A insolvência dos corpos
A autopropriedade e a dinâmica histórica da relação
de capital
Bruno Lamas
O
‘a priori’ e a sociedade estão entrelaçados (...) O cativeiro categorial da consciência
individual reproduz o cativeiro real de cada indivíduo. Mesmo o olhar da
consciência que descobre aquele cativeiro é determinado pelas formas que ele
lhe implantou.
Adorno
(1969), Sobre sujeito e objecto
Por todo o mundo são cada vez mais aqueles que
anunciam nas páginas de classificados ou em anúncios on-line a sua inteira disponibilidade para vender um rim, um
pulmão, parte do fígado ou um olho; e em princípio nada impede que um mesmo
indivíduo venda tudo isso. O facto de o comércio de órgãos
ser hoje ilegal em quase todos os países também não parece perturbar em nada o
funcionamento do “mercado vermelho” global, nem as correspondentes organizações
mafiosas e o “turismo de transplantes”. Face à procura mundial e aos problemas
associados ao tráfico de órgãos,
não faltam por isso também apologistas da liberalização do seu comércio. “E por
que não? Não são os sujeitos modernos proprietários de si mesmos? Qual o
sentido de ser proprietário de uma coisa se não a podemos vender?”. No fundo,
esta argumentação ideológica neo-liberal limita-se a levar cinicamente até ao
fim um dos pressupostos fundamentais do capitalismo mas sobre o qual existe um
dos mais amplos consensos: a “propriedade de si”. Não podemos por isso deixar
que a raiva e o nojo que sentimos por estes argumentos nos impeça de reconhecer
o seu núcleo de verdade. É que a propriedade de si está longe de ser uma forma
social transparente e estática que possa ser reflectida escamoteando o carácter
fetichista e a dinâmica histórica da totalidade social capitalista. E agora que
o capitalismo começa a esbarrar no seu “limite interno absoluto” (Robert Kurz),
a autopropriedade revela-se também a categoria capitalista fetichista que na
verdade sempre foi, exigindo-se assim uma retrospectiva radicalmente crítica da
sua história de sofrimento.
A propriedade de si foi um dos resultados do longo e
sangrento processo histórico da chamada “acumulação original do capital”, ao
fim do qual se tornou pressuposto da produção capitalista. Essa acumulação
original do capital não se tratou simplesmente da concentração e aumento
quantitativo do capital como “coisa” previamente existente, mas antes do
próprio processo da sua constituição como algo historicamente novo, em que o
dinheiro perdeu todos os traços religiosos e se autonomizou como fetiche e
pressuposto e finalidade de toda a produção social, ou seja, capital, “valor
que se valoriza a si mesmo” (Marx). Foi através desse processo dissolvente das
formas de reprodução social pré-modernas que também nasceram verdadeiramente a
“propriedade privada”, o “trabalho” como abstracção social da energia humana
canalizada para a produção de mercadorias e o “Estado” como capataz da
organização do material humano e da transformação da sociedade numa gigantesca
máquina de trabalho. Nessa fase histórica absolutista, milhões de seres humanos
foram violentamente separados de todos os seus meios de subsistência, reduzidos
à mera existência física e obrigados a uma enorme diversidade de situações de
trabalhos forçados, de que são exemplo tanto as manufacturas estatais, prisões,
casas de trabalho e manicómios, documentados por Foucault (2004), como, numa
escala superior, as plantações esclavagistas das colónias americanas.
Mas este “pôr do indivíduo como um trabalhador, nessa nudez” (Marx 2011: 388),
ainda não o tornava imediatamente proprietário de si mesmo. Se a coerção
directa estatalmente organizada foi suficiente para a introdução do sistema
social do “trabalho abstracto” (Marx), este apenas pôde generalizar-se de
acordo com a pretensão universal da forma da mercadoria a partir do momento em
que também os seus produtores assumissem de certo modo a forma da mercadoria,
de maneira que a coerção da violência imediata foi também progressivamente
cedendo lugar à coerção mediada pelo mercado. Esta exigência funcional da
“valorização do valor” teve o seu correspondente ideológico na simultânea
ascensão do liberalismo e na primeira definição da “propriedade de si”, fixada
por Locke no século XVII: “cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa.
A esta ninguém tem direito algum além dele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra
de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele” (Locke 1998: 409). Contra as disfuncionalidades do despotismo
absolutista fazia-se então valer o civismo do mercado, a autopropriedade como
“direito natural” e a legitimação da propriedade pelo trabalho. Enquanto forma
burguesa, a propriedade de si foi a expressão ideológica de uma extensão da
forma da mercadoria aos próprios indivíduos.
Nesse âmbito, é preciso dizê-lo, os trabalhadores
não são eles mesmos uma mercadoria (como o escravo) mas antes proprietários
apenas de uma e nova mercadoria abstracta que é também a única que cria valor
novo (mais-valia): a “força de trabalho”; um conceito que hoje associamos
imediatamente a Marx mas que originalmente havia sido avançado na sua época
pela teoria da termodinâmica a propósito da conservação da energia em todos os
corpos materiais. Esta origem não é casual. É que, do ponto de vista da relação
de capital, a mercadoria vendida por um trabalhador não é nem o seu corpo nem o
produto do seu trabalho, mas o que Marx chamou de “trabalho abstracto”, o puro
“dispêndio de cérebro, nervos, músculos, sentidos etc. humanos” (Marx 1996:
197-8), que é também o pressuposto e a “substância social” do valor, uma forma
de “riqueza abstracta” cuja magnitude é medida em tempo. O capitalismo não
devora directamente o corpo dos seres humanos mas a sua energia; ele é por isso
um sistema social baseado na fadiga (Rabinbach 1992), no puro gasto de energia
humana na produção de mercadorias. Não é portanto o corpo humano em si mesmo
que assume a forma da mercadoria mas apenas a combustão de energia abstracta
nele contida. Mas como o dispêndio de energia humana só pode acontecer através
de um corpo concreto, o correspondente carácter paradoxal da mercadoria força
de trabalho revelou-se uma fonte ininterrupta de ambiguidades e equívocos, e
não em grau menor a respeito do estatuto do corpo na forma da autopropriedade
(ex.: o assalariado vende ou “aluga” o corpo? etc).
Esses problemas não impediram que no autoentendimento
liberal o mercado aparecesse como o “verdadeiro Éden dos direitos naturais do
homem” (Marx), onde proprietários de mercadoria-dinheiro e “proprietários da
força de trabalho” se relacionam como sujeitos de direito, livres e juridicamente
iguais. Daqui decorreu a metafísica moderna da liberdade contratual e toda uma
ideologia sobre a igualdade e o consenso na troca de mercadorias. E se a
autopropriedade surgiu como uma exigência específica da constituição da
mercadoria força de trabalho, não tardou a ser apresentada como uma condição
natural do ser humano. Não foi assim difícil derivar-se uma equiparação
ideológica entre a autopropriedade e uma suposta autonomia e autodeterminação
individuais. O que o Iluminismo se incumbiu de fazer foi transformar uma
necessidade funcional específica do capitalismo numa virtude eterna do ser
humano. Nos finais do século XVIII, o iluminista francês Denis Diderot afirmava
já sem problemas que “a liberdade é a propriedade de si” (Diderot, d'Alembert, et
all 1788: 419).
Ora, se a liberdade é já igual a um dos pressupostos
do mercado, então está bem à vista que ela não passa da liberdade concorrencial
de todos os autoproprietários e da respectiva autossubmissão igualitária à “mão
invisível” da máquina social de “valorização do valor”. A
concorrência é não só um pressuposto fundamental do desenvolvimento real do
capitalismo, coagindo tanto capitalistas como assalariados enquanto meras
“personificações” e “máscaras de carácter” (Marx) das suas próprias relações
sociais funcionais, como nesse processo histórico se vai tornando um princípio
de socialização abrangente e transclassista, atravessando
de uma ponta à outra toda a sociedade moderna. De acordo com isso, todos os
seres humanos são livres e racionais apenas enquanto agem dentro da forma do
valor, ou seja, enquanto sujeitos monetários concorrenciais e trabalhadores. A
cidadania jurídica e política, que durante o arranque do capitalismo era ainda
marcada pela condição da propriedade burguesa dos meios de produção e que deste
modo se mostrava ainda presa às formas de consciência feudal dos privilégios da
propriedade fundiária, torna-se uma reivindicação universalista tacitamente
fundamentada na autopropriedade e no “trabalho abstracto”.
Não
é portanto surpreendente que o
universalismo dos direitos naturais seja desde o início marcado
por um hiato entre a existência física de um ser humano e o seu reconhecimento
como tal, hiato esse que na forma jurídica é disputado em torno do conceito de
“pessoa”. Ora, não por acaso, “pessoa” (persona)
significa originalmente “máscara” (cf. Mauss 2003), o que mostra que o
reconhecimento de um ser humano está ainda dependente de uma forma metafísica
que está sobreposta à sua corporalidade e sob a qual ele tem realmente de agir,
com o que a expressão de Marx “máscara de
carácter” sobre a função social dos indivíduos modernos ganha uma significação
negativa ainda mais pertinente. É também por isso que Locke define a
autopropriedade de um indivíduo como a “propriedade em sua própria pessoa” e não sobre o seu corpo.
O problema é também visível no
esforço que
a filosofia idealista alemã fez por deduzir cada corpo individual de um sujeito
transcendental prévio, corpo que,
afinal de contas, ainda tem de dar provas sistemáticas
de capacidade de conservação e valorização, e nada o resume melhor nessa época do que o “direito à vida”
de Fichte: “a possibilidade de viver está condicionada pelo trabalho e não
existe um tal direito onde a condição não foi satisfeita” (Fichte 2012: 255).
Determinante para o reconhecimento de um ser humano como “pessoa” não é
por isso imediatamente o seu corpo mas o “trabalho abstracto” exercido pelo
corpo.
Mas
o universalismo baseado na autopropriedade é não só condicional como igualmente
falso. A autopropriedade aplica-se supostamente a todos os seres humanos, mas
na realidade sempre se mostrou também como um princípio estrutural “masculino,
branco e ocidental” (Kurz 2002). Ao mesmo tempo que o capitalismo se impunha,
as mulheres eram excluídas da autopropriedade (Pateman 1988) e
responsabilizadas por todas as actividades incompatíveis com a “valorização do
valor” mas que ainda assim se mantém como necessário pressuposto tácito de
reprodução social (criação dos filhos, administração do lar, preparação das
refeições, etc.) e sem as quais o capitalismo não poderia de todo
desenvolver-se (Scholz 1992). Num estatuto inferior se mantiveram também todos
os homens não-brancos, sobretudo os negros, que foram classificados como
“sub-humanos” pela maioria dos iluministas (com destaque para Kant) e
comercializados à escala mundial como escravos-propriedade. Não é coincidência
que o feminismo e o abolicionismo do século XIX tenham baseado as suas
reivindicações na exigência de uma “verdadeira” universalidade da
autopropriedade (ver por ex. Stanley 2007). Sendo certo que através dessa luta
vitoriosa se melhoraram
inegavelmente as condições de vida
das mulheres e dos não-brancos da generalidade dos países ditos desenvolvidos,
também é verdade que essas melhorias se deram em função das necessidades da
“valorização do valor” e na mesma medida em que os próprios assumiam as
categorias capitalistas e se mostravam “máscaras de carácter” dignas de
reconhecimento; como em outro contexto afirmou Agamben (2010: 61): “a luta pelo
reconhecimento é (...) luta por uma máscara”. Mas esse reconhecimento da
autopropriedade das mulheres e dos não-brancos está entretanto longe de lhes
garantir de uma vez para sempre o seu reconhecimento, não só porque a forma
jurídica se encontra permanentemente ameaçada pelo carácter patriarcal e
racista do capitalismo mas também porque esta se encontra submetida à dinâmica
da forma económica que lhe está na verdade pressuposta. A autopropriedade é
condição para se entrar como sujeito no mercado da concorrência universal mas
não uma garantia que nele se sobreviva.
Para
um autoproprietário se manter no mercado é preciso que ele seja solvente, que
através da venda da sua força de trabalho produza mais valor do que aquele que
consome. Mas o valor da força de trabalho é variável e relativo ao conjunto
global da reprodução social capitalista, tendendo historicamente a baixar em
função do desenvolvimento das forças produtivas e da correspondente
desvalorização dos meios de subsistência. Esta desvalorização da força de
trabalho implica também uma produção cada vez menor de valor novo (mais-valia)
no conjunto da sociedade e que apenas pode ser compensada por uma absorção cada
vez maior do número de trabalhadores. Isto apenas funciona enquanto o
desenvolvimento da maquinaria cria mais postos de trabalho do que aqueles que
suprime. No contexto de terceira revolução industrial da microelectrónica esse
mecanismo de compensação esgota-se e cresce irremediavelmente a massa de
autoproprietários supérfluos, objectivamente impossibilitados de vender a sua força de trabalho. Entretanto, o
facto de não poderem vender a energia dos seus corpos não significa que
elementos físicos e químicos dos seus corpos não possam assumir a forma da
mercadoria.
Isso não é inteiramente novo. O cabelo já era
vendido muito antes do capitalismo; a venda de leite humano era já comum na
Antiga Roma e, durante a revolução industrial, essa foi mesmo
uma fonte de rendimento para muitas mulheres. Mas nem nos primeiros casos se
tratava de uma troca de mercadorias no sentido moderno, nem no último se tratava já de um reconhecimento das mulheres como
verdadeiras autoproprietárias. A venda de sangue, permitida durante a maior
parte do século XX, foi talvez uma das primeiras formas generalizadas em que a
autopropriedade abandonou o “colete-de-forças” abstracto da força de trabalho e
se estendeu a um elemento físico do próprio corpo, ainda que renovável,
permitindo um rendimento suplementar ou de último recurso aos autoproprietários
mais vulneráveis. Entretanto, a aplicação do desenvolvimento das forças
produtivas nas ciências médicas (genética, cirurgia de transplantes,
fertilização artificial, etc.) tem vindo a possibilitar um campo cada vez mais
vasto de domínio da forma da mercadoria, abertura essa que se
dá também num quadro de uma verdadeira globalização da forma da
autopropriedade. Na década de 1990 ficaram famosas as aldeias na Índia onde significativa parte da população já tinha
vendido um rim. No Bangladesh há quem faça o mesmo hoje para pagar uma dívida
de microcrédito que supostamente permitiria acabar com a sua
miséria. Em Espanha, dezenas de pessoas tentam vender on-line quaisquer órgãos não vitais para pagar a hipoteca da casa. Vende-se
óvulos para pagar a renda ou submete-se o corpo a testes clínicos experimentais
para pagar as propinas universitárias. E apesar de a recolha de sangue ser em
todo o mundo baseada na doação, a venda de plasma, que é um dos seus
componentes de mais rápida regeneração, continua legal (cf. Carney 2011) e é
por todo o lado uma fonte de rendimento complementar.
Desse modo, vem finalmente ao de cima a lógica
fetichista da autopropriedade enquanto forma de reconhecimento social
concorrencial, patriarcal e racista, e cujos efeitos empíricos são de certo
modo resumidos por Nancy Scheper-Hughes a propósito do tráfico
global de rins: “Em geral, a circulação de rins segue as rotas de capital
estabelecidas do sul para norte, de corpos mais pobres para mais ricos, de
corpos negros e castanhos para corpos brancos, e de femininos para masculinos
ou de masculinos pobres para masculinos mais ricos” (Scheper-Hughes 2008: 22).
Surgem
neste contexto global devastador as mais diversas reacções, sem que sequer se
vislumbre uma crítica da
autopropriedade.
Destacam-se nelas pelo menos três grandes grupos ideológicos, organizados em função do tipo de relação
pressuposta entre a autopropriedade e o corpo. Em primeiro lugar, os liberais
radicais de todo o tipo (nozickianos e afins) e os ideólogos do “capital
humano” e dos “empresários de si mesmo”, com Gary S. Becker, o vencedor do
prémio Nobel da economia, posicionado na linha da frente. Nestes, a autopropriedade inclui
necessariamente a propriedade do corpo e, nesta medida, não pode haver qualquer
impedimento à livre e racional vontade de um indivíduo vender
um qualquer orgão próprio. Esta é a
posição que leva o posicionamento original do liberalismo às suas últimas
consequências e que melhor expõe as atrocidades da lógica da autopropriedade.
Em segundo lugar, os diversos autores que mais ou
menos explicitamente se apoiam no paradigma da biopolítica de Foucault e que
com intenção crítica se dirigem contra as novas formas de dominação e
mercantilização do corpo, falando a esse propósito de “biocapital”, “biovalor”
e de “mais-valia produzida biologicamente”. Aqui é
no entanto evidente a pouca ou mesmo nenhuma mediação séria com as categorias
da crítica da economia política, e, nesta medida,
sem se estabelecer qualquer relação com a autopropriedade
(ver por ex. Cooper 2008). Essa é uma abordagem duplamente redutora: por um
lado, não se aprofunda a intenção original de Foucault de “estudar o
liberalismo como quadro geral da biopolítica” (Foucault 2010: 47), nem se respeita a sua chamada de atenção para o
modo como os sujeitos concorrenciais modernos interiorizam as categorias
modernas de socialização e agem de acordo com elas (como é o caso da
autopropriedade); por outro lado, escamoteia-se que somente a mercadoria força
de trabalho produz mais-valia e que o conceito de “trabalho abstracto” de Marx,
enquanto combustão de energia humana, era já extremamente fecundo para a
crítica do que veio a ser conhecido como “biopolítica”.
Em terceiro lugar podemos delimitar um conjunto
vasto e diversificado de posições, difíceis muitas de vezes de isolar, mas que
têm em comum o facto de assumirem explicita ou implicitamente a autopropriedade
ao mesmo tempo que rejeitam total ou parcialmente a propriedade sobre o corpo.
Este é um grupo na generalidade bem intencionado mas que está longe de perceber
os motivos da actual existência de tantos autoproprietários insolventes, e que
se dedica no fundo à disputa em torno das ambiguidades do estatuto do corpo
numa autopropriedade assumida acriticamente,
apoiando-se à boa maneira pós-moderna nos despojos do pensamento iluminista
para alimentar discussões intermináveis sobre ética, moral e direitos humanos.
Aqui nunca está em causa a própria autopropriedade; a problemática fundamental
é se o corpo é ou não é, ou se pode ou não ser e em que condições, uma
mercadoria.
Se
o corpo é ou não uma mercadoria é na verdade uma falsa questão. Nenhuma coisa é
ou deixa de ser em si mesma uma mercadoria. A mercadoria é uma forma social
fetichista; neste sentido, tudo o que assume a forma da mercadoria é de facto
uma mercadoria. E para assumir essa forma também não necessita que energia de
trabalho humano tenha sido despendida nela. Questão completamente diferente é a
capacidade de uma mercadoria criar valor novo e que é exclusiva da força de
trabalho. Se um rim é trocado por dinheiro, então o rim é uma mercadoria; mas o
mundo não ficou nem um cêntimo mais rico com isso. Quem entretanto assume a
autopropriedade ao mesmo tempo que recusa totalmente a mercantilização do corpo
está no fundo a admitir a forma da mercadoria para tudo o que existe à volta e
na corporalidade viva do autoproprietário excepto para ela mesma. O corpo
parece ficar na situação paradoxal de ser uma espécie de propriedade
inalienável, cujos elementos apenas podem ser doados num contexto global
dominado pela mercadoria. Mas esse é um critério ético, como os neo-liberais
bem sabem, e que apenas pode fazer-se cumprir por via da coação legal e
vigilância policial. Quem finalmente procura definir as condições sociais de
admissão do corpo ou de alguns dos seus elementos como mercadoria, precisa de o
fazer através das categorias da “valorização do valor” e do trabalho abstracto,
dando por isso azo às maiores aberrações. O caso mais paradigmático é o de
Donna Dickenson (2007) que, ao mesmo tempo que nega de um modo geral a
propriedade sobre o corpo, procura conjugar uma perspectiva feminista com o
princípio lockeano de legitimação da propriedade pelo trabalho e a metafísica
do trabalho do marxismo tradicional sua herdeira. O resultado é uma definição
dos óvulos, da placenta e do sangue do cordão umbilical como “produtos de
valor”, frutos inegáveis de um “duro” e verdadeiro “trabalho produtivo”
feminino, que são explorados pelas indústrias da biotecnologia e de cujas
mais-valias as mulheres estão sendo injustamente privadas.
Quem
começa a crítica do capitalismo a partir de uma definição daquilo que pode ou
não ser uma mercadoria legítima vai certamente tropeçar nos seus próprios pés.
A crítica radical do capitalismo só pode ser uma crítica radical da própria
forma da mercadoria, e, neste sentido, também da forma da autopropriedade. Se
esta crítica se revelar socialmente eficaz e a humanidade conseguir realmente
emancipar-se do capitalismo e de todas as formas sociais fetichistas, o corpo
humano mostrar-se-á então uma mercadoria tão estranha e destrutiva quanto o
vestido ou o fato que ele veste.
Agamben, Giorgio (2010), Nudez. Lisboa: Relógio de
Água.
Carney, Scott
(2011), The Red Market. On the Trail of the World’s Organ Brokers, Bone
Thieves, Blood Farmers, and Child Traffickers: Harper Collins Publishers.
Cooper, Melinda
(2008), Life as Surplus: Biotechnology and Capitalism in Neoliberal Era.
Seattle: University of Washington Press.
Dickenson, Donna
(2007), Property in the body: feminist perspectives. Cambridge: Cambridge University Press.
Diderot, Denis,
J. R. d'Alembert, and et all (1788), Encyclopédie méthodique: ou par ordre de
matières. Volume 31 (e-Livro Google):
http://books.google.pt/books?id=Mh9EAAAAYAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-PT#v=onepage&q&f=false.
Fichte, Johann Gottlieb ([1797] 2012), Fundamento do Direito Natural segundo
os Princípios da Doutrina da Ciência. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Foucault, Michel
(2004), Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis: Editora Vozes.
——— ([2004] 2010),
Nascimento da Biopolítica. Lisboa: Edições 70.
Kurz, Robert (2002),
Razão Sangrenta. 20 teses contra o assim chamado iluminismo e os "valores
ocidentais", 6 de Janeiro de 2003 2002 [Acedido a 21 de Novembro de 2013].
Disponível em http://obeco.planetaclix.pt/rkurz103.htm.
Locke, John ([1689]
1998), Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes.
Marx, Karl ([1867]
1996), O Capital. Crítica da Economia Política. Vol. 1, Livro Primeiro. O
Processo de Produção do Capital, Tomo 1. São Paulo: Editora Nova Cultural.
——— (2011), Grundrisse.
Manuscritos económicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política.
São Paulo: Boitempo Editorial e Editora UFRJ.
Mauss, Marcel (2003),
"Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de
"Eu"", in Marcel Mauss (ed.) Sociologia e Antropologia,
São Paulo: Cosac Naify, 367-397.
Pateman, Carole (1988), The sexual contract: Stanford University Press.
Rabinbach, Anson (1992), The Human Motor. Energy, Fatigue, and the
Origins of Modernity: BasicBooks.
Scheper-Hughes, Nancy (2008), The Last Commodity. Post-human ethics,
global (in)justice, and the traffic in organs. Penang:
Multiversity and Citizens International.
Scholz, Roswitha
(1992), O valor é o Homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação
entre os sexos 1992 [Acedido a 23 de Maio de 2005]. Disponível em http://obeco.planetaclix.pt/rst1.htm.
Stanley, Amy Dru (2007), From bondage to contract: wage labor, marriage,
and the market in the age of slave emancipation: Cambridge University Press.
Fonte:
http://www.buala.org/pt/corpo/a-insolvencia-dos-corpos-a-autopropriedade-e-a-dinamica-historica-da-relacao-de-capital