O que
revela a carreira dos Bitcoins sobre a situação do meio dinheiro
Os
selvagens de Cuba achavam que o ouro era o fetiche dos espanhóis.
Organizaram uma festa em honra do ouro, cantaram à volta dele e depois
lançaram-no ao mar.
Karl Marx,
1842, MEW 1, p. 147
Sob o
título Bits e Barbárie, Paul Krugman, aqui frequentemente citado (a
última vez em
Fim do
Jogo),
conta no New York Times de 22 de Dezembro do ano passado uma fábula sobre três
tipos de criação de dinheiro, dois dos quais constituem uma regressão monetária,
que seria devida à estranha decisão de muitas pessoas de fazerem o tempo andar
para trás do nível de progresso alcançado em séculos.
Como
exemplo do primeiro tipo de criação de dinheiro Krugman menciona a mina de ouro
Porgera, na Papua-Nova Guiné, actualmente um dos maiores produtores de ouro, com
uma reputação horrível, tanto pelas suas violações dos direitos humanos como
pela destruição ambiental que provoca. Mas a mineração teria de continuar mesmo
assim por causa do preço do ouro, que ainda é três vezes maior do que há uma
década, apesar da queda desde o último pico.
Como lugar
paradigmático do segundo e muito mais notável tipo de criação de dinheiro,
Krugman menciona a "Mina de Bitcoins" em Reykjanesbaer, Islândia. Bitcoin é uma
moeda digital (ver anexo). É difícil dizer porque tem ela um valor, mas a razão
será em primeiro lugar pelo facto de as pessoas estarem dispostas a comprá-la,
porque acreditam que outras pessoas farão o mesmo. É uma espécie de ouro
virtual: pode-se escavar Bitcoins, ou seja, criar novos Bitcoins, resolvendo
problemas de matemática muito complexos, o que no entanto exige um alto
desempenho de computação e um grande consumo de energia eléctrica para o
funcionamento do computador. E, justamente porque estão disponíveis na Islândia
electricidade barata e ar frio suficiente para arrefecer o computador em
sobreaquecimento, será aí o lugar ideal para a mineração de Bitcoins.
A estas
duas formas de criação de dinheiro, na sua opinião regressivas, contrapõe
Krugman uma terceira, que seria razoável e supostamente hipotética, e que se
apoia no conselho de Keynes em 1936, no sentido de os governos gastarem na crise
o dinheiro que não têm. Então, como agora, havia reservas políticas contra esta
proposta, razão para Keynes ter recomendado ironicamente ao governo como
alternativa que enterrasse dinheiro em garrafas e depois mandasse escavá-lo
novamente por investidores privados. Até os gastos públicos completamente
ridículos impulsionariam a economia. E, afinal, a prospecção de ouro não estaria
muito longe deste tipo de actividade sem sentido: Consiste em ir buscar ouro num
lugar da terra para voltar a enterrá-lo noutro lugar, como reserva de ouro dos
bancos centrais. O padrão-ouro seria, segundo Keynes, uma "relíquia bárbara". E
– agora de novo Krugman – o Bitcoin ainda aumenta o absurdo, ao queimar recursos
para criar “ouro virtual", que consiste em nada mais do que cadeias de
caracteres electrónicos.
Aparentemente os economistas, não só neo-clássicos, mas também keynesianos como
Krugman, têm um problema, que consiste em os agentes económicos se comportarem
de forma diferente do previsto pela sua teoria. Afinal, Krugman até reconhece
esta discrepância, mas só consegue explicá-la pela tendência de muitas pessoas
para a regressão e a irracionalidade. O que fica por esclarecer é donde virá
essa tendência.
Visto de
fora, ou seja, do ponto de vista puramente material, percebe-se que todo o
debate tem traços de insanidade. A “barbárie” que aqui está em causa radica numa
relação social que exige às pessoas actividades completamente sem sentido, ou
até nocivas em termos do conjunto da sociedade, para poderem sobreviver nos
próximos dias ou semanas. Trata-se, como é sabido, de um dos males menores do
modo de produção vigente, que naturalmente não se limita à criação de dinheiro,
mas permeia as condições de trabalho no capitalismo decadente: dos prémios de
abate de automóveis (que seguem as recomendações keynesianas), passando pela
aplicação preventiva de antibióticos na pecuária industrial, até à devastação de
regiões inteiras em busca da última gota de petróleo, para citar apenas alguns
dos exemplos dos mais inócuos.
E bárbaro
no ouro não é o metal, mas que ele se tenha tornado um fetiche, o que em todo o
caso não seria possível sem o fetiche subjacente da mercadoria e do dinheiro,
como mostram os "selvagens de Cuba" de que fala Marx: Sem o dinheiro como
relação social é possível manter com o ouro um trato bastante descontraído.
Neste
contexto, afinal, a mineração de Bitcoins também é de facto louca, mas
relativamente inofensiva – é a farsa, com a qual a história se repete segundo um
dito de Marx, neste caso a história do fetiche ouro. Bitcoins, como moeda
escritural, podem ser produzidos a partir do nada. No entanto, para simular
solidez de valor, ele é fantasiado de ouro. Tal como no caso do ouro, deve
primeiro ser gasta uma certa quantidade de trabalho e de recursos, para que os
Bitcoins apareçam. Mas isso é mera aparência, pois esse esforço é totalmente
desnecessário, também se podem produzir Bitcoins mesmo sem ele. No caso do ouro
é diferente, uma vez que o trabalho é realmente necessário (incluindo a
exploração e a destruição ambiental que lhe estão associadas) para tirá-lo da
terra.
Em última
análise, o Bitcoin é dinheiro falso, que nem sequer faz um esforço para parecer
dinheiro “verdadeiro". No entanto, se ele consegue fazer carreira, se pode ser
trocado facilmente por dólares ou euros, então provavelmente já não estará assim
tão longe da moeda emitida pelos bancos centrais. Na verdade, as moedas digitais
são apenas o culminar de um desenvolvimento de décadas. Desde o fim do sistema
de Bretton Woods, e com ele da cobertura em ouro do dólar, em 1972, também o
dinheiro dos bancos centrais tem cada vez menos a ver com a riqueza real. Nos
últimos trinta anos, por exemplo, a riqueza global em dinheiro e aplicações
financeiras cresceu vinte vezes, obviamente sem cobertura de valores reais. É a
consequência do programa de estímulo económico financiado a crédito tornado
possível pela desregulamentação neoliberal dos mercados financeiros, com o qual
a economia real é mantida em movimento há quase quarenta anos, bem no sentido de
Keynes, só que são os financiadores privados que tomam o lugar dos governos e
não se vê nada de uma retoma auto-sustentável.
As enormes
quantidades de dinheiro a circular no céu financeiro em busca de oportunidades
de investimento levam à inflação em todos os mercados onde são aplicadas, seja
em acções, no imobiliário ou nas matérias-primas. Um exemplo: o índice Dow
Jones, uma medida para a avaliação das sociedades por acções dos Estados Unidos
cotadas em bolsa, viu o seu valor ajustado à inflação multiplicado por sete
entre 1982 e 2000, e isto num tempo em que estagnou a economia real nos EUA.
Para os proprietários de acções uma tal inflação de activos é bem-vinda, pois
eles podem revender as suas acções. O facto de a riqueza financeira multiplicada
por sete continuar a representar o mesmo valor empresarial é aqui irrelevante.
O Bitcoin
conseguiu nos primeiros onze meses de 2013 gerar uma bolha ainda maior, uma vez
que a sua cotação em relação ao dólar aumentou 93,5 vezes (ver anexo), também
sem representar o mínimo valor real. Ironicamente, nas justificações ideológicas
para as moedas digitais, fala-se da perda de confiança nos mercados financeiros
e nos bancos centrais, contra o que se deveria contrapor uma moeda
"respeitável", que não poderia ser manipulada. Mas, por trás das costas dos
actores, o instrumento torna-se de repente outro objecto de especulação. Apesar
de tudo, alguns deles estão ricos.
No
entanto, a desconfiança em relação ao dinheiro dos bancos centrais, dada a falta
de cobertura por valores reais, é perfeitamente justificada e também explica a
fuga para o ouro, como meio de armazenamento de valor. Se o ouro é realmente um
meio adequado para o efeito é o que falta provar; afinal também aqui se formou
uma bolha que, como todas as bolhas, pode rebentar.
O dinheiro
só é aplicado produtivamente em sentido capitalista se for gerada mais-valia
pela exploração de trabalho. Obviamente que essa possibilidade de aplicação já
não existe numa escala suficiente para o dinheiro disponível, de modo que cada
vez mais dinheiro se multiplica de modo meramente fictício, ou então
simplesmente é acumulado, por exemplo, como metal precioso. Mesmo que os
keynesianos não possam ou não queiram imaginar isso, este desenvolvimento aponta
para o facto de o dinheiro, como relação social, se ter tornado obsoleto nos 40
anos após o fim do sistema de Bretton Woods.
Anexo:
Bitcoin & Cª.
O Bitcoin, comercializado
desde 2009, é a primeira, a mais destacada e a mais importante das chamadas
moedas digitais, das quais existe agora quase uma centena a preencher os
mercados da Internet. Pode encontrar-se uma lista das mais importantes e das
suas características comuns na entrada "criptomoeda" da Wikipedia.
Os Bitcoins podem ser
trocados na Internet por dólares ou euros. Ao adquirir Bitcoins eles formam uma
conta no próprio disco rígido, conectados numa rede peer-to-peer protegida por
métodos de criptografia. Todas as transacções de Bitcoin são públicas nesta
rede, mas os titulares das contas Bitcoin mantêm o anonimato. A ideia das moedas
digitais é um dinheiro sem bancos nem Estado. Abstraindo das possibilidades de
lavagem de dinheiro, de tráfico de droga e outras actividades ocultas, o uso de
Bitcoins é no entanto modesto como meio de pagamento. As poucas empresas que
aceitam Bitcoins (ver, por exemplo, http://go-bitcoin.com, incluindo a grotesca
auto-sobreavaliação do quadro) aceitam também naturalmente o dinheiro de contado
e os outros meios de pagamento usuais, com os quais o pagamento é muito mais
simples.
Uma taxa de câmbio fixa entre
o Bitcoin e o dólar seria de facto adequada para a possibilidade de pagamentos
electrónicos sem bancos. Na verdade essa taxa de câmbio é deixada ao mercado e
isso faz dos Bitcoins um objecto de especulação. A grande maioria dos Bitcoins
são usados não para compras, mas para a especulação monetária. Quem foi
acumulando Bitcoins ao longo do ano de 2013 conseguiu ficar rico: Entre 1 de
Janeiro e 30 de Novembro o preço do Bitcoin aumentou 93,5 vezes, de 13 para
1.216 dólares. Caiu então 50 por cento e em seguida subiu novamente. Em janeiro
de 2014 o preço oscilou entre 770 e 900 dólares. A elevada volatilidade põe em
questão o Bitcoin como meio de pagamento: Ninguém paga em Bitcoins se esperar
que eles valham 15 por cento mais na próxima semana, e ninguém os aceita se
estiver iminente uma queda da cotação.
Outro mercado conexo que se
abre é a "mineração de Bitcoins", o "escavar" de novos Bitcoins. Quem os quiser
produzir e gerir na sua conta tem de resolver tarefas de computação complexas em
concorrência com outros. No início dos Bitcoin bastava um computador normal,
agora são necessárias máquinas de computação cujo aquecimento dá para aquecer
uma casa inteira e cujo custo de aquisição é o de um carro de médio porte. E,
apesar deste esforço, o sucesso não é certo, pois a concorrência é grande e o
número de novos Bitcoins é limitado pelo algoritmo subjacente. No fim, como no
caso do ouro, quem beneficia não são os garimpeiros, mas quem lhes vende as
ferramentas de prospecção.
A quantidade máxima de
bitcoins está fixada em 21 milhões, no final de janeiro de 2014 havia 12,3
milhões no valor total de cerca de 10.000 milhões de dólares. Mas isso pode
mudar rapidamente.
Original
DIGITALE UND ANDERE BLÜTEN. Was die Karriere des Bitcoins über den Zustand des
Geldmediums verrät
in
www.exit-online.org.
Publicado em
KONKRET
03/2014 com o título BITTE EIN BITCOIN. Digitale Währungen geben Auskunft
über die Abkopplung der Finanzmärkte von der Realökonomie. Tradução de
Boaventura Antunes