nada a
seguir – após o colapso do sistema capitalista do valor só pode haver uma
coisa: capitalismo ressuscitado das ruínas…” (Ebermann/Trampert 1995, 64).
Não pode haver
maior paradoxo: porque o capitalismo não “deve” esbarrar no limite interno da
sua auto-contradição, mas sim apenas num limite externo voluntário da
consciência das massas, ele deve portanto sobreviver ao seu próprio colapso
(assim involuntariamente admitido como possibilidade implícita), sem que para o
efeito tenha havido outra condição do que ele ter continuado a ser “querido”. A
possibilidade de existência do capitalismo parece portanto não passar de um problema
de consciência e de vontade.
Os crentes na
redução da crise à crítica, ao imputarem o inverso à teoria crítica da
dissociação-valor, merecem elogios da parte da Gegenstandpunkt: “A sua rejeição das esperanças no colapso e a sua
insistência em que nem as suas vítimas nem ninguém eliminam o capitalismo se
deixarem de o considerar necessário, é simpática…” (Gegenstandpunkt 1996, 90). O pressuposto desta “simpatia”,
naturalmente, é a inveterada pressuposição de que a dedução de um limite
interno objectivo seja idêntica à esperança numa espécie de emancipação
automática. Nesta imputação sem qualquer fundamento “…Kurz promete a libertação
dos seres humanos… através da auto-destruição do sistema de fim em si ao qual
eles se adaptaram tão incondicionalmente. A crise final do capitalismo é o
papel do iluminista – ou melhor: é atribuída ao destruidor do conformismo…; isto
está invertido, não porque a crise seja uma ninharia há muito suplantada, mas
sim porque nada se supera por si” (Gegenstandpunkt
1996, 89, 91).
Uma vez que,
apesar de todas as diferenças, a “simpatia” entre marxistas residuais e
pós-marxistas é tão grande na rejeição comum da teoria radical da crise, os
ideólogos “anti-alemães” repetem alguns anos mais tarde a mesma acusação,
afirmando acerca desta teoria: “Perfeitamente ao estilo da tradição
social-democrata e estalinista… procede-se como se este capitalismo se
resolvesse por si mesmo” (Initiative Sozialistisches Forum 2000, 103); a teoria
da dissociação-valor “… postularia… um automatismo de crise e libertação”
(Grigat 2007, 214). Como de costume é entendida como posição contrária a uma
formulação de Rosa Luxemburgo de que a valorização poderia “continuar… de facto
até o Sol se apagar, sem que o capitalismo esbarrasse noutro limite que não fosse
o facto de as pessoas não o quererem mais” (Initiative Sozialistisches Forum
2000, 71). Já foi esclarecido que justamente “a tradição social-democrata e
estalinista” nunca quis saber de um limite interno objectivo; esta argumentação
limita-se a reproduzir a falsa atribuição de Heinrich. Abstraindo disso ela
nega a dinâmica objectiva e subsume o “limite” na imediatidade de relações de
vontade. Onde está verdadeiramente o problema?
Aqui estamos
novamente perante a redução da teoria da acção ou “praxeológica” que parte de
um facto indubitável: a socialidade não consiste senão num agir voluntário das
pessoas; não existe qualquer instância extra-humana acima das nuvens que
dirigiria este agir. O que se entendia como determinação transcendente da acção
nas constituições religiosas pré-modernas (e também no reverso irracionalista
da razão iluminista capitalista), como Deus, Providência, destino etc.,
dissolve-se na acção temporal e terrena das próprias pessoas. Visto assim,
parece não haver quaisquer momentos determinantes no desenvolvimento
económico-social. O que, no entanto, escapa notoriamente a esta secularização
praxeológica é a “transcendência imanente” terrena da própria relação de
capital. A acção voluntária de modo nenhum é simplesmente contingente, mas a
vontade condicionante da acção é ela própria transcendentalmente constituída e
pré-formada, de tal modo que tanto ela como a própria acção apontam para um
ponto cego que produz como resultado uma objectivação e determinação igualmente
cegas.
Naturalmente que
esta objectivação é ela própria por sua vez um resultado de acções. Para poder
entender este contexto, no entanto, é preciso distinguir dois modos de agir diferentes;
designadamente, por um lado, aquele agir histórico que constituiu o capitalismo
e, por outro, o agir “dentro” desta formação social já constituída. O agir
constituinte originário, naturalmente, não deve ser entendido como “vontade de
capitalismo” consciente, ainda que ele tenha sido levado a cabo por processos
de vontade nas condições de então. O processo de transição “para” o capitalismo
teve determinados pressupostos (que devem ser investigados como tais) na
dissolução material e ideológica das velhas formações agrárias.
Aqui se inclui a
transformação protestante na própria constituição religiosa, que proveio das
suas contradições internas amadurecidas e elevou o conceito de “trabalho”, até
então determinado negativamente (como relação de dependência pessoal), a uma
generalidade abstracta, descrita por Max Weber no seu estudo sobre a “ética
protestante”. No aspecto material foi a revolução militar proto-moderna das
armas de fogo que desencadeou uma “corrida ao armamento” de tipo novo que já
não podia ser representada nas “formas naturais” agrárias, mas apenas através
do poder abstracto do dinheiro até então marginal. Assim surgiu a desmedida
“fome do dinheiro” dos príncipes, pormenorizadamente documentada pelos
historiadores. Os impostos feudais em espécie foram transformados em obrigações
monetárias (“monetarizados”) e deste modo pouco a pouco todas as relações
sociais transformadas em relações monetárias. Com isto, no entanto, estavam
associados “efeitos colaterais” imprevistos e amplos que, independentemente da
vontade e do objectivo inicial dos actores poderosos, produziram “atrás das
suas costas”, em formas de desenvolvimento cegas, aquele fim em si da máquina
de socialização negativa do trabalho abstracto e da valorização, que finalmente
também devorou os seus pais involuntários na “revolução burguesa” e desenvolveu
o capitalismo moderno como formação autónoma (o conceito de capitalismo surgiu
apenas no início do século XIX).
Já no processo
original de constituição o resultado não pode ser explicado “praxeologicamente”
de forma redutora, pelo contrário, a práxis (voluntária) inclui um momento
transcendental na passagem das relações de fetiche pré-modernas (de
constituição agrária-religiosa) para as relações de fetiche modernas,
capitalistas. Nem antes nem depois o agir fica absorvido nos objectivos
estabelecidos voluntária e conscientemente pelos actores, nem portanto pode ser
determinado meramente em termos de teoria da acção. Por isso não pode ser
deduzida qualquer ontologia da transcendência negativa produzida pelos próprios
seres humanos e a ser produzida sempre de novo do seu contexto social, mas
apenas a factualidade socialmente condicionada de que, nestas determinadas
relações e processos de transformação de nós conhecidos, os seres humanos, na
expressão de Marx, não “dominam” conscientemente a sua própria reprodução material
e social, pelo contrário, esta confronta-os como poder estranho e aparentemente
exterior, em formas inconscientes surgidas através das consequências não
tomadas em consideração do seu agir. (5)
Uma vez surgida
e cada vez mais “em processo sobre a sua própria base” (Marx), no entanto, a
máquina de fim em si mesmo da valorização, justamente através do agir de todos
os participantes “nesta” relação social nova e autonomizada, estabelece a
partir de si as “condições de existência” e “formas de pensamento” por Marx
designadas objectivas. Através do agir assim condicionado constituíram-se
“leis” aparentemente “naturais” do contexto formal e funcional que por sua vez
determinam o agir e levam a resultados objectivos desde que esta espécie de
socialização negativa e cega predomina. Foi justamente neste sentido que Marx
designou o capital (não confundir com os capitalistas) e a sua lógica de
valorização como “sujeito automático”. A novidade nesta espécie de objectivação,
comparativamente com todas as formações anteriores, está em que o contexto
funcional já não se apresenta estático, mas
sim “em processo” das contradições internas, e é executado através de um
sistema de concorrência universal nunca antes existente, cuja “coerção muda”
(Marx) faz avançar uma dinâmica cega que se sobrepõe aos objectivos
(voluntários) imanentes dos actores e um desenvolvimento incontrolado das
forças produtivas e/ou destrutivas deste modo de produção e de vida.
Importante aqui
é que a resultante objectivada desta dinâmica não provém da mera soma exterior
das acções propositadas empiricamente imanentes e não coordenadas (que
imediatamente também podem ser diferentemente imanentes, sendo portanto
contingentes) dos diferentes actores sociais; isso seria ainda um entendimento
redutor do processo. Pelo contrário, a vontade dos suportes da acção,
independentemente das suas formas de desenvolvimento empiricamente
contingentes, já está presa no contexto funcional pressuposto; ou seja, ela é a priori determinada quanto à forma e
esta forma da vontade fetichistamente constituída (nomeadamente viver
miseravelmente a sua vida sob o ditame da valorização e ver aí a única forma
possível de reprodução pessoal), já é ela própria que produz as “leis”
objectivas, que por sua vez levam aos correspondentes resultados objectivos e
assim a uma certa determinação do desenvolvimento cego nesta base. (6)
Perante este
pano de fundo é preciso distinguir com exactidão entre crise e crítica. A
crise, segundo o seu conceito, é completamente determinada pelo lado
objectivado e determinado da relação social, o qual produz um agir dos seres
humanos que é comandado por uma forma cega e apriorística da sua vontade cujo
contexto global inconsciente se apresenta à superfície como o curso de um
processo natural ou até de uma máquina. Isto aplica-se tanto às crises de
imposição histórica do capital e às crises temporárias cíclicas ou estruturais,
como também ao limite interno absoluto que historicamente começa a
manifestar-se. Aqui é preciso ter em consideração que apenas a barreira da
crise como tal é determinada pela dinâmica das acções imanantes formalmente determinadas,
enquanto as condições concretas (por exemplo, a forma específica de
desenvolvimento das forças produtivas), as respectivas formas de
desenvolvimento e os modos de reacção ideológicos, incluindo os seus resultados,
permanecem relativamente contingentes. Determinada é a dinâmica interna
enquanto tal, a relação geral entre o desenvolvimento das forças produtivas e as
condições modificadas de valorização, enquanto as respectivas tecnologias, as
medidas tomadas pelos actores e o comportamento das pessoas na crise de modo
nenhum surgem “automaticamente”. Mas isto não altera nada o carácter
estritamente objectivo da crise enquanto tal.
As coisas
passam-se de modo fundamentalmente diferente com a crítica. Se nem as reações
destrutivas e até assassinas da consciência ideológica à crise que irrompe como
uma desgraça natural são determinadas, naturalmente que muito menos o é a
crítica radical emancipatória da relação de fetiche subjacente. Por isso se
pode desde logo retirar a conclusão geral de que não existe nenhuma relação causal imediata entre
crise e limite absoluto, por um lado, e crítica emancipatória, por outro. A
crise é objectivamente determinada, a emancipação de modo nenhum o é. A relação
de fetiche, com o seu absurdo carácter desaforado, pode ser fundamentalmente
criticada mesmo sem crise nem colapso. Inversamente, porém, também a crise pode
surgir, ou o limite interno histórico ser atingido, sem que se forme a crítica
emancipatória e sem que se aspire à ultrapassagem prática das relações
determinadas de modo fetichista; o que também acontece quando as pessoas,
justamente sob a impressão do desabar da crise, se agarram com toda a força às
condições de vida capitalistas e não querem outra coisa.
Hoje, neste
aspecto, estamos confrontados com uma dialéctica mortalmente perigosa,
justamente na medida em que, por um lado, o limite interno erguido de forma
puramente objectiva pela auto-contradição lógica do processo de valorização se
torna efectivamente absoluto e histórico, por outro lado, no entanto, os seres
humanos internalizaram as “condições de vida” e “formas de pensamento”
dominantes tão profundamente como nunca antes, pretendendo portanto, apesar das
pavorosas distorções sociais, reproduzir-se até às últimas no contexto formal e
funcional capitalista que é considerado “sem alternativa”. Daqui resulta uma
enorme tensão para cuja solução, no entanto, o entendimento comum de crise e
crítica na esquerda em geral já não adianta nada.
O
“funcionamento” do capitalismo está tão internalizado, mesmo entre os teóricos
de esquerda, que a auto-destruição interna do processo cego de valorização
justamente pelo seu próprio contexto funcional surge simplesmente como
impensável. Assim questiona retoricamente Michael Heinrich: “Tanto nas antigas
teorias do colapso como nos seus novos ressurgimentos é o próprio ‘colapso’ que
já é problemático: como se há-de imaginar isso para uma situação social?
Miséria e desemprego por todo o lado? Mas qual será então a diferença em relação
a uma crise ‘normal’? Ou será realmente o fim da produção de mercadorias?”
(Heinrich 1999). Por consequência poder-se-ia imaginar a previsão (por ele não partilhada)
quando muito de uma “situação” como de “decadência”, na qual “continuaria (a
haver) produção de mercadorias e capitalismo, mas em estagnação e com terríveis
efeitos sociais” (ibidem).
Este raciocínio
reiteradamente aduzido pretende determinar os efeitos sociais negativos apenas
na sua dimensão quantitativa, continuando fora da capacidade de imaginação uma
ruptura qualitativa produzida pela dinâmica interna. Neste aspecto já não se
consegue formular a transformação de quantidade em qualidade. Assim, por
exemplo, o conceito de “desemprego em massa” só faz sentido se, por outro lado,
continuar a haver “emprego” numa dimensão tal que haja capacidade de reprodução.
Se faltar a possibilidade, disponibilizada pelas condições da valorização, de
utilizar força de trabalho viva numa ordem de grandeza capaz de reprodução
social, ocorre uma transformação de quantidade em qualidade: todo o contexto de
reprodução determinado pela lógica da valorização começa a paralisar.
O que nas crises
“normais” (sendo que o conceito de normalidade deve aqui ser posto em questão)
surge apenas parcialmente, atinge o próprio núcleo do sistema e leva à completa
desagregação do modo de produção e de vida capitalista, numa “situação” que faz
estalar o verniz da civilização (7) e lança a humanidade numa idade das trevas.
Se Marx, afinal, considera possível a queda comum na “barbárie” da humanidade
socializada no capitalismo, caso não se realize a ultrapassagem emancipatória
da relação de fetiche, ele pega assim num conceito de demarcação ambiguamente
na lógica da dominação; mas, uma vez que este (de resto à semelhança do
conceito de fetiche) se refere às relações “próprias” e à sua potência de
crise, ele pode servir para designar o processo de decomposição destrutivo e
violento da formação capitalista. (8)
A queda na
barbárie constitui uma metáfora para processos não mais concebíveis
teórico-analiticamente (também a própria teoria sob tais condições terá de decair),
processos que vão muito para além de um capitalismo que “continuaria” a existir,
apenas “em estagnação” e com “terríveis efeitos sociais”. Para se fazer uma
ideia disso é preciso apenas prolongar as consequências já observáveis da
irrupção da crise e determiná-las na sua própria lógica. Esta lógica consiste
na generalidade no facto de que a reprodução social vai sendo progressivamente
paralisada por falta de rentabilidade ou de “capacidade de financiamento”. Isto
vai desde a paralisação do capital industrial e agrícola, ou das cadeias de
distribuição híbridas a nível continental ou transcontinental para
abastecimento de bens alimentares e de artigos de consumo diário, passando pelo
abastecimento de água e energia, bem como do colapso do serviço de saúde até à
dissolução das funções estatais. É próprio da ignorância da visão metropolitana
sobre a situação mundial não querer ver que este “estado” já foi alcançado em
grandes regiões mundiais; apenas parcialmente amortecido para minorias, através
da ligação ainda mantida ao mercado mundial e às suas conjunturas de déficit.
Se faltar esta última almofada, e de facto também mesmo para os centros, então
também a quantidade de empobrecimento em massa se transformará neste sentido na
qualidade de um morticínio global em massa, uma vez que não é possível o
regresso a uma economia de subsistência para quase sete mil milhões de seres
humanos; para já não falar dos excessos de violência a isso associados, que
também já se podem ver a começar e não em último lugar provêm da transformação
dos aparelhos de segurança e de violência, eles próprios já sem “capacidade de
financiamento”, em bandos de saqueadores.
“Limite interno
absoluto” significa, portanto, que a produção de mercadorias é completamente
paralisada por falta de poder de compra e de capacidade de financiamento, não
sendo no entanto conscientemente suplantada como forma de reprodução; em vez
disso começa então a esgotar-se a própria reprodução da vida social juntamente
com a sua forma negativa. A miséria da paralisação já não constitui qualquer
momento de um funcionamento do capital, mas sim da sua própria miséria, porque justamente
de acordo com a sua natureza ele nunca pode parar e tem de reproduzir a
sociedade precisamente através da submissão à sua infatigável roda de
Juggernaut. Por isso mesmo é que a autodestruição do capital não é idêntica à
emancipação.
Heinrich &
Cª no fundo também partem do princípio de que “na pior das hipóteses” seria
possível limitar quantitativamente o alastrar da miséria e que as funções
capitalistas prosseguiriam mesmo que travadas. Mas a própria administração
repressiva da crise não pode deixar de ser afectada pelo manifesto estado de
excepção por tempo indeterminado. Se não surgir qualquer novo potencial de
valorização (e Heinrich deve interrogar-se sobre o que acontecerá nesse caso,
mesmo que o considere excluído), então também os serviços institucionais da
“riqueza abstracta” não poderão manter-se duradouramente para os últimos
beneficiários. A consequência seria não apenas um imediato morticínio em massa,
mas também, dentro de poucas gerações de sobreviventes, uma queda dos
conhecimentos, das capacidades, das técnicas culturais etc., incluindo de resto
as redes de informação e as estruturas de comunicação produzidas sob o ditame
da valorização. Tudo isto será difícil de imaginar para a humanidade
socializada no capitalismo, mas é justamente para aí que tende uma
administração do estado de emergência que, ela própria, não quer imaginar isso e
pretende executar a qualquer preço a formação social dominante “até que tudo
caia em cacos”.
Só uma reflexão
aprofundada sobre estas consequências torna claro em que medida começa a
agudizar-se a tensão entre crise e crítica. A defesa obstinadamente ideológica
de uma eterna capacidade funcional interna do capitalismo não se deve à
radicalidade da crítica, mas, pelo contrário, (como se verá mais detalhadamente
de seguida) à falta da crítica. Impõe-se a suspeita de que a objectividade do
limite interno é minimizada ou negada porque a crítica redutora não inclui
justamente a forma de sujeito constituído no capitalismo, mas pensa ela própria
nessa forma e consequentemente também gostaria de continuar a agir dentro dela.
Só por isso existe aquela identidade entre crise e crítica, pois postula-se que
o capitalismo poderia unicamente esbarrar nos seus limites através de uma
contravontade imanente cuja própria constituição capitalista permanece
escondida. Para pôr fim aos desaforos do trabalho abstracto e da produção de
riqueza abstracta a crítica tem de ir mais longe e virar-se contra as próprias
“formas de pensamento” dominantes. Só assim o carácter de fim em si fetichista
da relação de capital fica posto em questão. O limite interno objectivo coloca
para o efeito uma condição que não pode ser ignorada impunemente.
Uma questão
estereotípica que na circunstância é posta (mais uma vez denunciatoriamente) à
crítica da dissociação-valor por aqueles que fundamentalmente não querem aquela
continuação da crítica, ou que pretendem fazê-la recuar em algum ponto (por
exemplo, relativamente à razão iluminista capitalista ou ao “ponto de vista de
classe” integrado na forma dominante etc.), diz assim: será essa crítica por
vós postulada sequer logicamente possível, se todos nós devemos ser criaturas
do fetiche?
8. Excurso: a dissociação-valor faz do
fetiche o criador de um mundo de marionetes?
É pouco
encorajador que a maioria da teoria de esquerda não queira admitir a
perspectiva radical de crise e crítica e, justamente no limite histórico da
sociedade capitalista, se esforce por minimizar o seu carácter fetichista e por
se esquivar aos problemas por ele colocados. Para o marxismo do movimento
operário, em conformidade com a sua luta pelo reconhecimento burguês na
história da ascensão deste modo de produção, a relação de capital reduzia-se à
luta de classes imanente, enquanto o contexto formal e funcional socialmente
sobrejacente e a conceptualidade de Marx que se lhe refere permaneciam um livro
fechado a sete chaves. Se agora, na nova situação histórica, a questão vem a
terreiro, o marxismo residual e o pós-marxismo revelam-se os herdeiros desta
redução, pois recuam perante a tarefa de continuar a crítica neste sentido, por
maioria de razão pegando com pinças nos respectivos conceitos de Marx, vendo a
sua importância de preferência como insignificante e pretendendo denunciar a
própria referência a eles como “redução”.
Assim ressoa
aleivosamente do canto pós-operaista: “A redução ao conceito de fetiche
apoia-se em poucas passagens da chamada secção do fetiche do primeiro capítulo
de O Capital” (Hanloser/Reitter 2008,
29). Abstraindo do facto de Marx se referir ao conceito de fetiche também nos
outros volumes de O Capital e
tematizar o problema da dinâmica cega também em outras formulações, é óbvia
aqui uma postura fundamentalmente defensiva contra toda uma linha da análise de
Marx em O Capital. A Gegenstandpunkt também se opõe com unhas
e dentes a que estas definições de Marx sejam agarradas como fulcrais para o
conceito de relação de capital. Contra os representantes desta opinião,
reclama-se que se trataria “apenas” de “cinco metáforas que se encontram em
Marx. Toda a notícia delas consiste no ‘fim
em si’ do ‘sujeito automático’
‘jogado atrás das costas dos participantes’ que por isso são ´máscaras de carácter´. O seu objecto é
o ‘fetiche’, ou melhor, ‘a constituição fetichista da sociedade’”
(Gegenstandpunkt 1996, 84, destaque
da Gegenstandpunkt). Justamente este
contexto obviamente não é nem deve
ser o objecto destes críticos. Eles viram-se repetidamente contra a
“…revalorização (!) de que hoje são objecto as palavras marxianas de ‘fetiche’,
‘consciência necessariamente falsa’ e ‘máscara de carácter’…” (Gegenstandpunkt 2008, 107) e declaram-nas
como “erros de interpretação” (ibidem).
O marxismo do
movimento operário, na sua recepção redutora talhada à medida das suas
necessidades de reconhecimento imanente, tinha sistematicamente “desvalorizado”
e reprimido estes termos marxianos na explicação da relação de capital, os
quais não são de modo nenhum meras “metáforas” ou “palavras” irrelevantes; e é
quase divertido ver como agora a Gegenstandpunkt
se vira contra a sua “revalorização”. É esclarecedor o motivo aduzido para este
fervor contra os críticos do fetiche: “Eles tomam pela coisa em si os atributos
críticos de Marx ao valor, ao dinheiro e ao capital, esquecem a economia (!) e
fazem do fetiche, do sujeito automático o criador de todo
um mundo de marionetes” (Gegenstandpunkt 1996,
84, destaque da Gegenstandpunkt). Aqui
vem à luz do dia a contradição elementar. Para Marx, de facto, os referidos
conceitos não são quaisquer “atributos críticos” apostos “à coisa” (que
portanto Marx teria apresentado exteriormente à coisa, através do seu
pensamento crítico), mas sim “crítica através da exposição” da própria “coisa”
em si, ou seja, a essência da “coisa” e pelas suas categorias reais ou “formas
de existência” que ele designa reflexivamente. Se este entendimento significa
para a Gegenstandpunkt que assim “a
economia é esquecida” isso só pode significar que para ela, na realidade, a
“economia” é coisa diferente daquilo que surge neste plano da exposição de
Marx.
Naturalmente que
é ridícula a afirmação de que o assumir destas definições marxianas como
centrais significaria “esquecer” a economia. Pelo contrário, apenas com elas é
suficientemente explicado o contexto de trabalho abstracto, objectualidade do
valor, produção de mais-valia e potencial de crise interno, nomeadamente como
subordinação comum de todos os funcionários sociais ao fim em si autónomo e
superior da máquina social da valorização. Justamente por isso é que todos os
participantes, enquanto pensam e agem
nestas funções, são aquelas “máscaras de carácter” ou “personificações” de
relações económicas impessoais. Para o marxismo tradicional e com ele para a Gegenstandpunkt, pelo contrário, estas
definições constituem apenas uma “camuflagem” da “verdadeira” relação económica,
que é reduzida à relação social da representação pessoal do capital e da
representação pessoal do trabalho assalariado (em última instância mera relação
de vontade directa).
O “sujeito
automático” da máquina da valorização dissolve-se assim sub-repticiamente na
subjectividade dos interesses da classe capitalista, e o fim em si impessoal
objectivado contraposto a todos os participantes e simplesmente irracional, na
finalidade subjectiva e supostamente racional da exploração de uns pelos
outros. (9) Assim se passa também ao lado do conceito marxiano de “riqueza
abstracta” que aponta para o carácter de fim em si fetichista sem qualquer
“finalidade racional”. A “riqueza abstracta” surge então apenas como um meio particularmente refinado com que os
“dominantes” deitam as unhas à riqueza material concreta para com ela se
abotoarem. Determinante neste sentido seria o “interesse material”, cuja forma
abstracta não desmentiria esta suposta imediatidade, mas apenas a “esconderia”.
As contradições especificamente capitalistas entre os diferentes funcionários
da máquina da valorização surgem assim como simples contradição entre “rico” e
“pobre”. Os explorados devem simplesmente impor o “materialismo” do seu
interesse contra os exploradores, sem que entre em foco como objecto central da
crítica a própria forma fetichista
deste interesse. Esta forma da vontade é mencionada quando muito de passagem
como aquele “atributo crítico” simplesmente exterior, que Marx apenas teria
aposto como “metáfora” à verdadeira relação subjectiva de exploração, seja lá o
que for que isso quer dizer (no palavreado da Gegenstandpunkt e não só, Marx poderia verdadeiramente ter evitado
esta metáfora, como pensam também os positivistas burgueses, de quem aqueles
“marxistas” são afinal metodologicamente descendentes). (10)
A Gegenstandpunkt (aqui como representante
exemplar deste entendimento) esquiva-se ao problema supondo que a acentuação do
carácter de fetiche consideraria os seres humanos incluídos nesta relação
apenas como “marionetes inconscientes” cujo colapso objectivo as privaria da
crítica emancipatória. Quanto a isto o conceito de simples marionete desde cedo
foi rejeitado pela crítica da dissociação-valor num debate interno. A
redescoberta e reformulação de um conceito de moderna constituição de fetiche
nos anos de 1980 e 1990 tinha de facto assumido traços objectivistas em alguns
representantes da velha crítica do valor, que no entanto não ficaram sem
resposta. (11)
Não por acaso
foi Ernst Lohoff, entretanto parqueado na crítica do valor redutora da Krisis residual, que no início dos anos
1990 veio realmente com a novidade de formular a afirmação objectivista suposta
pela Gegenstandpunkt. Foi ele que de modo
completamente irreflectido pôs em jogo a metáfora da marionete comandada pelo
fetiche: “Mesmo quando as marionetes do valor (!) concorrendo entre si impõem o
respectivo interesse (monetário), a sua acção não tem nada de incondicional em
si, pelo contrário, representa sempre apenas a execução da lógica já
pressuposta do valor” (Lohoff 1991, 88). Mas o facto de a acção ser
condicionada não diz nada sobre a relação entre determinação e contingência,
enquanto o carácter da condicionalidade não for concretamente determinado,
sendo que nunca poderá ser absoluto. Porém, Lohoff não efectua a determinação
exacta, pelo contrário, faz desaparecer a vontade e com ela a contingência na
condicionalidade e logo na pura determinação, o que ele reitera mais uma vez
contra o sociologismo do marxismo tradicional: “Uma vez que toma ingenuamente as
marionetes do valor por sujeitos incondicionados e dotados de vontade própria
(!), a grelha de percepção positivista tem de imputar a violência do processo
social aos seus portadores pessoais” (ibidem, 103). A ingenuidade, se se
pretender designar assim o deslize, está inteiramente do lado de Lohoff. Ele
deturpa de tal maneira o conceito da relação de fetiche que os indivíduos nela
subsumidos são privados de qualquer “vontade própria”. A relação social teria
então de existir de facto literalmente fora deles, com o que naturalmente o
ponto de vista marxista habitual, incluindo a Gegenstandpunkt, seria perfeitamente justificado ou pelo menos não
tão rudimentar. Enquanto o chamado marxismo ocidental e particularmente o operaísmo
e pós-operaísmo dissolvem a relação de fetiche numa pura relação de vontade,
Lohoff apresenta apenas o reverso da mesma medalha, ou seja, a dissolução numa
pura objectividade, literalmente “desprovida de vontade”. Ambos passam ao lado
da relação que é preciso tematizar entre relação de fetiche e acções de
vontade.
Lohoff tem o
descaramento de exemplificar o seu entendimento extremamente objectivista
justamente na moderna relação entre os sexos: “Os homens não comandam um
regimento patriarcal arbitrário, mas apenas executam (!) nas mulheres a relação
fetichista de poder que é pressuposta. A coerção que exercem sobre as mulheres
tem o seu fundamento original não na vontade masculina, mas no princípio de
síntese social já sempre pressuposto a estes ‘dominadores’” (ibidem, 99). Ora a
dominação nunca é de facto um puro “arbítrio”, mas está ligada a um contexto
formal social cujo carácter fetichista de modo nenhum consiste em simples
“ausência de vontade”. Se o próprio Lohoff fala de uma “relação de poder” esta
não é pensável sem acções de vontade; nesse caso o “fetiche” seria então entendido
com toda a seriedade como meta-pessoa agindo à parte, que até mandaria as suas
“marionetes” distribuir pancada. A violência, sobretudo manifesta, mas mesmo
muda ou estrutural, tem de passar por acções de vontade conscientes, pois para
além da acção humana não existe qualquer outra instância de suporte da relação
social, nem esta constitui qualquer contexto da “primeira natureza”, como uma
formação geológica ou uma cadeia alimentar, pelo contrário, apresenta apenas
traços análogos, que é preciso decifrar como “aparência real”.
Sendo o próprio momento
estruturante inconsciente um resultado de actos de vontade humanos históricos
condensado na forma da reprodução, ele não corta a vontade, mas desterra-a para
o espaço interno desta constituição autonomizada face aos membros da sociedade.
Mas isto é algo completamente diferente do agir de uma “marionete”, pela qual
seria necessário alguém puxar para a fazer parecer entrar em acção, enquanto os
contextos naturais como tais não incluem qualquer acção de vontade. Do ponto de
vista social, pelo contrário, é a própria vontade que, pela determinação da sua
forma histórica, cria a objectividade negativa e a ela volta a reagir.
Com isto a
relação de vontade já não é qualquer relação imediata, mas sim uma relação
mediada pelo contexto formal da máquina de fim em si. Isso nada modifica o
facto de se tratar de uma relação de
dominação, ainda que ela não se resolva numa vontade subjectiva imediata de
exploração e de dominação, mas sejam exercidas funções de dominação por portadores pessoais e institucionais, no sentido
da forma da reprodução também contra eles autonomizada. A “reificação” da
dominação, no entanto, não revoga a vontade, mas apenas a medeia. O problema,
obviamente difícil de pensar, tornou-se não por acaso exemplarmente claro naquela
discussão da antiga crítica do valor em primeiro lugar na moderna relação entre
os sexos. A falsa reinterpretação de Lohoff da subjectividade burguesa numa
simples “marionete” do valor corresponde à classificação da relação entre os
sexos como momento secundário: “A tarefa da teoria revolucionária só pode
consistir em desenvolver a moderna relação burguesa entre os sexos como momento
do contexto de reificação dominante. A crítica do valor, do sujeito automático
desta sociedade de modo nenhum precisa de ser completada pela crítica da
família e da relação entre os sexos, mas a sua concretização tem de incluir
estes planos” (Lohoff, ibidem, 125 sg.). O valor brilha aqui perfeitamente como
um ídolo masculino autocrático, perante o qual o homem macho real, mesmo na
pretensa crítica, renuncia auto-afirmativamente à sua vontade, como “marionete”
dele, surgindo aí puro e no seu auge o entendimento redutor da relação entre os
sexos androcêntrico-universalista e na lógica da derivação; como mera
“concretização” num plano subordinado.
Com o seu artigo
O valor é o homem (Scholz 1992)
Roswitha Scholz introduziu então uma nova teoria completamente diferente, em
que a relação entre os sexos como relação de dissociação foi retirada desta
subordinação androcêntrica e elevada ao mesmo nível de abstracção teórica que o
valor, donde resultou o novo entendimento da totalidade da sociedade moderna
como uma totalidade desintegrada em vez de coerente. Esta “desagradável
surpresa”, até hoje não entendida ou não entendida realmente por muitos
críticos do valor toscamente machistas “estabelecidos”, no entanto, não só se
referiu ao conteúdo da dissociação sexual, mas ao mesmo tempo abriu uma
dimensão de crítica do conhecimento para suplantar a crítica do valor
objectivistamente redutora em geral. Esta abordagem permitiu reassumir o
conceito de relações de dominação de
forma modificada (já não reduzida à imediatidade sem pressupostos da vontade de
poder dos actores sociais). Assim se revela também o problema da vontade como
carecendo de uma abordagem diferente, não podendo desaparecer num entendimento
de “marionetes”.
Por isso, na
formulação do seu conceito de dissociação, Roswitha criticou simultaneamente o
carácter objectivista da crítica do valor de então: “No conceito assexuado de
indivíduo abstracto e ‘puntiforme’, os textos do grupo KRISIS (até aqui)
ofuscam o carácter sexual específico da lógica do valor. A minha crítica refere-se
também ao facto de que o conceito de patriarcado (e, com ele, o carácter de
dominação da relação entre os sexos na forma do valor) é em parte evitado ou
mesmo conscientemente negado invocando o carácter fetichista da sociedade das
mercadorias... O problema pode culminar na seguinte alternativa: ou o trabalho
abstracto e o valor são compreendidos, já em seu nexo constitutivo e
portanto em seu núcleo essencial, como princípio masculino, ou se volta
a uma hierarquia conceitual em que a distribuição dos papéis sexuais é
remetida, como simples ‘problema derivado’ ou de ‘concretização’, a uma
correlação secundária” (Scholz 1992, 21, destaque de Scholz).
Nesta crítica o
carácter da relação de dominação patriarcal moderna já foi referido de forma
modificada ao carácter de fetiche, sem escamotear o problema da vontade: “Nesse
contexto, para evitar mal-entendidos que possam surgir do conceito de
patriarcado, esclarecemos que, ao falar de dominação masculina, não queremos
dizer obviamente que o homem se poste ao lado da mulher constantemente de
chicote em punho, para fazer valer a sua vontade. No sentido aventado aqui, a
dominação baseia-se essencialmente na internalização de normas sancionadas pela
colectividade e na institucionalização… Esse conceito diferenciado de dominação
tampouco contradiz o carácter fetichista do valor. Nos debates do grupo KRISIS,
ao menos até recentemente, o conceito de fetiche foi frontalmente contraposto
ao conceito de dominação e, portanto, ao de patriarcado. Para tanto foi preciso
supor um conceito de dominação simplificado e subjectivamente reduzido” (Scholz
ibidem, 21). Esta crítica também teve de se virar directamente contra a ideia
das “marionetes” de Lohoff: “Sem contar o facto de que a cultura teórica
feminista já tenha, em geral, ultrapassado uma noção assim tosca de dominação
como a suposta por Lohoff, nota-se aqui que o ‘princípio de síntese social’ é
superficialmente contraposto à relação assimétrica entre os sexos… Além disso,
(e justamente numa situação histórica em que o embate entre os sexos está na
ordem do dia), não é preciso que o homem se ponha a si mesmo em questão com
tais figuras argumentativas. Ora, dessa forma ele estará, literalmente,
reduzido a uma ‘marionete’ do fetiche do valor” (ibidem, 22).
A
condicionalidade da vontade através de formas e relações estruturais não exclui,
portanto, a conduta voluntária, pelo contrário, inclui-a; o indivíduo masculino
não se move como um robot no campo de controlo da dissociação, mas é preciso
exigir-lhe, na tensão desta relação, que a si mesmo se observe e se ponha em
questão na sua condicionalidade, o que por sua vez só pode acontecer de forma
conscientemente voluntária e exclui a absolutidade de um automatismo. O ensaio
de então Dominação sem sujeito (Kurz
2004/1993) constituiu uma tentativa de prosseguir estas reflexões com recurso ao
estado de então da teoria da dissociação, incluindo a dimensão de dominação das
relações de fetiche para além da relação entre os sexos. Aí também foi submetida
a uma forte crítica a ideia das “marionetes” de Lohoff: “À primeira vista,
poderia parecer que, com o conceito de constituição de fetiche não só o antigo
conceito subjectivo-iluminista de dominação se tornaria obsoleto, mas o próprio
conceito de dominação em geral. A destruição do sujeito teria então de ser
apreendida no conceito de simples marionete. Um tal abandono imediato do
conceito de dominação seria por assim dizer tacticamente inaceitável. Primeiro,
ele pareceria fazer os homens esquecer as coerções experimentadas na realidade
(e sentidas em todo o seu peso), que se insinuam até nos poros do quotidiano
das sociedades-fetiche secularizadas do mercado total e do Estado democrático
de direito. Em nada altera o carácter dessa repressão e de ela ser digna de
ódio o facto de ela não poder ser remontada a um sujeito determinado, de ela
ser ‘estrutural’. Segundo, esse conceito de marionete desculparia de certa
maneira a ‘dominação do homem pelo homem’. Assim que se percebe o caráter sem
sujeito das determinações sociais, assim que os conceitos de ‘papel’ e
‘estrutura’ descem do Olimpo científico para a consciência quotidiana, eles são
instrumentalizados de forma mais ou menos ingénua para justificar e apaziguar
os detentores de certas funções de dominação” (Kurz, ibidem, 185 sg.).
Esta crítica foi
ainda exemplarmente precisada na objectivação e branqueamento da conduta
masculina de dominação e poder no quotidiano das relações entre os sexos: “A
autocomplacência do homem compulsoriamente heterossexual e não verdadeiramente
interessado em superar a si mesmo, apesar das corteses reverências ao
feminismo, é notória quando se afirma que, no fundo, não é ele próprio como
pessoa o veículo de certas manifestações autoritárias na relação entre os
sexos, mas que ele ‘apenas’ executa, forçado e a contragosto, uma estrutura
socio-histórica sem sujeito e superior. Isto é evidente em diversos graus e em
expressões implícitas (‘mudas’) ou explícitas de um trabalho de recalcamento
masculino pseudo-reflectido” (ibidem, 186).
Entretanto o
entendimento extremamente objectivista das “marionetes” da acção no espaço
social das relações de fetiche deixou de ser mantido até pelos seus defensores
originais, mas sem qualquer revisão crítica. Em vez disso, a evolução
regressiva da Krisis residual e da Streifzüge tendia para completar o
objectivismo da ligação automática “sem vontade” da consciência, ou para
fintá-la, através do rebaixamento a uma metafísica do quotidiano reformadora da
vida, que propaga um agir “diferente”, em última instância moral, em pequenos
espaços pseudo-experimentais. Este subjectivismo do quotidiano alimentado
vitalistamente e invocando “a vida” e “o sentido”, eles próprios de modo
meramente abstracto, constitui apenas o reverso da mesma medalha; a relação de
fetiche ou o “sujeito automático” e a vontade permanecem aí tão pouco mediados
como no objectivismo das “marionetes”. Não se esclarece nada, mas gostariam de
fazer desaparecer as próprias pegadas de um pensamento objectivista apenas
ideologicamente virado ao contrário, na realidade teoricamente não suplantado. Assim constata o autor da Krisis residual Karl-Heinz Lewed no seu
artigo Eine ‘Theory zur Verletzbarkeit
von Herrschaft’? [Uma teoria sobre a vulnerabilidade da dominação?]
(Lewed 2007, Krisis 30): “(A)
descoberta e reformulação da crítica do fetiche de Marx pelos autores da Krisis moveu-se ela própria inicialmente
no horizonte teórico de uma totalidade objectivada” (Lewed 2007, 135). Ora, em
vez de indicar em que consiste o problema e donde veio a maneira de dizer
errada, Lewed acrescenta hipocritamente: “O artigo de Robert Kurz Subjektlose Herrschaft [Dominação sem
sujeito], outrora relativamente central na Krisis
para a crítica do sujeito… ainda foi formulado nesta perspectiva. O sujeito (masculino)
é definido como pura ‘marionete’ (!!) da própria forma social” (ibidem, 135).
O despudorado
descaramento com que Lewed falsifica e inverte aqui a discussão teórica no
contexto da velha Krisis é realmente
notável. Prudentemente não se cita nada do texto Dominação sem sujeito, mas é simplesmente atribuída a este de forma
denunciatória uma posição que ele não inclui e pelo contrário critica. Pelos
vistos Lewed conta que uma grande parte do público não conheça os textos
antigos e que ninguém os vá conferir e mesmo que os atingidos deixem passar
impune a sua desavergonhada falsificação da história teórica da crítica do
valor. Se assim não fosse, não seria necessário esclarecer que ele procura
imputar o conceito de “marionetes” justamente ao texto que tinha contestado
esta definição errónea, apoiado na crítica já antes efectuada por Roswitha
Scholz e naturalmente não mencionada por Lewed. O verdadeiro autor da tosca
ideia das “marionetes”, Ernst Lohoff, é levado para a segurança do esquecimento
do seu erro crasso, a fim de imputar este dolosamente logo aos seus críticos e
críticas, qual prova falsificada. A singeleza desta é caso para detectives
infantis. Mas é assim que a “teoria política” é feita por pessoas que não só
tentam enfeitar-se com plumas alheias, mas também procuram colocar nos outros
as suas próprias orelhas de burro.
Voltando à
acusação da Gegenstandpunkt, de que a
teoria radical da crise, com o conceito de fetiche, veria os seres humanos apenas
como “marionetes sem vontade”, ela recebe uma boa ajuda de cobertura graças à
imputação contrafactual da história teórica da crítica do valor pela Krisis residual; mas o produto desta
oficina de falsificação não propriamente profissional volta a cair sobre os seus
autores. Na realidade a crítica ao “teatro de marionetes” teórico de Lohoff,
que inicialmente partiu da relação de género e depois se generalizou, já
apresentava as bases para uma contra-argumentação. O ponto fulcral já então
residia desde logo no problema da dominação. Impôs-se, portanto, a ideia de que
com o reconhecimento da valorização do valor como o “sujeito automático” da
sociedade, o conceito de dominação de modo nenhum se torna obsoleto em geral,
pelo contrário, a dominação tem de ser definida de modo diferente; já não como
relação de vontade imediata sem pressupostos, mas sim como relação de fetiche
determinada historicamente quanto à forma e que não fica absorvida nas acções
dos sujeitos. Mas, justamente por isso, a dominação de modo nenhum é um simples
automatismo; por isso também a responsabilidade dos portadores da dominação foi
tematizada como “funcionários” e não como “robots”.
Ora onde está a
diferença decisiva? A vontade não pode ser hipostasiada e tomada em falsa
imediatidade como fundamento último, nem inversamente pode ser eliminada sem
substituto. Se a vontade consciente é mediada por uma forma social, como tal
surgida e pré-determinada inconscientemente, então surge também o paradoxo real
de uma “inconsciência consciente”. A acção singular é feita conscientemente,
mas a determinação da sua forma sócio-histórica, que de certo modo a orienta, é
encontrada inconscientemente. A analogia com processos naturais ou mecânicos
apenas poder servir de ilustração crítica, mas não constitui qualquer relação
de identidade. Pois, ao contrário do processo digestivo, duma transformação
química ou de um processo mecânico, a consciência e a vontade entram no
processo formalmente determinado de modo inconsciente a priori; por isso mesmo são acções.
A vontade
consciente enfeitiçada nesta forma não é linearmente dirigida, mas está sob as
contradições internas do contexto formal e funcional assim constituído, as
quais não se movem por si mecanicamente, mas têm de passar através da vontade aprisionada,
sendo assim conscientemente processadas. A prisão na forma histórica
inconsciente exige portanto um permanente “processamento da contradição”
consciente (sobre isto detalhadamente ver Kurz 2007) que produz as formas de
desenvolvimento contingente. Neste processamento da contradição já entram
sempre construções ideológicas, como contribuições próprias da consciência, por
maioria de razão de modo nenhum mecanicamente determinadas. Por outro lado,
todos estes modos de agir decorrem na relação coerciva da concorrência
universal, que simultaneamente constitui através do seu contexto total cego um
processo objectivado na sua constituição e tendência e de certa maneira
determinado. Tanto esta determinação objectiva é produzida pela acção dos seres
humanos determinada pela forma capitalista e portanto enquanto concorrência
descoordenada, como também o é a relativa contingência das formas de
desenvolvimento do processamento da contradição como reacção a ela. O que
constitui a constituição de fetiche é justamente que o contexto formal e
funcional, e portanto o processo global, são objectivamente autónomos, mas em
cada situação existem alternativas imanentes de acção. Estas no entanto não só
são limitadas, como o seu campo de acção histórico também se vai estreitando
até à paralisia histórica, a qual por sua vez tem de ser processada
conscientemente; seja em direcção a uma barbarização ideologicamente
mobilizada, seja através do romper emancipatório da relação subjacente. Ambas
as formas de desenvolvimento pensáveis terão então de abandonar o horizonte das
alternativas de acção imanente. Em lado nenhum uma vontade livre,
incondicionada e repentina; em lado nenhum uma marionete sem vontade.
É preciso,
portanto, em primeiro lugar distinguir três planos: a) a mera “acção de
execução” no contexto formal e funcional dado, o que também acontece com consciência,
mas não com reflexão consciente “sobre” a forma de tal agir (assim, por
exemplo, podem tentar-se diversos meios de se impor na concorrência) (12); b) o
processamento da contradição individual e social, como reacção às contradições
produzidas pelo agir funcional (13); c) a digestão ideológica do processo
social, das suas contradições e formas de desenvolvimento, que volta a entrar
nestas últimas e a codeterminá-las. (14) Em todos os três planos ocorrem acções
de vontade conscientes, com orientações alternativas, que no entanto permanecem
fechadas na prisão categorial do sujeito automático, ao qual é posto um limite
objectivo pela dinâmica cega, ela própria produzida inconscientemente pelas
acções desta vontade. Dado que o processo não se desenvolve automaticamente, os
portadores das acções de vontade imanentes também devem ser responsabilizados,
ainda que em planos diversos e de maneira diferente; isto aplica-se, naturalmente,
sobretudo às construções ideológicas projectivas.
O critério da
responsabilidade é no entanto insuficiente se se referir apenas a alternativas
de acção imanente. O resultado é então uma Realpolitik
que em geral e sobretudo na esquerda desemboca na questão do “mal menor”. O
conflito em torno das alternativas de orientação e de acção imanentes teve a
sua importância na história da imposição, ascensão e desenvolvimento do
capitalismo; assim, por exemplo, seria importante mencionar, acerca da mais
decisiva mudança de via imanente, que a vitória do nacional-socialismo no
período entre guerras naturalmente não foi de modo nenhum objectivamente determinada,
mas sim o resultado de padrões de interpretação e de acção ideológicos e
políticos imanentes do tratamento da contradição, ainda produzidos no interior
de uma dinâmica não esgotada de um surto historicamente sem par de “barbárie
organizada” na base da moderna constituição de fetiche. Na situação histórica
modificada, oitenta anos depois, desfazem-se as alternativas de acção imanentes
a todos os níveis no limite interno objectivo atingido e tendem para um estado
de excepção global que desemboca na decomposição da própria constituição
capitalista e ameaça conduzir a novas formas de uma “barbárie de dissolução”.
Justamente por isso se mostra a paralisação das alternativas de acção
imanentes. (15)
Com isto
chegamos ao problema decisivo. Estará a humanidade calibrada para o tratamento
da contradição imanente ou poderá ir para além disso? O facto de os seres
humanos não serem marionetes do fetiche, sendo este pelo contrário reproduzido
através das suas acções voluntárias e surgindo aqui permanentemente
alternativas de acção, esse facto em si não faz ir pelos ares a “jaula de
ferro” (Max Weber) da relação social. A questão, portanto, é saber se se
consegue atingir aquele meta-plano da crítica que toma por objecto a própria
jaula em si. Teoricamente a questão já está respondida nos seus traços
fundamentais. Também relativamente a este meta-plano o fetiche não é o “criador
de um mundo de marionetes”. O facto de se tratar de “formas de existência
objectivas” e correspondentes “formas de pensamento objectivas” não significa
fundamentalmente que este carácter não possa ser reconhecido. A objectividade
não é inelutável nem natural, mas sim surgida historicamente e, portanto,
também criticável e suplantável. Caso contrário Marx não teria aberto a porta
para este conhecimento nem ele poderia ter continuado a desenvolver-se.
Também esta
crítica que vai mais longe está historicamente condicionada, na medida em que
ela mesma se relaciona com a própria relação de fetiche moderna e só pode ser
constituída a partir da digestão das suas contradições internas, não tendo
portanto qualquer verdade supra-histórica a reivindicar, pelo contrário, ela
própria está ligada ao seu tempo. “Condicionalidade” no entanto é algo
completamente diferente de “determinação”. Objectivamente determinada é a crise
e o limite interno; a crítica emancipatória à relação social subjacente, pelo
contrário, é condicionada, mas não determinada. Esta condicionalidade apresenta-se
de forma diferente ao longo da história. Como se prova pela teoria de Marx, o
começo de uma tal crítica já foi fundamentalmente possível numa fase
relativamente precoce do processo capitalista. A dificuldade estava então em
que a máquina da valorização ainda possuía um espaço de manobra de
desenvolvimento histórico no qual a necessidade de reconhecimento imanente do
movimento operário se ia adaptando, sendo assim reprimida a possibilidade de
uma crítica que fosse mais longe. Hoje é o facto de o limite interno estar a
ser atingido que estabelece a condição e, por um lado, torna mais clara a
possibilidade de uma tal crítica, por exemplo relativamente à manifesta
obsolescência do trabalho abstracto. Por outro lado, a dificuldade consiste
agora em que a consciência de massas internalizou em todos os actores as formas
de fetiche ainda mais profundamente que no tempo de Marx. Não se pode fugir à
condicionalidade, mas apesar disso a consciência e com ela a saída não estão determinadas.
“Objectivista” é
tomar a objectividade negativa encontrada e socializada como factualidadae
positiva e como pressuposto em última instância inultrapassável, que apenas
poderia ser “reinterpretado”. A interpretação subjectivista constitui apenas o
reverso da mesma medalha, uma vez que simplesmente ignora ou nega esta
objectividade negativa, bem como o limite interno a ela aposto, em vez de a criticar
radicalmente. Nisso o subjectivismo é tão afirmativo como o objectivismo; ambos
os polos se condicionam reciprocamente e se tornam um no outro. Tem de se
chamar francamente um descaramento o facto de se imputar justamente à crítica
mais desenvolvida da dissociação-valor o entendimento como “marionetes” dos
seres humanos que pensam e agem, apesar de ela já no seu nome incluir a negação
consciente e voluntária da execução supostamente “automática”. Pelo contrário,
é o passar ao lado e o minimizar do conceito de fetiche, no caso da Gegenstandounkt e não só, que gostariam
de passar despercebidos ao lado da crítica consciente da relação social
subjacente e socialmente sobrejacente.
De resto isto
também é válido para a crítica da ideologia. Se Marx define a ideologia como
“consciência necessariamente falsa”, com isso já se diz que é possível
reconhecer a falsidade desta objectividade. A “necessidade” refere-se apenas à
consciência em primeiro lugar presa nas formas dominantes que também pode ser
suplantada; por isso ela não é uma consciência absoluta, um automatismo, mas é
tão merecedora de crítica e tão criticável como as formas de existência que lhe
correspondem.
A tarefa,
portanto, é formular a crítica emancipatória às formas de existência e formas
de pensamento objectivadas e socialmente sobrejacentes e a partir daí torná-la
eficaz nas lutas sociais, a fim de romper conscientemente com esta prisão
categorial. Ou, nas palavras da Gegenstandpunkt:
trata-se de desenvolver uma vontade contra a forma dominante da vontade e
tornar consciente o carácter fetichista desta. O que, no entanto, exige um
esforço de reflexão que de modo nenhum está contido já per se na mera existência sob estas relações. A crítica permanece especialmente
reduzida e privada da sua dimensão decisiva quando é identificada com a pura
“existência” de um “sujeito objectivo” (apresente-se este como tradicional ou
pós-moderno) ele próprio constituído no capitalismo: mas, se os seres humanos,
como funcionários ou máscaras de carácter do “sujeito automático”, não são
totalmente absorvidos em si na sua existência como “marionetes” dele sem vida,
bem que permanecem presos neste contexto funcional, se este não for
explicitamente feito objecto da crítica. Enquanto as necessidades materiais e
sociais apenas puderem ser reclamadas do ponto de vista da subjectividade
constituída de forma capitalista e portanto “na” forma da vontade dominante,
elas serão regularmente apanhadas pela sua forma negativa e terão de ceder às
leis funcionais da máquina da valorização, até à auto-repressão que pode
descarregar-se em ideologias de aniquilação. Isso não significa que a luta de
interesses social imanente deva ser fundamentalmente negada; mas ela precisa de
um ponto de fuga para os objectivos transcendentes de uma crítica radical ao
seu próprio pressuposto constituído por aquelas condições de existência objectivadas.
Com isto
chegamos ao ponto crucial do “ponto de vista dos interesses” da “classe” (ou da
“multitude” ou outras sub-rogações).
A raiva contra a sua caracterização como máscara de carácter da componente do
capital viva (ou como superfluidade dela) vive exclusivamente do facto de a
forma do interesse e da respectiva vontade constituída capitalistamente (forma
da mercadoria, forma do dinheiro) ser confundida com o interesse material e
social, a ela ser equiparada, ou a diferença ser inflada e deixada em aberto
(como no caso da Gegenstandpunkt).
Com isto, no entanto, apenas se reproduz a consciência geral, de qualquer
maneira existente e socializada, que só consegue imaginar para si uma chamada
“boa vida” nestas formas e pretende com unhas e dentes resolver as contradições
na concorrência universal.
O interesse
assim definido quanto à forma fica ligado à capacidade de acumulação do
capital; daí também uma agitação tornada anacrónica, que não quer afastar a consciência
associada a ele e justamente por isso roda em falso no limite histórico da
valorização. Aos críticos do fetiche é então interpretada a sua crítica como “procedimento
etéreo”, “esoterismo” e “arrogância” intelectual, sendo que deste modo, porém, a
consciência dos assalariados, precarizados e “supérfluos” neste aspecto está a
ser rotulada de incapaz de perceber. No fundo, muitos teóricos marxistas
residuais e pós-marxistas, com o seu fervor contra a “revalorização” do
conceito de fetiche, pretendem sobretudo rejeitar a relativa “desvalorização”
da acção limitada ao contexto formal capitalista, a fim de poderem voltar a
“revalorizar” esta como certamente suficiente e com capacidade de emancipação.
A falsa atribuição de que a determinação deste agir como mero tratamento da
contradição insuficiente significaria reduzir os agentes a “marionetes” do
valor deve-se apenas à própria recusa a enfrentar a ruptura com a relação de
fetiche moderna.
9. A crise como relação subjectiva de
vontade
Dificilmente
pode ser negado que há realmente de algum modo um certo limite da valorização,
que as crises se tornam visíveis. Mas pretende-se que o limite não será
absoluto nem histórico. Por isso a objectividade da crise é reconhecida mais ou
menos contrariadamente numa versão fraca, como a que se manifesta nas fases de
definhamento dos velhos debates sobre a teoria da acumulação e da crise, porém
reduzida ao já referido movimento cíclico em si inesgotável ou a rupturas
estruturais periódicas. Mas isso não basta, nem de perto nem de longe, aos
pós-marxistas de linha dura da dissolução subjectivista da relação de capital
nas concepções da teoria da acção. Operaísmo e pós-operaísmo construíram uma
versão forte da rejeição de um limite interno objectivo que corresponde melhor à
falsa identificação de crise e crítica. A crise é aqui completamente enquadrada
na relação de vontade imediata dos sujeitos sociais constituídos no capitalismo.
A crise já não deve ter qualquer razão objectiva nas leis da reprodução
fetichista, mas deve ser uma crise “feita” mais ou menos conscientemente.
O “fazer” não é
aqui considerado como constituído numa forma a priori cuja matriz terá de ser rompida sob pena de ruína. Uma vez
que são riscados o carácter transcendental da forma da vontade e com ele a objectividade
negativa desta matriz, resta apenas (tal como no caso da Gegenstandpukt de outro modo) a vontade sem pressupostos do estabelecimento
consciente de objectivos, cuja relação com a constituição de fetiche terá de
ser completamente obscurecida, surgindo portanto directa ou indirectamente como
pressuposto ontológico inultrapassável. Ignora-se a forma da acção, mas esta
acção imediata é posta em curto-circuito com as necessidades materiais e
sociais da vida, sem perceber que a forma
do interesse desmente o seu conteúdo. Na maneira de dizer acima esboçada da
teoria da dissociação-valor, significa isso que esta acção, no sentido das
necessidades da vida, por maioria de razão está encerrada no “tratamento da
contradição” formalmente imanente, permanecendo assim fechada sem saída na
objectividade negativa do contexto funcional dominante.
Assim, no
entanto, também se esconde amplamente o carácter da actividade social no capitalismo
como acção forçosamente concorrencial. Mas é justamente a “coerção muda da
concorrência” (Marx) que executa a determinação da forma da vontade e das suas
acções no capitalismo e deste modo não só estipula as categorias capitalistas
como “condições objectivas de existência”, mas também cria a determinação cega
do limite da crise, para lá do estabelecimento voluntário de objectivos.
É característico
da ideologia (pós-)operaísta no pior sentido que a determinação da concorrência
universal, central para a análise marxiana do capital, seja completamente
dissolvida ou considerada um mero epifenómeno subordinado, tal e qual como a
crise. O carácter universal da concorrência a todos os níveis sociais é
apagado; tanto a concorrência entre capitais singulares, entre os diversos
ramos, as economias nacionais, as regiões mundiais etc., como a concorrência
entre os próprios assalariados/as, bem como entre empregados e desempregados,
jovens e velhos, homens e mulheres. É justamente esta forma central de todas as
circunstâncias de relacionamento que permanece por tematizar, ou é mencionada
apenas marginalmente em formulações enfatuadas; o mesmo se aplica à continuação
da concorrência ao longo de linhas de demarcação ideológicas (e também étnicas
etc.). A relação de concorrência universal é considerada em geral como não
constitutiva para as “múltiplas” relações e diferenças sociais. Tal ignorância
não é apenas teoricamente do mais baixo nível; ela também equivale a uma ampla
perda do sentido da realidade.
Resta a “relação
de classe” imediatamente ontologizada, que determina em última instância toda a
percepção; originalmente a relação entre trabalho assalariado (industrial) e
representação do capital, entretanto a relação entre a omnipresente multitude determinada “biopoliticamente”
de modo difuso e o empire igualmente determinado
“biopoliticamente” de modo difuso, para lá das categorias político-económicas
da relação de capital, que por sua vez foram “redefinidas” sem qualquer
fundamentação. Por isso também a “relação de classe”, arbitrariamente inflada
em termos conceptuais e fenomenologicamente redutora, pode ser reconhecida como
não sendo um plano da concorrência universal. Mas a oposição entre trabalho
assalariado e capital (melhor: a oposição entre a representação funcional do
capital e a representação funcional do trabalho, entre trabalho abstracto vivo
e morto), na sua existência imediata constituída no capitalismo, constitui
essencialmente uma relação de concorrência capitalista entre outras que, em
virtude do carácter específico da mercadoria força de trabalho, assumiu uma
forma institucional particular na relação entre associações empresariais e
sindicatos. Ela pertence, portanto, ao movimento global da concorrência que
está inscrito nas condições de existência vigentes cuja dinâmica ela ratifica,
incluindo também a determinação objectiva da crise.
Enquanto o
operaísmo/pós-operaísmo escamoteia amplamente a concorrência universal, a
oposição entre o trabalho reprodutivo supostamente criador universal de
mais-valia e o empire subjectivamente
explorador, pelo contrário, figura como relação
de vontade ontológica imediata. Assim se hipostasia mais uma vez o
tradicional sujeito ontológico “classe operária”. A nebulosa ontologia da multitude identifica esta, por um lado, com os “pobres”
simplesmente, por outro lado, com a classe média das tecnologias de informação
e da análise de sistemas; mas aparentemente não é isso que importa aqui: “Os
pobres incorporam a condição ontológica não apenas da resistência, mas
simultaneamente da produção da própria vida” (Hardt/Negri 2004, 153).
O palavreado da
filosofia da vida encobre uma factualidade banal: na realidade os pobres, como
todos os outros, “incorporam” na sua essência imediata apenas um plano da
concorrência e da forma vigente da vontade. Eles nem são pessoas melhores nem
representam de algum modo um princípio ontológico bom, mas são simplesmente
pobres capitalistas e por isso espontaneamente obrigados a reagir à sua própria
pobreza no contexto da concorrência universal. Por isso não há a mínima
garantia de que estes pobres capitalistas se comportem “como resistentes” ou de
forma emancipatória. Em si não “incorporam” nada para além de existirem no
capitalismo. A forma como eles se comportam a esse respeito não pode ser a
expressão de qualquer “incorporação”, mas apenas a expressão de uma assimilação
reflexiva cujo conteúdo e direcção de impacto em geral não está marcado a priori.
Se, para o
marxismo tradicional, apesar da sua ontologia do trabalho, a suplantação da
concorrência pelo menos parcialmente no interior do trabalho assalariado ainda
constituía um problema teórico e prático central, de modo nenhum fácil de
gerir, o pós-operaísmo pretende agora mobilizar a ontologia da multitude sem qualquer mediação. E se,
para o marxismo tradicional, mais uma vez apesar da sua ontologia do trabalho,
o problema da crise ainda estava numa relação dialéctica com a objectivação da
lei pseudo-natural do processo de valorização, para o pós-operaísmo a crise,
correspondentemente à sua subjectivação ontológica, já é apenas a expressão
imediata de relações de vontade
conscientes. A dialéctica que nasce da contradição social sujeito-objecto é completamente
substituída pela ontologia, o que apenas pode ser designado como pecado capital
ideológico. (16)
Isto não
constitui qualquer “viragem copernicana” para lá do paradigma tradicional (como
o pós-operaísmo gosta de se ver a si mesmo), mas sim uma recaída, não só para
trás do marxismo do movimento operário, mas sobretudo para trás da própria
teoria de Marx. Uma vez que Marx entende as determinações formais negativas da
sua crítica da economia não apenas como abstracções teóricas (17), mas
simultaneamente como formas reais de existência, ele também consegue explicar
suficientemente a vivência real das leis coercivas autonomizadas e da dinâmica
de crise objectivada. Por isso já no primeiro capítulo do Livro I de O Capital ele diz que as determinações
reais da produção de mercadorias se impõem como “lei natural reguladora”, e de
facto “com violência”, “do mesmo modo que a lei da gravidade, quando a alguém a
casa cai sobre a cabeça” (Marx 1979/1890, MEW 23, 89). E numa nota de pé de
página acentua esta objectivação negativa com uma citação do escrito anterior de
Engels Esboço de uma Crítica da Economia
Nacional de 1844: “Que se deve pensar de uma lei que se pode impor apenas
por meio de revoluções periódicas? É, pois, uma lei natural, que se baseia na
inconsciência dos participantes.” (ibidem). Esta determinação do momento
objectivado da auto-contradição interna do capital é acentuada em termos de
teoria da crise no Livro II, na análise do processo de circulação capitalista:
“Quanto mais agudas e frequentes se tornam as revoluções do valor, tanto mais
se impõe, actuando com a violência de um processo natural elementar, o
movimento automático (!) do valor autonomizado” (Marx 1965/1893, MEW 24, 109);
e o mesmo no Livro III (secção sobre a queda tendencial da taxa de lucro) com a
célebre formulação: “O verdadeiro limite da produção capitalista é o próprio capital…” (Marx 1965/1894, MEW
25, 260, destaque de Marx).
O conceito de
“lei natural” pôde de facto ser interpretado positivamente com facilidade e
também o foi (mesmo pelo próprio Engels); mas, do ponto de vista da crítica do
fetiche, esta objectivação é criada pelos próprios seres humanos, não é de modo
nenhum “necessária por natureza” e justamente por isso constitui o escândalo
que deve ser criticado. A subjectivação ideológica da relação e da sua crise,
no entanto, não critica estes factos negativos, mas deixa-os simplesmente
desaparecer no estabelecimento de objectivos supostamente calculistas dos
sujeitos ontologizados.
Antonio Negri
está obviamente convencido de que consumou uma ruptura fundamental com a
crítica da economia política de Marx. Já no seu livro Marx oltre Marx [Marx para além de Marx] de 1979 afirmara
que tinha exposto o cerne de um método “subjectivista materialista”, que na
verdade se limitou a levar para lá de si mesmo mais uma vez o reducionismo do
“marxismo ocidental” e a emparedar a última porta de acesso ao reconhecimento
da dialéctica fetichista sujeito-objecto na modernidade. Pretende-se que o
facto de o subjectivismo ser apenas o reverso do objectivismo e nada resolver
seja posto fora de qualquer possibilidade de ser pensado. Negri reveste
naturalmente a sua ruptura completa com a crítica da economia política de Marx
com a fórmula de uma “continuação do desenvolvimento”, o que naturalmente
permanece como afirmação gratuita sem qualquer fundamentação, tal como todas as
outras “redefinições”: “O método materialista – na justa medida em que é
totalmente subjectivado (!), à partida completamente direccionado, criativo –
de forma nenhuma pode ser aprisionado pela totalidade dialéctica ou pela
unidade lógica” (Negri 2005/1979, 7).
Mas o
capitalismo é uma totalidade negativa justamente porque não fica absorvido no
estabelecimento voluntário de objectivos imediatos dos seus sujeitos da acção;
e esta totalidade é dialéctica porque se move em contradições internas. Não
adianta nada a Negri negar simplesmente o “aprisionamento” nesta totalidade em
processo em vez de o criticar. O desmentido do tosco subjectivismo é a crise; e,
justamente por isso, ela ter de ser contrafactualmente subjectivada e
desesperadamente reinterpretada num acto de vontade conscientemente controlado,
no terreno da luta de heróis ontológica entre a multitude e o empire. Um conceito
da crise capitalista como acto de vontade consciente é tão claramente idiota à
maneira iluminista (atrás de todos está imediatamente uma vontade calculista) e
tão francamente infantil que a ideologia operaista e pós-operaísta neste ponto
tem de se apresentar ainda mais atrevida e apodíctica do que em todo o caso já
é.
O padrão
fundamental aparenta assim que, ou o proletariado ou multitude deita abaixo conscientemente na crise a dominação
capitalista (esta inversão conceptual ou falsa identificação na relação entre
crise e crítica já se encontra no marxismo do movimento operário, como se viu),
ou pelo contrário os capitalistas ou empire,
metidos em apuros pelas gloriosas “lutas” do contra-sujeito ontológico, por sua
vez conscientemente “encenam” a crise estrategicamente para afirmarem a sua
dominação. O pressuposto, naturalmente, é que Negri e Cª apagam todo o contexto
das categorias objectivadas do capital, da lei do valor à queda tendencial da
taxa de lucro (neste último ponto também Michael Heinrich, por exemplo, tem
pontos de contacto com o pós-operaísmo). Os três volumes de O Capital ficam no fundo sem objecto e
podem ser deitados fora; o que resta é a pura relação de vontade como pura
relação de poder político. Já só existem relações de poder como tais que já não
têm qualquer razão lógica de formação. (18)
Não pode passar
em claro que uma tal subjectivação da crise, que seria posta em cena como
“encenação” consciente, dá o flanco às famigeradas teorias da conspiração, cujo cerne histórico consiste na síndrome
anti-semita. Apontar este contexto não tem nada a ver com uma denúncia barata;
ele resulta involuntariamente da ideologia de uma pretensa superação da
“contradição em processo” através da sua redução a relações imediatas de
vontade e de poder. Se “o capital”, através das suas instâncias centrais de
poder e fracções dominantes, encena conscientemente a crise, isso só é
verdadeiramente pensável em concreto se para esse fim são puxados os
cordelinhos atrás dos bastidores, ocorrem acordos secretos e se impõem decisões
de poder assim construídas, incluindo uma interpretação mediática também urdida
clandestinamente. (19)
Também os
ideólogos “anti-alemães” têm uma afinidade com esta subjectivação, embora eles
evidentemente rejeitem ao máximo as interpretações da teoria da conspiração e
tematizem o seu anti-semitismo mais ou menos encapotado. Se a crítica da
ideologia falta quase completamente no pós-operaísmo (correspondendo à sua
transição pós-moderna), os “anti-alemães”, pelo contrário, como se viu, seguem
um reducionismo à crítica da ideologia. Este, no entanto, também inclui uma
subjectivação, sendo a elaboração ideológica consciente tornada um demiurgo das
relações e o lado objectivo apagado ou em última instância dissolvido em
ideologia. Assim também este pensamento não alcança a dialéctica
sujeito-objecto da “contradição em processo”.
Assim se afirma:
“A crise… não existe independentemente da consciência que as pessoas têm dela”
(Scheit 2001, 15). Aqui reside uma redução ou confusão decisiva. É verdade que
a crise resulta de acções humanas conscientes na concorrência universal, mas
justamente por isso não intencionais, mas sim como objectivação cega atrás das
costas dos agentes conscientes e em referência à sua particularidade atomizada
(como indivíduos, grupos, empresas etc.); e, nessa medida, o aparecimento da
crise é completamente independente da consciência dos seres humanos, a qual não
inclui imediatamente qualquer reflexão “sobre” as suas próprias relações. O que
de seguida não pode ser independente da consciência, pelo contrário, são as
reacções à crise e às suas formas de desenvolvimento, que têm saída aberta
(“socialismo ou barbárie”). Mas são duas coisas diferentes. Sendo as duas
postas em curto-circuito, a crise desloca-se à socapa justamente para o sujeito
calculador, como também tem de parecer sempre em última instância ao pensamento
do iluminismo. Também a partir daí poderia afinal ser destilada uma espécie de
teoria da conspiração; em todo o caso a redução da contradição a ideologia vai
acoplar secretamente a tal pensamento.
No
operaísmo/pós-operaísmo, pelo contrário, não se trata de meras inconsistências
da argumentação, mas sim de uma redução absoluta, que só pode ser designada de
grotesca, da crise e do seu conceito a decisões de poder e de vontade
conscientes e imediatas. Assim continua a afimar a velha revista operaísta Wildcat: “O operaísmo (e mais tarde
Bonefeld e Holloway) evidenciou que a crise económica mundial dos anos trinta
do século passado foi o movimento de resistência à repressão contra a força de
classe tornada evidente no começo do século e nas revoluções no fim da I Guerra
Mundial. A crise após 1973 foi marcada pelas lutas de classes e daí por uma
nova situação histórica” (Homepage Wildcat,
acesso 30.05.2009). Para este entendimento absolutamente subjectivado, a
política do então chefe do banco emissor dos EUA, Volcker, “anunciou” depois de
1979 “o longo ataque (!) da crise neoliberal” (ibidem). A “crise da crise”
(ibidem) desde o Outono de 2008 bem que deveria então ter origem no novo e astuto
plano piloto de Alan Greenspan, ou terá sido do tenebroso príncipe Voldemort?
Mas há um
pequeno problema. Se a crise acontece como vontade contra vontade (quem contra
quem?), então seria preciso dizer logo claramente se agora são os próprios
capitalistas ou os seus agentes que preparam o ataque, por meio da crise
encenada, ou se não será pelo contrário o proletariado, aliás a multitude, que de uma maneira ou de
outra está por trás de tudo. A relação entre desenvolvimento capitalista ou
crise, por um lado, e “lutas”, por outro, já no velho operaísmo era pouco
clara, como avisa Gewährsmann: “M. Tronti representava a tese muitas vezes
recebida de que as lutas do trabalho e particularmente a recusa proletária do
trabalho teriam obrigado o capital, através da baixa das taxas de mais-valia, à
introdução de saltos de produtividade sempre novos. Ao contrário disso, em R.
Panzieri quase nunca se encontra mais que a indicação do paralelismo entre
militância proletária e desenvolvimento capitalista. Panzieri nunca se deixa
convencer por afirmações relativas a uma possível relação de causalidade. Onde
se encontram tais afirmações ele tende para uma afirmação diametralmente oposta
à de Tronti: nomeadamente que a modificação do processo de produção introduzida
pelo lado capitalista conduziria a novas lutas e não o contrário” (Henninger
2008,24).
Relativamente ao
conceito de crise, a falta de clareza tem de se agravar ou mesmo conduzir à
ideia fabulosa de que “capitalistas” e “proletariado/multitude” lançam alternadamente na crise toda a sociedade
consciente e voluntariamente, de tal modo que com cada contra-ataque da vontade
contrária se chega à “crise da crise”, tal como antes ela tinha sido querida
pela parte contrária. Quando já não se consegue pensar que a crise pertence à
dialéctica sujeito-objecto e se produz como pura objectividade através da
concorrência universal ou do tratamento político-económico da contradição nas
costas dos participantes, então são inevitáveis tais disparates. Afirmações
analíticas sérias tornam-se assim completamente impossíveis (20).
Nenhuma crise
histórica no capitalismo pode ser derivada de “lutas voluntárias” imediatas;
mas a nova crise económica mundial iniciada no Outono de 2008 muito menos que
qualquer das anteriores. Pois aqui já nem sequer superficialmente é possível
construir uma conexão causal real com “lutas” ou com “políticas” conscientes,
ou quando muito só por meio de fantasmagorias óbvias. O estourar das bolhas
financeiras, a falência do Lehman Brothers e o que se seguiu não foi um complot
do empire, nem sequer foi devido à
mínima “luta social”, tanto nos EUA como noutros lados. Isso até os
normalizados construtores de casinhas da Opel e os faz-tudo do submundo da
esquerda radical compreendem. Por isso a ideologia de crise subjectivista,
perante esta situação, tem de cair no apelo puramente mistificatório a um “nós”
ideológico, na realidade dificilmente existente.
Nisto é bom
sobretudo John Holloway que reintroduziu o conceito marxiano de fetiche
novamente no pós-operaísmo apenas para o falsificar e minimizar “à maneira existencialista”
como determinação de um epifenómeno solto. A total incapacidade para explicar a
crise e o seu carácter histórico reinterpreta depois a própria impotência
perante a objectivação capitalista como uma força criadora francamente divina:
“A fúria da dignidade coloca-nos no centro. Nós produzimos o mundo com a nossa
criatividade, com a nossa actividade. Somos nós também que produzimos o capitalismo
que nos mata: por isso sabemos que podemos deixar de produzi-lo. Somos nós que
produzimos a actual crise do capitalismo, ou melhor, nós somos a crise do capitalismo” (Holloway 2008, 17, destaque de
Holloway). O facto de “todos nós” (o “nós” seriam então todos os membros da
sociedade sem excepção) reproduzirmos o capitalismo e produzirmos a sua crise,
uma vez que “nós” levamos a nossa existência no interior da sua constituição, é
aqui retirado da objectivação subjacente e reinterpretado como fantasia de
omnipotência subjectiva imediata, que só pode ser designada infantil e da qual
não há qualquer consequência. Este “nós” constitui obviamente um mistificador plural
majestático merecedor de escárnio. Se NÓS assim na NOSSA magnificência
produzimos o mundo, então também somos NÓS que produzimos o capitalismo e mais
ainda a sua crise porque NÓS em todo o caso já somos e fazemos sempre tudo. Mas,
meu Deus, aqui para nós: não teríamos NÓS podido poupar a produção do
capitalismo, se NÓS em todo o caso também produzimos a sua crise e a sua
abolição? Ou servirá tudo isto apenas para NOSSO entretenimento porque NÓS na
NOSSA superioridade houvemos por bem sentir aborrecimento?
Dissolver a
dialéctica fetichista sujeito-objecto numa falsa identidade imediata só pode
levar a um kitsch conceptual deste género, cuja “fúria da dignidade” nem como
entendimento sentimental é credível. Enquanto a subjectividade polar de empire e multitude e até mesmo a explicação com base na teoria da
conspiração ao menos ainda apontam para um resto formal da contraditoriedade
imanente (todavia não compreendida), a redução de Holloway assume no NÓS
unidimensionalmente existencialista, como sujeito da “produção da crise”,
traços directamente paranóicos: “(Nós) somos responsáveis pela crise e não
temos de fazer a revolução no futuro, uma vez que já a fazemos e a crise é a
expressão visível de que já a fazemos… Nós somos a rebeldia, quer dizer, a
crise do capital… o nosso ser rebelde, a nossa insubordinação, a nossa
dignidade é abalar o sistema. A crise do capital é uma expressão da força da
nossa dignidade. Deveríamos entender a crise não como colapso do capitalismo
mas como irrupção da nossa dignidade” (Holloway, ibidem, 17 sg.). Se os
empregados e os chefes do Lehman Brothers ou da General Motors tivessem sabido
disto…
Ora em que
consiste verdadeiramente a indignidade desta “dignidade” esfarrapada? A
subjectivação da crise corresponde à dissolução das relações de fetiche em
relações de vontade imediatas. À primeira vista os portadores da vontade
ontologizados e os seus objectivos parecem ser exteriores uns aos outros e de
certo modo contrapostos; vontade contra vontade, trabalho contra capital,
classe contra classe, multitude
contra empire, pobres contra ricos; e
que assim, em golpe e contragolpe, “fazem” conscientemente “tudo”, incluindo a
crise. A clareza supostamente obtida torna-se contudo incerta no decurso da
passagem pós-moderna. Pois também nas teorias pós-estruturalistas a coisa não é
assim tão simples; para a ontologia do poder de Foucault, por exemplo, a
“produtividade” do poder consiste justamente em que ele não representa qualquer
relação de repressão externa, mas inclui a vontade e as externalizações de
todos os participantes num processo de mutação permanente. Há, portanto, um comum
aos “combatentes”, o fluido do poder a eles extensivo, que no entanto permanece
como tal indeterminado e ontológico, enquanto os seus estados concretos surgem
apenas no plano de uma “microfísica do poder” (Foucault) em particularidades e
formas de desenvolvimento imediatas.
Esta espécie de
determinação de um contexto socialmente abrangente regride para trás do
conceito marxiano de fetiche, de uma forma negativa comum da vontade, isto é, o
enquadramento de modo funcional e socialmente diferente de todos os actores sem
excepção no mesmo contexto formal e funcional do capital, ou seja, do sujeito
automático que lhes é igualmente pressuposto e por eles em conjunto posto em
movimento. Uma vez que nas teorias pós-modernas o comum abrangente não só é
apresentado de forma redutora e difusa, mas também é ontologizado, ele
permanece tão inacessível conceptualmente como fundamentalmente incriticável. Neste
entendimento só pode haver “deslocamentos” no interior da ontologia do poder,
enquanto a determinação da forma histórica como modo de produção e de vida
específico é posta de parte. No entanto a percepção que obscuramente toma forma
de um comum aos “lutadores voluntários” tem de desmentir de certa maneira a
imediatidade dos portadores da vontade exteriores e contrapostos uns aos
outros.
Mas, uma vez que
já não existe qualquer conceito crítico da forma comum da vontade, a falsa
imediatidade vira-se num constructo absurdo, como se vê já nas abordagens de
Hardt/Negri e mais claramente nas de Holloway: os dois sujeitos da vontade que
se batem um contra o outro transformam-se às escondidas num único do qual o
outro incompreensivelmente é posto fora de si. O sujeito criador divinizado
verdadeiramente abrangente (“classe”, “multitude”,
“NÓS”) é simultaneamente o seu próprio contrário, com o que se volta
implicitamente aos velhos temas literários do sósia ou da sombra autonomizada e
à estrutura esquizofrénica da consciência (21), cuja remissão imanente à
constituição de fetiche fica por tematizar (e é mesmo explicitamente
rejeitada). Não há assim nenhuma solução analítica e conceptual do enigma, mas
apenas a mistificação de um meta-sujeito da vontade paranóico, que se entrega à
adoração laudatória.
A relação social
e a sua crise não podem ser pensadas de outra maneira quando o problema da objectivação
é feito desaparecer. Não se critica nem se rompe a forma da vontade histórica
comum, mas pretende-se que a existência imediata do NÓS seja já a reprodução
afirmativa da relação, a sua crise e a sua crítica, três em um: “Nós somos o
capital” (trabalhadores metalúrgicos manifestando-se no quarteirão bancário em
Frankfurt); “Nós somos o povo” (cidadãos da RDA por ocasião da sua
transformação em cidadãos da RFA); “Nós somos a Opel”; “Nós somos a crise”; a
nossa falência é a nossa “dignidade” e apenas uma expressão de que “Nós fazemos
a revolução”. NÓS estamos prontos para o manicómio.
NOTAS
(1) Note-se de passagem que a atribuição de uma
chamada “filosofia da história” passa completamente ao lado da argumentação da elaboração
teórica da crítica da dissociação-valor. Esta não tem nada a ver com uma
metafísica ideológica da história, segundo o padrão de Hegel ou, por outro lado,
do existencialismo, o qual, pelo contrário, é fundamentalmente criticado, na
linha da crítica da razão iluminista e dos seus derivados históricos. A teoria
radical da crise, em sentido estrito, não se refere a uma “filosofia da
história”, mas sim à dinâmica sobrejacente ao processo de acumulação
capitalista, ou seja, à história interna deste modo de produção limitado. Todos
os argumentos específicos da teoria da crise se referem apenas a isso. Se
independentemente disso se levanta a questão de uma “história de relações de
fetiche”, limitada ao plano da teoria da história, tão pouco se trata aqui de
uma “filosofia da história” de cunho hegeliano, pois também neste sentido é
rejeitada qualquer metafísica do progresso ontologicamente vinculada, sendo o
fim de uma descontinuidade histórica de “relações de fetiche” determinado de
modo puramente negativo (ver sobre isso Kurz 2004).
(2) Toda uma corrente de matadores de Marx se entretém
assim a interpretar a crítica da economia política como “racionalização
teórica” da disposição psíquica e das falhas de carácter de Marx, situação em
que por fim se terá tornado determinante uma “vontade de poder” demoníaca. O
jurista e cientista social Konrad Löw apresenta uma versão particularmente
tosca que procura explorar neste sentido a história familiar de Marx. Não
apenas a conhecida empregada doméstica teria tido de sofrer a “lascívia do
patrão” (Low, 1996, 107); Marx teria mostrado também uma “insuperável
insensibilidade para com a mulher e os filhos” (ibidem, 144), pois “recusava-se
obstinadamente a procurar um ganha-pão apesar da mais amarga pobreza” (ibidem).
Marx simplesmente não era bom e por isso a sua teoria formulada
“autocraticamente” tem de ser fundamentalmente falsa. Entretanto também Helmut
Reichelt, como representante da Nova Leitura de Marx, assumiu incursões à
psique de Marx, consistindo a sua mais recente pérola em que tudo o que é
teoricamente desagradável em Marx deverá ser reconduzido à sua soberba
neurótica. Já o jovem Marx falaria com os “gestos do saber absoluto” (Reichelt
2008, 344) e em geral: “por detrás do desprezo de Marx pelos jovens hegelianos,
os eternos estudantes que não conseguiam soltar-se da autoridade de Hegel,
esconde-se o ódio a si próprio” (ibidem, 351). O Marx perturbado teria escrito
sempre contra as suas próprias fantasias de poder: “A aspiração à imortalidade,
a ser como os deuses, confunde o sossego através da teoria com o próprio
sossego. A teoria é em si mesma a expressão da tentativa infindável de fugir a
uma ameaça” (ibidem, 357). O assustar-se perante o próprio estado de saúde psíquico
teria então obrigado Marx, no que respeita aos conteúdos, a tudo aquilo que não
agrada a Reichelt: “Esta defesa apresenta-se como – filosofia da história”
(ibidem), nomeadamente como tentativa de “ligar o pensamento da emancipação
radical com a ideia de um ponto culminante da história mundial” (ibidem, 411). Tivesse
Marx encontrado em vida um analista tão bom e os seus lapsos não lhe teriam
passado despercebidos. Provavelmente a mais tola variante de tal neurotização
da reflexão de Marx é a que apresenta o jornalista “crítico” barato de Viena,
Franz Schandl, que dissolveu a crítica do valor, por ele antes apresentada
superficialmente, em frases de filosofia da vida e de reforma da vida, e que agora
simplesmente toma como pretexto para uma “crítica do teórico” (“Kritik des
Theoretikers”, Schandl 2008) as pretensas maleitas psicossomáticas ou mesmo
doenças do “superpai”. Ninguém contesta que na elaboração teórica, como de
resto em tudo, há motivações e propensões psíquicas. A inclusão desta dimensão,
porém, tem de partir da crítica teórica estabelecida e uma defesa ou
recalcamento psíquicos simplesmente supostos não podem ser transformados
imediatamente em argumento de luta, antes de qualquer conteúdo ou de forma completamente
independente dele. No caso coloca-se de imediato a questão inversa de saber
quem investiga as motivações da motivação e o estado mental do investigador de
estados mentais. Se quiséssemos colocar a psique do indivíduo burguês realmente
em relação com as afirmações de conteúdo ou simplesmente com a teoria, então os
representantes deste tipo de diagnóstico seriam os primeiros que deviam
deitar-se no divã. Podemos pelo menos designar as suas motivações quando eles
involuntariamente se tornam ingénuos. Dito com mais dureza: quem, por razões de
ressentimento, concorrência de opiniões ou garantia da identidade ideológica,
pensa em acender o grelhador psicológico deve ser ele próprio aí grelhado.
(3) Tal entendimento pode ser encontrado é junto dos
nossos críticos, na medida em que representam restos do marxismo do movimento
operário. Aí existe como pano de fundo a “herança burguesa” da razão iluminista,
que também se pode encontrar mesmo no próprio Marx, e que inclui uma metafísica
do progresso como filosofia da história, completada por Hegel em termos de
“teoria do desenvolvimento”. Depois atribui-se ao capitalismo uma “missão
civilizatória”, em termos de metafísica da história, que está numa determinada
oposição com a “crítica pela exposição” radical e é rejeitada justamente pela
elaboração teórica da crítica da dissociação-valor. Esta metafísica da história
iluminista não é invocada somente pelos “anti-alemães”, pelo contrário,
constitui um momento afirmativo no marxismo em geral, até ao contrapolo aparente
dos “anti-imperialistas” que tomam partido por um paradigma de ideologia da
modernização para a periferia capitalista. O mesmo ponto de vista afirmativo se
encontra também em Wolfgang Fritz Haug, no segundo volume das suas lições de
introdução a O Capital: “O
capitalismo aliena a humanidade social… Mas (!) fá-lo de uma maneira que obriga
a sociedade a querer a produção pela produção. Enquanto ele desenvolve a
sociedade e – pelo menos como possibilidade – as condições de desenvolvimento
da humanidade pode falar-se de uma alienação produtiva” (Haug 2006, 214). Mas
não há qualquer férrea necessidade histórica (em sentido hegeliano) de que o
desenvolvimento das forças produtivas simplesmente apenas fosse possível na
forma destrutiva capitalista e que portanto fosse justificada transitoriamente
a exigência absurda desta relação. Tendo por base a razão iluminista o marxismo
vulgar partilha esta justificação geral com a ciência burguesa; e, justamente
por isso, gostam de reduzir a crítica a uma fasquia “ética”.
(4) Enquanto a maioria dos representantes do marxismo
residual entendem o desemprego de massas e o subemprego simplesmente como
“habituais” no sentido tradicional e não querem ver a sua qualidade nova, o
pós-operaísmo procede de modo exactamente inverso. Para Hardt/Negri “… o
‘exército industrial’ desapareceu” e “desvanece-se a separação social entre
desemprego e emprego” (Hardt/Negri 2004, 151). A nova qualidade, no entanto, é
percebida redutoramente, de modo apenas sociológico e fenomenológico. O facto
de o conceito de “exército industrial de reserva” ter perdido o seu ponto de
referência não surge como nova dimensão da crise. Bem pelo contrário, a
produção de mais-valia agora deverá ter-se alargado a toda a “zona cinzenta” do
subemprego etc., incluindo a ausência de emprego, e a toda a reprodução, mesmo
através das transferências de rendimento. Considera-se agora simplesmente como
“criador de valor” todo o ser-aí negativamente socializado no capitalismo.
Falta completamente qualquer fundamentação na teoria do valor e da acumulação;
valor e mais-valia são simplesmente “redefinidos” “biopoliticamente”, mas
também isto não é fundamentado, sendo simplesmente afirmado (sobre isto ver
mais detalhadamente o cap. 17). A única referência é o boom empírico da conjuntura económica baseada no deficit desde
2003/04. Ora, seja o conceito tradicional de “exército de reserva” mantido ou
não, o resultado é o mesmo, isto é, a ignorância da nova dimensão da crise
ligada à queda objectiva deste fenómeno.
(5) Os rastos da constituição capitalista encontram-se
a cada passo na “música de fundo” da filosofia clássica do idealismo alemão, em
que o problema surge como dialéctica de “liberdade” e “necessidade” e é
reflectido tão afirmativa como ontologicamente ou histórico-filosoficamente a
partir da base. Assim se diz em Schelling: “Liberdade deve ser necessidade e
necessidade, liberdade. Ora a necessidade em oposição à liberdade não é senão o
inconsciente; o que é inconsciente em mim é inadvertido; o que está com a
consciência está em mim através da minha vontade. Na liberdade deve haver
novamente necessidade, ou seja, tanto como isto: através da própria liberdade e
uma vez que eu acredito agir livremente, deve nascer inconscientemente (!),
isto é, sem a minha cooperação, o que não é minha intenção (!); ou, dito por
outras palavras: ao consciente, como actividade a determinar livremente, por
nós antes deduzida, deve contrapor-se um inconsciente (!) através do qual a
mais ilimitada expressão desconsidera algo de modo completamente inadvertido e,
talvez mesmo contra a vontade do acto, nasce o que ele próprio nunca teria
conseguido realizar através da sua vontade. Esta frase, por mais paradoxal que possa
parecer, não é senão apenas a expressão transcendental da relação geral
assumida e pressuposta da liberdade com uma necessidade secreta…” (Schelling
1985/1800, 662). Se a “necessidade inconsciente” em Schellling é ainda fundada numa
filosofia da natureza e a-histórica, em Hegel ela é exposta como processo
histórico “necessário” e a constituição da objectivação negativa como “astúcia
da razão” da história. O marxismo nunca foi além desta contradição
fetichistamente condicionada, como “herança” positiva da filosofia burguesa
clássica.
(6) É isso que constitui o carácter da relação de
capital, como relação de fetiche socialmente abrangente. Este carácter foi
escamoteado de diversas maneiras pelas interpretações redutoras da teoria da
acção. Em Althusser a recusa do conceito de fetiche vai de par com uma redução
“estrutural”, que reduz o problema a resultados meramente institucionais das
“relações de forças” da sociologia das classes, os quais devem então, por sua
vez, ser analisados nos respectivos dados com um entendimento positivista da
ciência. O operaísmo/pós-operaísmo dá mais um passo no abandono do conceito de
fetiche, negando qualquer objectivação e determinação em geral, mesmo reduzidas
“a estruturas”, e reduz o problema completamente à imediatidade de simples
relações de vontade. Numa variante deste pensamento, John Holloway retomou o
conceito de fetiche, mas apenas incorporado nesta falsa imediatidade de
relações de vontade meramente contingentes (Holloway 2004), de modo que a
relação de fetiche surge não como constituição histórica solidificada e
interiorizada, mas sim como ocorrência ela própria contingente, fugidia, sempre
“contestada” e sendo imediatamente posta em questão em qualquer momento. A
definição de Marx como “forma de existência objectiva” e “forma de pensamento
objectiva” é simplesmente riscada. A pretensa ultrapassagem da relação é assim
mal interpretada, como simples prática que já deve ser aplicada no simples
ser-aí dos seres humanos nela subsumidos.
(7) Na história decorrida até ao presente não se pode
falar de uma civilização no sentido positivo e enfático do termo. Também o
capitalismo não foi constituído como “progresso civilizatório”, como mesmo em
Marx aparece ocasionalmente na maneira de dizer da metafísica da história de
Hegel, mas sim a partir do estado de excepção e, como também Marx diz em
contradição com a sua lenda do progresso, “…escorrendo por todos os poros
sangue e sujeira” (Marx 1979/1890, MEW 23, 788). Tudo o que é considerado
civilização e conquista do capitalismo (Estado de direito e Estado social,
desenvolvimento das forças produtivas etc.) está à partida condicionado pelo
sucesso do objectivo da valorização. Quando na crise este fim em si fetichista
começa a paralisar, temporária ou mesmo definitivamente, revela-se a
brutalidade estrutural desta relação, todas a supostas conquistas revelam o seu
carácter de mero subproduto, sendo lançadas borda fora, e manifesta-se o núcleo
ditatorial da democracia (ver Kurz 2003 a)
(8) Já nas antigas “culturas” e impérios ocidentais,
bem como no império chinês, eram sempre os “outros” que eram considerados
“bárbaros”; este conceito foi reformulado eurocentricamente na modernidade no
contexto colonial. Ao contrário de Marx, que define a “barbárie” tanto como
ponto de partida quanto como possível ponto final do próprio capital, os
ideólogos burgueses e também o marxismo tradicional utilizaram este conceito à
velha maneira afirmativa, através da continuação da razão burguesa; até chegar
aos actuais representantes da ideologia “anti-alemã”, pelos quais a “barbárie”
volta a ser externalizada na nova crise mundial como um fenómeno que
supostamente parte da periferia e contra o qual a “civilização” do centro
capitalista deveria ser defendida como pretensa “condição prévia” para a
emancipação “desta” “civilização” negativa. O pensamento emancipatório é assim
preso num laço paradoxal, pois a “barbárie” é o cerne desta mesma
“civilização”, a qual no seu limite histórico só pode ser contrariada através
da sua abolição. Querer “salvar” primeiro o capitalismo para depois o poder
ultrapassar em condições supostamente confortáveis, não só é ingénuo como esta
opção deve ser ela própria considerada um momento da barbarização (ver Kurz
2003 b).
(9) Entende-se por si que é assim mesmo que se
reproduz a razão iluminista burguesa que não está consciente do seu próprio
carácter metafísico real na “transcendência imanente” da relação de capital. A
pretensa decifração desta falsa racionalidade, como interesse ordinário egoísta
e excluidor dos outros no gozo da riqueza material, é ela própria simplesmente
vulgar e assemelha-se ao discurso iluminista sobre a “mentira dos padres”, com
que se pretenderia encobrir o interesse desprezível dos poderes pré- ou protocapitalistas.
O materialismo vulgar “esclarecido” nunca esteve esclarecido sobre si mesmo.
(10) Este pensamento
compreende fundamentalmente mal a afirmação de Marx no capítulo do fetiche de
que se trata no caso apenas de “determinada relação social entre os próprios
homens” (Marx 1979/1890, MEW 23, 86) que para eles “assume a forma
fantasmagórica de uma relação entre coisas” (ibidem). O movimento de valorização,
como reacoplamento do trabalho abstracto e do valor a si mesmos, é realmente a relação subjacente, que
representa uma relação social dos homens no sentido em que são eles que
reproduzem através da sua acção esta relação coisal. A “fantasmagoria” é
portanto real, enquanto forma em que os seus funcionários humanos estão incluídos.
O entendimento redutor gostaria, pelo contrário, de conceber a realidade desta
forma fetichista como mero “falso pensamento”, enquanto “por trás” na realidade
estaria o interesse ordinário dos capitalistas em regalar-se com a riqueza
material (a indústria de desenhos animados da Walt Disney já foi mais longe no
tema com a figura do Tio Patinhas). A relação é então reduzida ao conceito de
propriedade jurídica formal e assim (à semelhança do que acontece no marxismo
tradicional e de outra maneira no pós-operaísmo) ao “poder” subjectivo,
nomeadamente “comprar a força de trabalho de outrem, comandando portanto o
tempo e o trabalho de outras pessoas” (Gegenstandpunkt,
1996, 108). O real carácter de fim em si da “riqueza abstracta” dissolve-se
assim no “poder de disposição do proprietário” (ibidem) e da sua finalidade
subjectiva de exploração, a fim de embolsar a parte de leão da riqueza material
(já surge aqui implicitamente como última causa a “cobiça” material dos
dominantes, que depois volta a ser tematizada com base no capital monetário
especulativo, o que Marx já tinha caracterizado como “preconceito popular”).
(11) É conveniente no
contexto aqui tematizado voltar a expor nas suas linhas fundamentais o debate
sobre o assunto no interior do contexto da velha Krisis já documentado num lugar algo afastado (Kurz 2007).
(12) Por isso há manuais de
economia empresarial, concepções divergentes de gestão e uma enchente de
“literatura de aconselhamento”, que no seu conjunto incluem um posicionamento
conscientemente voluntário sob o ditame geral do “sujeito automático”,
pressupondo no entanto este e o seu carácter como condição quase natural. O
facto de esta literatura se ter tornado inflacionária aponta para a agudização
das contradições na “acção de execução”, que de modo nenhum é automática, no
limite interno objectivo da relação social.
(13) Concepções clássicas
de processamento da contradição neste caso são, por exemplo, a acentuação
alternativa do reforço da acção do mercado ou do Estado (liberalismo e
estatismo) em que também os partidos operários e os sindicatos desde sempre se
moveram. O facto de estas alternativas imanentes (e as correspondentes
orientações voluntárias) se dissolverem em ciclos cada vez mais curtos aponta
por sua vez para a agudização e cada vez mais falta de saída no tratamento da
contradição politico-económico, ao qual também está subjacente de um modo
particular a relação de dissociação sexual.
(14) Ideologizados e
construídos como visão do mundo são os interesses contraditórios formalmente
determinados dos diferentes funcionários, onde a ontologia do trabalho do
marxismo tradicional pode ser decifrada como ideologia do trabalho assalariado
auto-afirmativo, da componente viva do capital (capital variável em Marx).
Também as concepções alternativas do tratamento da contradição são
ideologicamente infladas, enquanto a relação de dissociação se exprime em
ideologias sexistas. Ideologias projectivas de ódio, como racismo,
anticiganismo e anti-semitismo, podem ser entendidas nos seus diferentes cunhos
históricos como reacção consciente às relações de concorrência, às rejeições
sociais, às crises, mas também como falsa tematização irracional da
constituição de fetiche. A sociologia da ciência criou um conceito positivista
e neutro de ideologia, como se pode ver também em Althusser. Segundo ela as
ideologias são a expressão necessária e não a ser transcendida de determinadas
situações sociais, cuja determinação formal e contexto constitucional em geral
não aparecem. Um conceito crítico de ideologia (e, portanto, a crítica da
ideologia como postulado) só é possível do ponto de vista da crítica de todo o
contexto formal e funcional subjacente à máquina da valorização e suas
agências.
(15) Por isso se desfazem
também todas as opções de “mal menor” e de realpolitik
a elas associadas, que vêm sendo criadas desde o Linkspartei até aos
“anti-alemães”, as quais pressupõem todas a continuação da lógica da
valorização e justamente por isso têm de condenar a teoria radical da crise.
Por isso constituem, queiram ou não, parte integrante da administração da
crise, que não consegue ser sustentável por muito tempo. Se, porém, as
alternativas de acção imanentes na sua orientação fundamental se tornam
igualmente sem saída e dos diversos lados já só conseguem promover por igual a
barbarização, também a questão da responsabilidade se coloca de forma
diferente, nomeadamente no que respeita à capacidade de crítica categorial do
contexto formal fetichista e mesmo da sua “razão”.
(16) A ontologia refere-se
à sociedade e à história sempre de modo reaccionário e afirmativo, devendo
portanto neste contexto ser sempre combatida por princípio. A elaboração
ideológica da sociedade burguesa é no essencial ontológica. O que tem de ser atendido,
perante as contradições dilacerantes, é a “necessidade ontológica” (Adorno),
que pretende chegar a um resseguro sem exigir a crítica radical da forma
histórica. Entre dialéctica (negativa) e ontologia não pode haver qualquer
conciliação; aqui se separam os caminhos fundamentalmente. Não por acaso toda a
ideologia pós-moderna se interessa mais pela “ontologia fundamental” do
filósofo nazi Heidegger do que pela dialéctica de Marx na crítica da economia
política. Não é Marx que constitui a referência central, mas sim Heidegger. Já
tarda há muito tempo que seja de novo colocada a linha de fronteira entre
dialéctica e ontologia e que a luta seja decidida justamente contra os
negristas e outros heideggerianos “de esquerda”.
(17) Nesse caso
tratar-se-ia de “modelos” mentais que se contrapõem exteriormente à realidade e
a descrevem aproximadamente ou não, enquanto a “própria coisa”, em última
instância no sentido kantiano de “coisa em si”, seria subtraída ao
conhecimento. Este “método”, vindo a si no positivismo, que corresponde à
própria relação de capital e por isso já significa elaboração ideológica
afirmativa, não deve ser confundido com a crítica adorniana do conceito, que
não nega às abstracções teóricas da crítica da economia política o seu conteúdo
de realidade na “própria coisa”, mas gostaria de ter em consideração nos
objectos reais aquilo que nelas não fica absorvido. Esta crítica do conceito
diz que determinados momentos do mundo real (materiais, sociais, naturais etc.)
não são absorvidos nos conceitos porque a relação social correspondente a estes
conceitos (apreendidos crítico-negativamente) não consegue abranger
completamente este mundo, embora seja totalitária. Isto é algo completamente
diferente do entendimento positivista que pretende atribuir aos conceitos um
puro carácter reflexo, ou seja, não os entende como determinações negativas do
real, e assim assume a realidade negativa e totalitária do capitalismo
agnosticamente a partir da linha de fecho, para depois se contentar com uma
acrítica fixação nos factos.
(18) Assim se dissolve a
crítica da economia política na ontologia do poder de Foucault, por exemplo. A
raiz deste pensamento da ontologia do poder também já se encontra no marxismo
do movimento operário, não em último lugar na tendência para declarar a
autocontradição interna e as leis do movimento do capital sustidas pela
reivindicação de poder estatal e pelo controlo estatista. A teoria
social-democrata do capitalismo organizado (pelo Estado) (Hilferding) surge
também no comunismo de partido do pós-guerra e, virada negativa, na teoria
crítica de Adorno e Horkheimer. Esta corrente da ideologia de um capitalismo
emancipado das contradições e leis objectivas, como pura relação de poder,
constitui o fundamento da ideia operaísta e pós-operaísta de uma “valorização
política” imediata, bem como da tese “anti-alemã” do “capital sujeito estatal”
(ver sobre isto com mais detalhe cap. 20).
(19) A involuntária
proximidade às suspeições das teorias da conspiração abrange uma parte
considerável do espectro da esquerda, correspondendo aos diversos graus de
proximidade às subjectivações da ontologia do poder. Assim, por exemplo, a
chamada viragem neoliberal surge nos discursos do marxismo residual e do
keynesianismo de esquerda menos como reacção às contradições objectivas no
processo da crise mundial da terceira revolução industrial e mais como uma
espécie de putsch de coriféus e membros da linha dura do neoliberalismo nas
instituições capitalistas da ciência e da política, que depois também poderia
ser simplesmente anulado politicamente. A ligação subterrânea ao núcleo
anti-semita do pensamento da teoria da conspiração é naturalmente negada com
indignação. No entanto é justamente o pós-operaísmo que, com a sua extrema
subjectivação e ontologização das relações, é particularmente pouco sensível à
crítica da ideologia. Não é só o anti-semitismo, com as suas diferentes formas
de manifestação no movimento de massas global, que é minimizado como “lado
escuro da multitude”. É preciso que
se veja também se e em que medida, com o prosseguimento da crise, vêm à luz do
dia sentimentos directos da teoria da conspiração, na dissolução da ideologia
pós-operaísta, tal como do marxismo residual e do pós-marxismo em geral.
(20) Sempre que operaístas
ou pós-operaístas descrevem fenómenos de crise, especialmente da actual crise, ficam-se
pelo plano superficial; mas mesmo neste só é possível perceber a sua própria
descrição no sentido de uma dinâmica autonomizada face aos actores. De facto a
explicação subjectivista da crise é acrescentada exteriormente às descrições:
estas últimas apontam elas próprias para o facto de há muito faltarem a esta
ideologia os conceitos para o seu próprio material.
(21) Também na filosofia
assoma este tema. Assim em Hegel, já nos primeiros escritos de Jena, o Eu
decompõe-se numa vontade geral, por um lado, e numa “existência particular”,
por outro, de modo que a coerção da lei ocorre no interior do próprio Eu: “…
pois a coerção revela não a minha
submissão, o desaparecer do meu Eu contra outro Eu, mas sim de mim contra mim mesmo, de mim como
particular contra mim mesmo como universal” (Hegel 1974/1805-06, 254,
destaque de Hegel).
Nota do
tradutor
(a) O período Biedermeyer (1815-1848) está associado à
restauração alemã e é marcado pelo conservadorismo na política, na literatura e
na arte. Herr Biedermeyer é o título
de uma poesia do poeta revolucionário Ludwig Pfau, de 1847, denunciando a
mentalidade tacanha e a dupla moral do Sr. Biedermeyer (Nota trad.)
Bibliografia
Nota editorial: as referências bibliográficas foram
elaboradas posteriormente a partir das citações encontradas no texto. Poderão
ocorrer falhas.
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13187 Berlin, Deutschland, Tel +49 (0) 30 49 30 76 39, E-mail:
info@horlemann-verlag.de, http://www.horlemann.info. Tradução de Boaventura
Antunes (08/2014).