O suposto
"sucesso" alemão é devido à redução dos custos por unidade de trabalho, mas o
aumento
geral
da produtividade do trabalho leva à crise do capitalismo, e não só na zona do
euro
Na opinião geral, uma das
razões por que "a Alemanha sobreviveu à crise melhor do que os outros", se
tornou de novo "competitiva" e " hoje se apresenta numa posição economicamente
tão brilhante" está na Agenda 2010 da coligação vermelha-verde do chanceler
Schröder e na "reestruturação do Estado social" a que ela obrigou. [1]
O que isso poderá querer
dizer é o que podem mostrar os seguintes dados, publicados em Novembro de 2011
por duas vezes na Spiegel Online, em 09.11 sob o título "Queda dos salários
reais: os alemães com cada vez menos poder de compra", e de novo em 23.11com o
título "Subida dos salários reais: os empregadores estão com mais dinheiro no
bolso". Enquanto em 09.11 se focava o desenvolvimento dos últimos 10 anos, em
23.11 tratava-se de música futurista de certos "peritos económicos" que afirmam
que os salários por hora vão aumentar 2,7% em 2012, enquanto a inflação no
próximo ano chegará a 1,9%. Mas quem é que vai acreditar nisso?
Média do
rendimento real bruto mensal do trabalho, por decil
|
|||||
2000
|
2005
|
2010
|
Variação
2000-2005
|
Variação
2000-2010
|
|
1º. Décimo
|
320 €
|
289 €
|
259 €
|
-9,7%
|
-19,1%
|
2º. Décimo
|
798 €
|
636 €
|
614 €
|
-20,3%
|
-23,1%
|
3º. Décimo
|
1290 €
|
1120 €
|
1048 €
|
-13,2%
|
-18,8%
|
4º. Décimo
|
1658 €
|
1520 €
|
1440 €
|
-8,3%
|
-13,1%
|
5º. Décimo
|
1958 €
|
1902 €
|
1798 €
|
-2,9%
|
-8,2%
|
6º. Décimo
|
2253 €
|
2245 €
|
2162 €
|
-0,4%
|
-4,0%
|
7º. Décimo
|
2554 €
|
2573 €
|
2485 €
|
0,7%
|
-2,7%
|
8º. Décimo
|
2865 €
|
2967 €
|
2845 €
|
3,6%
|
-0,7%
|
9º. Décimo
|
3434 €
|
3543 €
|
3440 €
|
3,2%
|
0,2%
|
10º. Décimo
|
5368 €
|
5340 €
|
5481 €
|
-0,5%
|
2,1%
|
Média
|
2229 €
|
2201 €
|
2136 €
|
-1,3%
|
-4,2%
|
Mediana
|
2096 €
|
2087 €
|
1941 €
|
-0,4%
|
-7,4%
|
Fonte: SOEP v27.
Valores a preços de 2005. SPIEGEL-Online 9.11.11
|
A Agenda 2010 não só reduziu descaradamente
as transferências sociais por amor da "viabilidade financeira do Estado social"
(Hartz IV), mas foi também a autorização parlamentar para o dumping salarial.
Como tal tem sido aparentemente muito bem sucedida, como se pode ver aqui a
partir do Painel Económico-Social (SOEP) da DIW Berlin. A tabela mostra o
salário mensal bruto para os anos 2000, 2005 e 2010 a preços de 2005, ou seja,
abstraindo da inflação, e dividida em dez partes de acordo com o nível salarial.
Em média, portanto, os salários reais na Alemanha diminuíram 4,2% entre 2000 e
2010, mas com um corte mais forte à custa dos que já antes ganhavam menos:
–
Nos primeiros 10% de empregados
marginais pode ver-se que quanto menor é o salário maior é a perda de salário
real.
–
Para os 70% inferiores os salários
reais caíram em média 9,5% até 2010.
–
Também os salários dos trabalhadores
qualificados (indústrias exportadores, nas décimas 6 a 8) diminuíram em termos
reais
–
Enquanto os 60% de baixo já no ano
2005 sofriam perdas de salário real, os outros só perderam na segunda metade da
década. Os salários reais foram portanto devorados de baixo para cima ao longo
da estrutura salarial. A única excepção é nos 10% superiores, que desempenham um
papel especial, por razões que não podem ser aqui examinadas.
Já em 2008 a Fundação Hans Böckler tinha
publicado um estudo segundo o qual
–
aparentemente com base em outros dados e/ou
metodologia [2] –
os salários reais na Alemanha desceram
0,8% de 2000 a 2008, enquanto em todos os outros países da UE aumentaram:
Aumento dos
salários reais de 2000 a 2008
|
|||||
Alemanha
|
-0,8%
|
Holanda
|
12,4%
|
Eslovénia
|
40,3%
|
Áustria
|
2,9%
|
Chipre
|
12,8%
|
Eslováquia
|
48,1%
|
Portugal
|
3,3%
|
Suécia
|
17,9%
|
República Checa
|
49,1%
|
Espanha
|
4,6%
|
Finlândia
|
18,9%
|
Bulgária
|
51,9%
|
Bélgica
|
7,2%
|
Polónia
|
19,0%
|
Hungria
|
66,7%
|
Itália
|
7,5%
|
Dinamarca
|
19,0%
|
Lituânia
|
104,4%
|
Malta
|
7,9%
|
Grã-Bretanha
|
26,1%
|
Estónia
|
132,5%
|
Luxemburgo
|
8,1%
|
Grécia
|
39,6%
|
Letónia
|
188,5%
|
França
|
9,6%
|
Irlanda
|
30,3%
|
Roménia
|
331,7%
|
Fonte:
Böcklerimpuls 14/2008
|
Mais um dado empírico:
Segundo os Serviços Federais de Estatística, na Alemanha o valor acrescentado
bruto por hora trabalhada na produção industrial excluindo a construção civil,
valor particularmente relevante para a exportação – calculado a preços de 2000,
deduzindo a inflação – aumentou de € 36,64/hora em 2000 para € 45,77/hora em
2008, crescendo portanto neste período 24,9% em termos reais.
O "modelo de sucesso"
alemão, com o qual foi supostamente recuperada na última década a anterior
"competitividade internacional" perdida é, em suma, uma combinação de alta
tecnologia e dumping salarial. Os elevados aumentos da produtividade já não são
transmitidos aos empregados assalariados, ao contrário do que acontecia no
fordismo e do que ainda continua em todos os outros países da UE. Acresce ainda
que a quota da produção industrial no produto interno bruto da Alemanha é
significativamente maior do que nos outros países e que, justamente por causa de
custos mais baixos do trabalho, essa relação vira-se cada vez mais em favor da
indústria alemã, porque – por exemplo – as indústrias do sul da Europa nestas
condições são cada vez menos competitivas.
As linhas de fractura
especiais, para além da crise económica mundial, na zona euro – até ao seu
colapso entretanto já considerado possível – cujos países já não podem
proteger-se entre si pela desvalorização da moeda, têm a sua causa justamente no
facto de que a economia maior e ao mesmo tempo um dos países com maior
produtividade do trabalho pratica dumping salarial.
Há muito tempo que isso
vem sendo apontado, por exemplo, pela Comissão Europeia e pela anterior ministra
das Finanças francesa e actual directora-geral do FMI, Christine Lagarde, que
convidaram os alemães a aumentar os salários e a conter sua actividade de
exportação, claro que sem qualquer resposta do lado alemão. Quem pode realmente
gostar de quebrar o seu modelo de sucesso? Em vez disso surge a recomendação
para o resto da Europa seguir o modelo alemão: "Nós fizemos o nosso trabalho de
casa" Obviamente esquece-se ou ignora-se que este modelo assenta numa assimetria
e portanto só pode funcionar enquanto não for seguido por todos os outros
também. É tão banal como aparentemente difícil de fazer compreender que nem
todos podem ter saldos comerciais positivos, porque a soma destes é
necessariamente igual a zero.
Assim, impõe-se aos
“países em crise” do sul da Europa um plano de cortes perante o qual "as
reformas de Hartz IV são como umas férias com SPA no Sri Lanka", como diz Georg
Diez no Spiegel-Online de 02.12.2011. Mas com que resultado? É claro, o BCE, a
fim de evitar um crash do euro, terá de comprar crédito público mal parado numa
escala cada vez maior, o que tendencialmente provoca a inflação, no mínimo.
Simultaneamente, toda a UE caminha para a depressão, e naturalmente também a
Alemanha: Mais de 60% das exportações alemãs (578 do total de 957 milhares de
milhões de euros) vão para a UE-27, sendo que em 2010 constituíram cerca de 23%
do Produto Interno Bruto alemão [3] e sendo que as exportações para o resto do
mundo também estão em última análise numa situação delicada.
O "gigantesco pacote de
estímulo económico financiado a crédito"
A coincidência esperada de
depressão e inflação e o consequente surto de empobrecimento deverão conduzir
provavelmente já no curto prazo a revoltas sociais, não só por toda a Europa,
mas por todo o mundo, as quais naturalmente têm que permanecer impotentes
enquanto – como ainda acontece com todos os movimentos relevantes – se agarrarem
ao meio dinheiro e apenas exigirem a sua distribuição equitativa.
Perante a produtividade do
trabalho entretanto atingida – de facto, desde os anos de 1980 – na agricultura
e na produção industrial, e que continua a aumentar, basta uma fracção cada vez
menor da força de trabalho global para produzir para todos. Este
desenvolvimento, induzido por si mesmo, colocou o modo de produção capitalista –
e com ele o funcionamento da humanidade dele dependente – numa situação de
aperto para a qual não há solução dentro do capitalismo. Aqui reside a razão
mais profunda para a crise actual que surge como crise de endividamento cada vez
maior.
Quem por si não produz –
no nível de produtividade alcançado, que é o caso da grande maioria – mas não
quer baixar o nível de vida, tem que comprar a crédito, portanto contrair
dívidas, o que é mais fácil junto dos produtores, que ficam felizes por poderem
produzir mais uma vez. Foi apenas este mecanismo que manteve a economia mundial
ainda em andamento nos últimos 30 anos. Em retrospectiva, o neo-liberalismo
revela-se assim – bem ao contrário da sua própria ideologia – como "o mais
gigantesco programa de estímulo económico financiado a crédito de sempre"
(Meinhard Miegel). Mas em algum momento a festa acaba e esse momento parece que
chegou agora.
A fim de esclarecer mais
uma vez a questão na UE: mesmo se, ao contrário das expectativas e somente com
sacrifícios consideravelmente maiores, como é o caso já dos gregos, portugueses
e espanhóis, se conseguisse pôr em forma a União Europeia ou mesmo apenas a zona
euro segundo o modelo alemão, tornando-a novamente "internacionalmente
competitiva", por outras palavras, reduzindo a UE ao nível chinês, mesmo no que
respeita às condições de vida e de trabalho – nesse caso, onde estariam os
consumidores para comprar todos os produtos maravilhosos que poderíamos então
produzir ainda mais barato?
De resto, não é apenas o
consumo de massas e o padrão de vida correspondente que são afectados pela
espiral descendente iminente, mas também a própria finalidade da economia
capitalista, ou seja, a obtenção dos lucros. No nível actual de produtividade,
não é possível a acumulação de capital sem consumo de massas, mas este não é
possível sem assumir novas dívidas. O modo de produção capitalista já não tem
qualquer luz ao fundo do túnel para oferecer, nem sequer para si próprio.
NOTAS
[1] As formulações correspondentes em todos
os principais média e representantes políticos, dos vermelhos-verdes aos
negros-amarelos, podem-se encontrar em qualquer quantidade, embora com ênfase
diferente sobre os méritos particulares do então chanceler. Estes têm origem em
Peer Steinbrück no texto de apresentação da candidatura a chanceler publicado
juntamente com Helmut Schmidt, Zug um Zug [Passo a passo], Hamburgo 2011,
p. 250, bem como no jornal ZEIT de 1.12.11, p. 10. Uma vez que aqui, obviamente,
todos parecem copiar-se uns aos outros, a citação exacta torna-se obsoleta.
[2] Um problema fundamental em estudos
empíricos é que, embora publicados os resultados, nem a base de dados
subjacentes, nem a abordagem metodológica são divulgadas para o grande público.
Os -0,8% da Fundação Böckler e os -4, 4% do SOEP não se podem harmonizar
imediatamente sem mais, ou seja, sem questionar o procedimento específico de
cada um. Os valores numéricos em cada caso publicados devem portanto ser lidos
com algum cepticismo, o que no entanto não põe em causa as tendências expressas
nos estudos.
Original LOHNDUMPING,
HIGHTECH UND KRISE via
www.exit-online.org.
Publicado em
Telepolis,
13.12.2011