Os tumultos em escala cada vez maior de massas fanatizadas islamistas no Médio
Oriente e no Extremo Oriente são sinais não de uma regressão arcaica, mas sim da
descarga destrutiva da ideologia de crise pós-moderna num espaço cultural
determinado. A imagem talvez mais paradigmática foi a das embaixadas da
Dinamarca e da Noruega em chamas na capital síria, Damasco: enquanto os
colaboradores evacuavam os edifícios e os governos dinamarquês e norueguês
pediam a todos os seus cidadãos para abandonarem imediatamente a Síria, a
população furiosa descarregava a sua raiva em símbolos – uma sorte, pois é
demasiado sombria a ideia do que sucederia se caíssem nas mãos das multidões
enlouquecidas os cidadãos dinamarqueses, noruegueses ou franceses, à procura dos
quais homens armados já passaram revista aos hotéis em Nablus. O facto de, não
obstante, haver vítimas mortais, neste caso nativos, durante manifestações no
Afeganistão, ilustra de maneira particularmente drástica como há poucos motivos
para dar o sinal de fim de alerta.
Notável quanto a isto é a diferença da reacção dos muçulmanos que vivem no
hemisfério ocidental. É certo que falam do seu desgosto e incompreensão sobre a
publicaçao das caricaturas de Maomé, mas ao mesmo tempo em geral condenam o uso
da força e apelam à moderação e à prudência. A manifestação em Londres, em que
foram expressas simpatias por Osama bin Laden, até agora parece ter sido um caso
isolado e o número de participantes, 800 pessoas, é notoriamente baixo,
considerando a totalidade dos muçulmanos que vivem em Londres. Isto e a
inactividade evidente dos governos e das forças policiais nos países afectados
pelas revoltas remete para uma evolução estrutural relativamente à convivência
social que mostra razões muito mais abrangentes do que um grau diferente de
fanatismo religioso.
Já muitas vezes e de vários lados foi referido o facto de que, para além do
esgotamento económico cada vez mais dramático da maior parte do mundo islâmico,
tanto o despotismo dos regimes autocráticos como o crescente asselvajamento e
brutalização da vida pública empurram a população para um estado de desespero
barbarizador – até à adaptação do anti-semitismo exterminador especificamente
alemão (sem dúvida já estabelecida há décadas) e até formas excessivas de
violência misógina, em que não se manifesta um atraso pré-moderno, mas sim a
crise da identidade masculina em geral, com um certo recorte culturalista.
Entretanto tudo isto corresponde, sem dúvida, à grande maioria da superfície
terrestre habitada. No entanto, através do fundamentalismo islâmico, a
desintegração social e a violência geral no Sudeste global torna-se num agente
adicional para uma situação que transforma as áreas afectadas numa região
mundial que em breve somente poderá ser atravessada por ocidentais em veículos
blindados – e mesmo assim não sem perigo; numa palavra: numa área “no go”
global.
O que até agora só era o caso de alguns subúrbios e favelas depauperadas
na América do Norte, América Central e América do Sul, ameaça tornar-se num
paradigma de toda uma parte do mundo. O facto de a missão dos EUA e dos seus
aliados no Iraque ter fracassado completamente apenas intensifica e acelera este
processo, e a vitória eleitoral do Hamas assassino e anti-semita nas áreas
palestinianas constitui a sua legitimação política. A retirada da Síria
do pessoal diplomático da Dinamarca e da Noruega provavelmente será só o começo
duma evolução geral. O Sudeste global islâmico já não pode ser controlado, nem
pela última potência mundial, os EUA, nem pelos respectivos governos nacionais,
ficando portanto entregue a si próprio e finalmente abandonado à decadência.
As consequências para o Ocidente seriam também catastróficas. O abastecimento em
petróleo a partir das principais regiões exportadoras já não poderia ser
garantido. A crise económica e o desemprego estrutural em massa seriam
drasticamente agravados. Os sistemas de segurança social ver-se-iam sob cada vez
mais pressão o que daria um impulso suplementar à demagogia política contra os
desempregados. Desta maneira nasceria nas regiões particularmente pouco
favorecidas um clima social que se aproximaria perigosamente das áreas “no go” e
a reprodutibilidade capitalista da vida tornar-se-ia um assunto para uma minoria
a uma velocidade ainda mais vertiginosa.
Tais cenários eram até agora reservados à ficção científica e ao cinema
apocalíptico do género Mad Max. Como não se deve pensar o impensável,
autores conservadores e liberais por enquanto contentam-se em atribuir à
democracia e à economia de mercado a capacidade de sair de crises como esta,
enquanto, segundo certos marxistas vulgares, só precisaríamos de uma ou duas
guerras devastadoras no Terceiro Mundo para ajudar a levantar outra vez o
capitalismo periodicamente em crise. Mas a história não se repete, nem tão pouco
segue padrões já conhecidos. A actual crise da socialização capitalista global é
totalmente diferente das crises conhecidas da história anterior e também já não
pode ser resolvida imanentemente ao sistema como aquelas foram.