Richard Aabromeit
UMA CRÍTICA SEM VALOR?
O teste de Michael Wendl
“Basta de ser tudo jogos de
crianças,
eu percebo de jogos de
crianças”
(Elisabeth Borchers)
O que têm em comum Michel
Aglietta, Sir John Maynard Keynes, Joseph Alois Schumpeter, Friedrich August von
Hayek, Lucas Zeise e Michael Henrich (e ainda algumas outras “teorias” modernas e
pós-modernas, como o pós-operaísmo)? Postos à prova da crítica da
dissociação-valor e da análise radical da crise dela resultante, a resposta é
muito simples: cada um deles pode esclarecer e descrever empiricamente, com mais
ou menos acerto, alguns aspectos da actual crise económica, financeira, social,
cultural e de qualquer tipo, bem como lançar sugestões mais ou menos úteis em
público e particularmente na discussão académica – mas todos eles acabam por
conseguir muito pouco explicá-los e classificá-los em termos categoriais,
porque, embora dispondo realmente de inúmeros modelos e métodos, bem como de
extenso material estatístico, faltam-lhes em grande parte os conceitos ou as
categorias adequadas! Se esse é também o caso de Michael Wendl e se, portanto,
ele deve ser classificado na série acima ou não, esse é o nosso tema. O que
todos os participantes no debate da crise também têm em comum é que eles gostam
muito de se acusar uns aos outros, e por vezes até com graça, desta
incapacidade, objectivamente ou por vezes subjectivamente – talvez nós queiramos
aqui juntar-nos a eles...
O mainstream das posições
que neste contexto de algum modo se relacionam hoje com Karl Marx na
interpretação e explicação da actual situação de crise parte do princípio de que
há alguns anos (quantos anos exactamente difere de autor/a para autor/a de forma
significativa) terão ocorrido mudanças sérias na nossa formação social
capitalista. Em particular, assume-se que o “sector financeiro”, ou seja, os
bancos centrais, bancos comerciais e de investimento, companhias de seguros,
hedge funds etc. teriam mudado qualitativamente e estariam agora a passar
por um aumento substancial de poder e de importância, chegando-se à tese de que
há mais de vinte anos “a acumulação industrial [está] sob o domínio dos mercados
financeiros” (Bischoff / Lieber, 2013: 161). O presente escrito toma posição
neste contexto sobre os artigos de Michael Wendl na revista Sozialimus
(especialmente na edição de 3/2014: Ein Marxismus ohne Wert? [Um marxismo
sem o valor?], de seguida citado como S3/14, mas também na edição 6/2014:
Säkulare Stagnation oder Schieflage der Verteilungspolitik? [Estagnação
secular ou desequilíbrio da política de distribuição?] de seguida citado como
S6/14) e por último mas não menos importante sobre o seu livro
Machttheorie oder
Werttheorie
[Teoria do poder ou teoria do valor] (Hamburgo, 2013).
No primeiro artigo citado da
Sozialimus (S3/14) Wendl confronta-se criticamente sobretudo com dois livros
recentes: um deles é a Apologie von links – Zur Kritik gängiger linker
Krisentheorien [Apologia da esquerda. Para a crítica das teorias da crise
habituais da esquerda] (Colónia / Karlsruhe, 2013) escrito por dois dos
representantes próximos da IV Internacional (ou seja, Ernest Mandel, entre
outros), Guenther Sandleben e Jacob Schaefer, e o segundo, o texto de Wolfgang
Krumbein e outros
Finanzmarktkapitalismus? Zur
Kritik einer gängigen Kriseninterpretation und Zeitdiagnose
[Capitalismo de mercado financeiro? Para a crítica da interpretação da crise e
do diagnóstico do tempo habituais] (Marburg, 2014). Estes dois livros – como o
próprio Wendl também – viram-se contra interpretações simplistas da crise do
lado da esquerda (mas também da direita), que atribuem a um qualquer tipo de
capitalismo de mercado financeiro um papel agora dominante no jogo da economia,
da ecologia, da política, etc. Wendl pretende (sobretudo) “pôr à prova” estas
duas posições, e aproveita-as “por sua vez como uma oportunidade para
questionar, com recurso à teoria do valor de Marx, as motivações de uma
supremacia dos mercados financeiros e das teorias da crise neles baseadas”
(S3/14: 42). No seu livro “Machttheorie oder Werttheorie. Die Wiederkehr
eines einfachen Marxismus [Teoria do poder ou teoria do valor. O retorno de
um marxismo simples]” (Hamburgo, 2013) Wendl evidencia, nomeadamente, que “com
uma falsa distinção entre economia real e economia financeira” (Wendl, 2013: 76)
se chegou a uma “demonização dos mercados financeiros” (ibid.: 74). Quanto a
Krumbein et al., no entanto, é preciso ter em conta que eles pretendem e
conseguem opor-se aos defensores de uma dominância do sector financeiro somente
– e também apenas – ao nível da empiria e da econometria, bem como da
metodologia científica. Em Sandleben / Schäfer, como era de esperar, a crítica
vai mais fundo. A questão, no entanto,não deverá ser em primeiro lugar
investigar criticamente as afirmações isoladas de Sandleben / Schäfer e Krumbein
et al.; mais que isso, o presente trabalho deve ilustrar os déficits que o
“teste” do próprio Wendl apresenta ao tentar contrapor aos/às representantes de
um “marxismo simples” concepções alternativas e melhores. Deve ser demonstrado,
em particular, que o seu conceito de valor e, consequentemente, a sua análise da
crise (se alguma vez formulada, ou pelo menos esboçada) não são apropriados para
criticar de forma adequada ou exaustiva as posições neo-marxistas ou mandelistas
– na verdade os seus argumentos, certamente para seu desagrado, apresentam mesmo
semelhanças com os pontos de vista por ele criticados – apesar das inúmeras
aproximações a uma compreensão mais profunda da situação social actual. Antes de
chegarmos aos pontos críticos, não devemos deixar de apontar também as passagens
de Wendl que em nossa opinião devem ser apoiadas.
A simples rejeição da tese agora
demasiado facilmente adoptada por muitas pessoas e autores/as críticos/as do
“capitalismo financeiramente induzido” (qualquer que ele seja) já o liga com a
posição aqui defendida. E também pode merecer concordância a sua observação
crítica de que Rosa Luxemburgo “ [sucumbe a] um entendimento erróneo dos
chamados esquemas da reprodução desenvolvidos por Marx no Livro 2 de O
Capital” (Wendl, 2013: 46), quando ela fala da necessidade de uma
“colonização” exterior (l. c.). Tais afirmações influenciaram bastante
evidentemente, de modo nada vantajoso, textos de Klaus Dörre (por exemplo, 2009)
e outros que trouxeram novamente a debate este teorema da colonização – mas
agora virada para dentro. Também a chamada de atenção de Wendl de que a alegação
de domínio do sector financeiro pressupõe que o predominante já não são dados
objectivos, mas puro exercício do poder por grandes empresas, sociedades
financeiras e suas elites, merecem desde logo a nossa concordância. Assim se vai
“de uma teoria do valor para uma teoria do poder” (Ibid.: 48), o que sem dúvida
devemos criticar juntos. Por último queremos ainda chamar a atenção para a
afirmação de que, no contexto de um debate político meramente interno na
Alemanha, “esta redução de direitos ao salário social através da reforma da
garantia legal de rendimento e do estabelecimento de um rendimento adicional
coberto por capital (...) e a valorização a isso associada das pensões de
velhice de base empresarial (...) [pode] com razão ser criticada a partir de uma
perspectiva de política macroeconómica e de distribuição, mas não é nem uma
colonização, nem a redistribuição de direitos sociais legais” (ibid.: 54), com o
que Wendl consegue, com base na sua longa experiência como funcionário sindical,
relativizar chavões políticos actuais provenientes da esquerda.
Na verdade, podem ser
mencionados mais alguns detalhes que poderiam demonstrar congruências na
avaliação das actuais manifestações de crise; mas isso seria ir além do escopo
desta réplica. Portanto, de seguida vamos ilustrar os principais pontos
merecedores de crítica.
Crise como coisa sexualmente
neutra?
Como primeiro ponto a criticar,
que já é quase penoso mencionar, é preciso chamar a atenção para a ausência de
qualquer referência à sexualidade, de qualque índole que seja, em praticamente
todas as tentativas de explicar, ou pelo menos descrever, os fenómenos da actual
crise. Isto é válido em primeiro lugar para Wendl, mas infelizmente para a
grande maioria de todos os outros autores/as que se pronunciaram sobre a questão
da crise recentemente. A maioria dos textos por nós conhecidos cobre com mais ou
menos com sucesso topoi tais como dinheiro, valor, acumulação, capital
(por exemplo, “capital real” versus “capital financeiro”), crise do euro, etc, e
também globalização, crise cultural, etc – mas quase nunca ocorre a estes
autores, por mais críticos que sejam, que na análise da crise também se poderia
ir à sexualidade e a todas as suas implicações no domínio privado e público. Mas
já há muito tempo que Roswitha Scholz fez notar que “O conjunto do
relacionamento social no capitalismo, contudo, não se determina somente pelo
automovimento fetichista do dinheiro e pelo carácter de fim em si do trabalho
abstracto. Pelo contrário, verifica-se uma ‘dissociação’ especificada
sexualmente, mediada dialecticamente com o valor. O dissociado não é nenhum
simples ‘sub-sistema’ desta forma (como por exemplo o comércio externo, o
sistema jurídico ou até a política), mas é essencial e constitutivo da relação
social total.” (Scholz, 2000/2011: 21) – portanto também para a teoria da crise!
Tornasse-se Wendl (e a maioria dos outros, especialmente masculinos
“naturalmente”) um dos autores a pensar mais sobre isto! Mas a observação feita
por Wendl ao autor, perante uma pergunta sobre o assunto, de que ele argumentava
num nível completamente diferente, no qual a sexualidade ainda (sic) não
surgiria, não pode augurar nada de bom.
Com base em três citações
ligeiramente mais longas de textos de Wendl vamos agora fundamentar
adicionalmente de duas maneiras diferentes: primeiro, que com a recepção
insuficiente e sem um desenvolvimento adequado da crítica da economia política
de Marx as actuais tentativas de explicação da crise que se referem apenas a
dados empíricos e minúcias metodológicas (incluindo uma aversão sobretudo
emocional contra diferentes manifestações de crise bastante desumanas) não pode
ser classificada como significativa; e, segundo, que no final fica apenas
novamente a invocação do Estado como opção de acção, o que também leva a que,
intencionalmente ou não, as posições de estratégias estatistas de poder e de
organização sejam consideradas inofensivas ou mesmo reforçadas, embora devessem
ser criticadas.
Será o valor coisa nacional?
Aqui está a primeira citação, em
que Wendl alega que a lei do valor é uma questão nacional e não globalmente
válida; assim, no seu artigo em S3/14 ele argumenta contra aqueles para quem o
poder dos que agem localmente se terá tornado superior por meio de actividades
financeiras a nível mundial contra os que actuam localmente mais na “economia
real”: “Na década de 1970 e início de 1980, a questão de saber se a ‘lei do
valor’ tem uma base nacional ou internacional levou a uma controvérsia no
interior do marxismo. Decisivo para responder a esta pergunta é a constituição
do valor nacional na base do preço e, portanto, da forma do dinheiro. A moeda
nacional e, assim, as taxas de câmbio são fundamentais para a formação e fixação
do valor das mercadorias produzidas e, portanto, a idéia de uma formação
internacional do valor é insustentável numa economia mundial determinada por
moedas nacionais. A grave crise da União Monetária Europeia e do processo de
integração europeia demonstra de forma impressionante que ainda temos de nos
haver com capitalismos nacionais e que, nesta união monetária, se chega tanto a
desvalorizações reais quanto a valorizações reais das várias mercadorias
nacionais nos processos de troca denominados em euros e que assim se escondem
diferentes produtividades dos trabalhos nacionais. A partir desta perspectiva
não se pode falar de uma internacionalização da lei do valor” (S3/14: 43 sg).
Para pôr fim à confusão sobre esta questão, devemos em primeiro lugar esclarecer
como o valor realmente se forma – e voltaremos a isso. Aqui, antes de mais,
apenas isto: ele não surge na esfera da circulação ou da realização do capital,
mas já na produção; ele também é desde logo um conceito da totalidade social e
não se pode desenvolver primeiro na mercadoria individual. Importante aqui é a
necessidade de distinguir nesta matéria entre a conceptualidade relativa ao
conjunto da sociedade justamente deste valor, por um lado, e sua forma de
manifestação concreta ou forma de expressão – como dinheiro – para o capital
individual ou para os correspondentes agentes no mercado e na política, ou seja,
para as “máscaras de caráter” (Marx), por outro lado. Estamos interessados,
então, em primeiro lugar, nas áreas de actividade e possibilidades de acção
desses agentes. É bastante exasperante que essa distinção ainda hoje tenha de
continuar a ser enfatizada ao máximo de detalhes entre marxistas e isso deve-se
provavelmente ao facto de muitos desses/as teóricos/as estarem muito vinculados
a contextos de discussão académicos ou sindicais ou dos movimentos, onde o
trabalho de pensamento conceptual e categorial é repetidamente perturbado ou
está (por vezes totalmente) impedido. Aí normalmente o pensamento modelar ou
empírico (academia) ou o pensamento dos interesses (sindicatos) ou o pensamento
da luta (movimentos sociais) ainda (ou novamente) desempenha um papel mais
importante do que o desenvolvimento de conceitos com o objectivo da crítica
(categorial)!
Mas, voltando à questão de saber
se no contexto da lei do valor estamos perante uma base nacional ou global. Pelo
menos em duas passagens já Marx assinala que o capital pressupõe empírica e
conceptualmente o mercado mundial. “Os fenómenos que estudamos neste capítulo
[entre outros o aumento do valor e a desvalorização, R.A.], pressupõem para o
seu pleno desenvolvimento o sistema de crédito e a concorrência no mercado
mundial que aliás constitui a base e a atmosfera vital do modo de produção
capitalista” (MEW 25: 120), escreve ele no Livro Terceiro de O Capital; e
já antes nos Grundrisse: “A tendência para criar o mercado mundial
está diretamente dada no próprio conceito de capital. Cada limite aparece como
uma barreira a ser superada” (MEW 42: 321; destaque no original). E em Robert
Kurz diz-se: “De acordo com o seu conceito, o campo de acção económico-social do
capital não tem limites, as únicas barreiras são as possibilidades técnicas (e
também militares da polícia mundial) de acesso.” (Kurz, 2005: 36). O plano dos
conceitos, no qual é preciso compreender e criticar o contexto geral, ou seja, a
totalidade, tem de ser distinguido da empiria, dos acontecimentos concretos, e
portando também dos campos de acção e das possibilidades de acção dos órgãos do
Estado, dos capitais individuais, dos indivíduos com as suas associações, etc.
Estes dois planos estão realmente interligados; no entanto, para a sua
compreensão e epistemicamente, eles têm de ser primeiro separados mentalmente.
No último plano sucedem também as políticas monetárias e financeiras dos bancos
centrais, dos bancos privados e dos governos. Se a pergunta inicial tivesse
sido: onde são tomadas as mais importantes decisões de política monetária e
financeira, à escala nacional ou global? – então ainda hoje a resposta teria de
ser: numa parte substancial continuam a ser tomadas na primeira, uma vez que os
poderes executivos globais (apesar do Empire postulado por Hardt/Negri)
continuam a ser muito limitados em termos de capacidade de acção e de imposição.
Basta comparar a eficácia das medidas do BCE ou da Fed com as decisões do FMI,
do BIS, ou até mesmo das agências da ONU; também neste ponto é preciso dar razão
a Wendl, pelo menos parcialmente, quando ele diz: “A grave crise da União
Monetária Europeia e do processo de integração europeia demonstra
concludentemente
que ainda temos
que nos haver com capitalismos nacionais e que nesta união monetária ocorrem
tanto valorizações reais como desvalorizações reais das diversas mercadorias
nacionais (...)” (S3/14: 44). Ora, a pergunta original visava a problemática do
valor e não a do dinheiro. A diferença entre os potenciais de acção e as
estratégias reais de acção sob o ditame da concorrência universal, por um lado,
bem como entre a análise ou crítica conceptual e categorial, por outro, é a que
existe entre “teoria e práxis”, como tanto gostam de destacar os/as chamados/as
activistas. É verdade que o abandono da empiria é punido com o risco heurístico
de uma fantasmagoria, mas, inversamente, a ignorância do plano
conceptual-categorial permanece sempre numa abordagem superficial ou numa falsa
e incompreendida percepção da realidade ou perplexidade perante ela. Há muitos
anos – basicamente desde a conclusão da fase de constituição do capitalismo (cf.
Kurz, 2012: 135 sg.) por volta do final do século XVIII – que os capitais
individuais exigem o mercado mundial. O facto de este processo não estar
realmente concluído, mesmo na época de hoje da globalização, não diz nada sobre
o facto de o mundo, ou seja, verdadeiramente, todo o universo, ser um
pré-requisito para a compreensão da totalidade do capitalismo; particularmente o
movimento do “sujeito automático”, ou seja, da valorização do valor só pode ser
localizado aí. Caso contrário, haveria capitalismos fundamental e
categorialmente diferentes ou mesmo várias formações sociais a diferenciar
localmente do capitalismo à face da Terra – o que per se o capital não
permitiria nem poderia permitir.
É verdade que deve ficar claro
que a lei do valor tem de ser pensada conceptualmente apenas em conjunto com o
mercado mundial; no entanto, a questão de saber se temos perante nós uma nova
qualidade de capitalismo, nomeadamente um capitalismo dominado pelos mercados
financeiros, não fica respondida com isso. Uma vez que nem os bancos, nem as
empresas, e nem mesmo os governos ou outras instituições políticas e estatais
compreendem o que se passa nas suas costas, também não tentam influenciá-lo.
Pelo contrário, desde o início da chamada crise financeira de 2007 eles tomaram
repetidamente medidas que assentam sempre nos problemas financeiros e
monetários, mas ignoram completamente os movimentos e a produção de riqueza
abstracta, ou seja, de valor. Assim, embora se tenha conseguido de algum modo
evitar por agora um colapso do sistema monetário internacional, no entanto as
verdadeiras causas dos fenómenos de crise actuais permaneceram completamente
intocadas, significando todas as medidas na melhor das hipóteses o adiamento da
“grande confusão”, mas não sendo minimamente combatidos os pressupostos de
futuras crises. Pode, portanto, ser concedido aos adeptos da teoria do
“capitalismo financeiramente induzido” que, no que respeita a gestão de crédito,
criação de objectos de especulação, domínio e controle da oferta de moeda e, não
em último lugar, movimento de enormes quantidades de capital fictício, o
referido capital monetário e financeiro se apropriou de um poder considerável
nos últimos trinta anos, que antes (por exemplo, nos tempos de Rudolf Hilferding
ou mesmo até na década de 1970) nunca tinha atingido tais proporções. Só que:
isso aplicou-se apenas aos fenómenos empíricos, como por exemplo inflação,
formação de bolhas financeiras, controlo da massa monetária, confiança na
concessão de crédito e, não em último lugar, a deslocação de enormes quantidades
de dinheiro, valores mobiliários, derivados, etc. Se considerarmos os movimentos
(ou não-movimentos) de valores – não propriamente valores de uso e seus preços –
estes ficam quase completamente intocados por todos esses esforços, uma vez que
o valor como coisa real-abstracta aponta para uma realidade social, mas é claro
que não pode ser detectado empírica ou estatisticamente.
Registe-se: no plano empírico
dos capitais individuais e das suas associações regionais, bem como das acções e
decisões concretas das instituições políticas e económicas, o estabelecimento de
um contexto global ou mercado mundial ainda não chegou ao fim da sua
implantação; mas, uma vez que o capital, de acordo com o seu conceito, desde o
início só pode ser entendido globalmente, a afirmação de Wendl de que “[não se
pode] falar (...) de uma internacionalização da lei do valor” (S3/14: 44) tem de
ser relativizada.
De onde vem o valor...
Vamos agora à segunda citação,
que se refere ao local de produção do valor: “A crítica neo-marxista da teoria
monetária do valor baseia-se num entendimento do valor das mercadorias como
valor-trabalho fixado já antes do processo de troca e, portanto, antes da
forma-dinheiro e do papel do dinheiro no processo de troca. Este equívoco também
caracteriza a crítica de Ladislau von Bortkiewicz, o mais importante crítico do
chamado problema da transformação, que partia da ideia de que no capitalismo,
para além do sistema de preços, quase num nível de abstracção abaixo, existe
ainda uma relação entre os proprietários de mercadorias e as suas mercadorias,
designadamente a relação dos valores de trabalho pressupostos para o processo de
troca, que surgiram na produção e portanto já existem antes da troca. Ora só há
determinação do valor ao nível do processo de troca, antes não existe” (S3/14:
46 sg., destaque no original). Não é fácil aguentar isto! Assim, o valor não
ocorreria na produção, mas apenas na troca. “Como valores as mercadorias
não são senão trabalho cristalizado.” (Marx 1983/1867: 4, destaque no
original). Onde é que este trabalho deve ser prestado – na esfera da circulação
ou da realização – ou não será já já na produção? “Consideremos agora o resíduo
dos produtos do trabalho. Nada restou deles a não ser a mesma objectividade
fantasmagórica, uma simples gelatina de trabalho humano indiferenciado, isto é,
do dispêndio de força de trabalho humano, sem consideração pela forma como foi
despendida. O que essas coisas ainda representam é apenas que em sua produção
foi despendida força de trabalho humano, foi acumulado trabalho humano. Como
cristalizações dessa substância social comum a todas elas, são elas valores –
valores mercantis.” (MEW 23: 52). Entre outras coisas, a orientação cega para a
chamada esfera da circulação e da troca que no caso acontece já levaram
Horkheimer e Adorno por vezes a um pessimismo totalmente desnecessário! Se o
trabalho abstracto é a substância do valor, então é óbvio que esta substância é
produzida na produção, porque em outro lugar não é prestado qualquer trabalho
abstracto. Mas, se o valor das mercadorias surge no processo de produção, e se
este valor na esfera da realização, ou seja, lá onde o capital sob a forma de
capital-mercadoria é novamente transformado em capital monetário (cf. MEW 24:
43ff) e, assim, o valor é realizado e revela-se como bem-sucedido ou falhado,
então é claro que aí, onde a expressão do valor, o dinheiro, se move, só podem
ocorrer formas de movimento derivadas, por isso mesmo, no entanto, empiricamente
detectáveis. Com isto não é simples explicar aos/às teóricos/as de um
capitalismo financeiramente induzido que eles não tiveram em consideração a
teoria do valor ou não a entenderam. Asim também Wendl diz que o dinheiro já
seria valor em si: “A moeda nacional e, assim, as taxas de câmbio são
fundamentais para a formação e estabelecimento do valor das mercadorias
produzidas...” (S3/14: 43). Assim alinha ele com elegância no grande grupo
daqueles que confundem constantemente os valores de uso (os corpos das
mercadorias) e os seus preços alcançados na esfera da realização, ou seja, os
resultados do trabalho concreto e sua forma equivalente, com os valores, isto é,
com os resultados do trabalho abstracto! Também não é assim tão simples
reconhecer, dadas as enormes montanhas de mercadorias sempre em repetido e
rápido crescimento, que o número estatisticamente determinável destas
quantidades de mercadorias não diz nada sobre a quantidade de valor que está
nelas – na verdade, passa-se o contrário: quanto mais mercadorias são produzidas
por unidade de tempo, devido ao aumento da produtividade do trabalho, tanto
menos valor existe nelas, esse é que é o caso; e para a massa de valor social
total só não valeria o mesmo se simultaneamente fossem aplicadas mais forças de
trabalho produtivamente activas de forma capitalista, ou seja, valorizando o
valor. No entanto, gostaríamos de acreditar que uma tal confusão deve ser a
excepção no caso de marxistas exigentes. Não pode deixar de se mencionar neste
ponto que Wendl também dispõe da capacidade de mudança, vulgo eclectismo, uma
vez que é bastante claro que o seu conceito de valor é bastante esguio; Assim
aponta ele afirmativamente para Marx: “Para Marx não se trata (...) da procura
de mercadorias, mas de expor porque não pode ser criado qualquer valor na esfera
da troca de mercadorias e porque se torna necessária para o efeito uma
mercadoria especial, ou seja, a força de trabalho...” (Wendl, 2013: 40). Com
estas definições contraditórias de um dos mais importantes conceitos da crítica
da economia política, é um pouco penoso argumentar com sucesso contra
representantes de posições não marxistas ou “neo”-marxistas.
Como resultado intermédio pode
constatar-se que Wendl não vê o enquadramento conceptual da formação do valor a
nível de todo o mundo, e que coloca a origem do valor no chamado plano da
circulação, em vez de o localizar na produção. Assim se coloca ele muito perto
dos pontos de vista por ele imensamente criticados, segundo os quais também
estão em primeiro plano os interesses nacionais do capital e as análises e
exigências que visam a esfera da circulação.
O velho problema das esquerdas:
o estatismo!
Como já foi indicado acima,
essas deficiências conceituais sem mais mediações têm com resultado a invocação
dos poderes de controlo do Estado e das forças políticas próximas dos
sindicatos, dado que apenas se toma em atenção a superfície das relações
sociais, como se pode reconhecer bem claramente na terceira citação: “Se
fizermos o balanço político dos tempos após a crise económica internacional de
meados dos anos 1970 em termos políticos, encontramos em reacção à (...)
estagflação (...) de então uma cadeia de decisões políticas que visaram a
desregulamentação política dos mercados financeiros, a eliminação dos controlos
dos movimentos de capitais, uma política monetária cada vez mais restritiva dos
bancos centrais, em particular o Banco Federal Alemão, e uma política de redução
de impostos directos, principalmente sobre as empresas, as quais também puderam
ser aplicadas com sucesso na maioria dos casos. É uma cadeia e uma acumulação de
decisões erradas do ponto de vista macro-económico na política económica em
geral, na política fiscal, mas também na política monetária, e em particular na
política salarial e na política social, mesmo que estes processos e seus
resultados tivessem de ser distinguidos de forma muito precisa de nação para
nação. Piketty, na situação actual, aponta novamente para a necessidade de
intervenções de política fiscal, o que vem atrasado, porque estamos actualmente
confrontados com os limites de uma política monetária expansionista dos bancos
centrais. Esta necessidade de um novo intervencionismo estatal é no fundo
afastada, quando se argumenta mais com o título da estagnação secular de forma
bastante fundamentalista” (S6/14: 67). Também no seu novo livro Wendl não
abandona esta posição estatista: “Na ordem do dia está a regulação política dos
mercados financeiros e aqui especialmente dos bancos comerciais. A sua
capacidade de criação de dinheiro de giro através da concessão de crédito tem de
ser efectivamente restringida” (Wendl, 2013: 93). Com tais exigências, admita-se
francamente, poderão certamente ser alcançadas a curto prazo melhorias na
situação dos pequenos aforradores/as, contribuintes, e mesmo para os
empregados/as assalariados/as. Além disso as actividades das instituições
financeiras poderiam ser temporariamente mantidas sob controlo. Mas o que
continuaria a não ter lugar sistematicamente seria o atingir das causas
fundamentais da crise.
O limite interno
Neste ponto, há que referir
ainda com a necessária brevidade uma outra deficiência mais grave de Wendl, que
tem ligação com a teoria da crise – que nele não aparece ou é apenas rudimentar.
Tal teoria da crise suficientemente profunda e não se referindo apenas ao
material empírico, no entanto, é uma conditio sine qua non para a
compreensão das estratégias sociais dos vários grupos e facções na política, na
economia etc. actualmente visíveis. Trata-se de dois conceitos centrais em Marx,
por um lado, a “contradição em processo” e, intimamente ligado com ela, o
“limite interno” do capital. Ambos os conceitos estão completamente ausentes em
Wendl e assim ele fica impedido de ver os momentos fundamentais das
manifestações de crise capitalistas. A famosa citação do Fragmento sobre as
Máquinas dos Grundrisse “O próprio capital é a contradição em
processo, [pelo facto] de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo,
ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o trabalho como única medida e fonte da
riqueza.” (MEW 42: 601) não aparece em Wendl nem formalmente de modo directo nem
indiretamente em termos de conteúdo. Assim ele desiste da possibilidade de
captar a crise de forma mais radical e, portanto, mais realista do que aqueles
que criticou. Em complemento a isso, escreve Robert Kurz sobre o limite interno
do capital: “A falta de ‘emprego’ global, por causa do nível de produtividade
atingido na imanência, conduz à falta de “capacidade de exploração” do capital,
e portanto à falta de produção de mais-valia real e com isso à falta de poder de
compra no conjunto da sociedade. Para a reprodução sempre alargada do capital
desenvolve-se assim aquele limite interno que, finalmente, após um período de
incubação condicionado pelos ciclos de retorno (e pelos processos de simulação
do capital financeiro), acaba por se manifestar na superfície do mercado como
quebra das vendas. Situação em que a restrição do poder de compra social para lá
de uma determinada medida, que o marxismo vulgar percebe como mera pobreza de
massas a favor do capital, torna-se num problema da própria valorização.” (Kurz,
2013, EXIT 11: 70 sg). Wendl com o seu déficit sobre isto revela o “lugar vazio
da teoria da crise” que “se [mostra] não apenas nas escolas do marxismo
residual, como a que se agrupa em torno da revista Argument de Haug, do
círculo em torno da Prokla mais academicamente plural ou da revista
Sozialismus saída dos esforços de “reconstrução” da teoria de Marx, as quais
ligaram amplamente a sua reflexão a interesses académicos, ideologias do
movimento, conjunturas políticas ou tendências sindicais, mas também nas
posições não imediatamente académicas ou redutoramente praxeológicas ou
politicistas.” (Kurz, EXIT 10, 2012: 42).
Verifica-se que o teste ao teste
de Wendl revela um ou outro ponto fraco da argumentação de Wendl. Que isso tenha
podido ser aqui feito apenas rudimentar e fragmentariamente deve-se à brevidade
exigida. Mas uma discussão mais alargada e aprofundada levaria a resultados
semelhantes.
Seria desejável, se se chegasse
a isso com a ajuda de uma discussão sobre os referidos conceitos de “limite
interno” e “contradição em processo”, arriscar a tentativa de ampliar os pontos
de acordo em todo o caso existentes com Wendl! Além disso todos/as os/as
marxistas deveriam sentir-se chamados/as a participar num debate com o qual
pudesse ser fundadamente rejeitado o seguinte (pre)conceito arrasador sobre si
(e outros): “Presentemente os economistas modernos, uma vez que não entendem
nada do seu objecto, causam em todos os lugares na sociedade civilizada, com
grande dedicação, grande esforço e com as melhores intenções, tanto sofrimento e
tanto mal que eles são involuntariamente os pensadores mais perniciosos em
actividade em qualquer parte do mundo” (Owen, 1827/1988: 38). Vamos a isso – ou,
como diria Robert Kurz: hic Rhodus, hic salta!
Bibliografia
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Original
Eine Kritik
ohne Wert? Der Prüfstand des Michael Wendl
in
http://www.exit-online.org,
07/2014. Tradução de Boaventura Antunes