ou
A
continuidade desumana do pensamento ideológico iluminista
Ondas
com metros de altura rolando imparavelmente, em vagas sucessivas, ao longo do
globo terrestre; terramotos que abrem fissuras de quilómetros no chão,
arrastando para as profundezas zonas residenciais inteiras, como construções
de cartão desfeitas. Numa era de crise fundamental, a consciência burguesa é
particularmente susceptível a cenários de catástrofe, como o descrito acima,
do filme com o nome “provocante” de “2012”, em que se expressa
paradigmaticamente o medo, descarregado da forma mais profundamente projectiva,
perante a queda gradual da própria sociedade - no caso de Roland Emmerich, com
uma piscadela de olho do produtor, que sabe da afinidade neurótica do sujeito
de crise com estas imagens de horror.
Por
conseguinte, poderá ser mais do que uma simples analogia superficial, o facto
de a mensagem do filme ter podido ser simplesmente o lema de vida do sujeito de
crise: a salvação está próxima!
Mas
o filme deixa um travo amargo: apenas uma pequena parte da humanidade poderá
escapar ao dilúvio, em “arcas” especialmente concebidas para o efeito, pelo
que se coloca desde logo a questão da selecção; e também aqui, mais uma vez,
não será por acaso que o cenário se apresenta em seus protagonistas de um
ponto de vista branco ocidental.
Mas
esta pulsão selectiva, representada de forma sublimada na figura de filme,
ocorre presentemente na realidade do sujeito de crise, cada vez mais às claras
e com toda a força. A crise fundamental é essencialmente a crise do sujeito
masculino e branco ocidental (MBO), prestes a ser esmagado pela negatividade da
sua própria socialização; e a ignorância desta forma de sujeito,
relativamente à crise que alastra cada vez mais profundamente, apenas pode ser
mantida por ideologias de exclusão, numa luta impotente contra a realidade
cruel: o racismo na Europa tornou-se de novo socialmente aceitável, num amplo
consenso. Ele até foi eleito directamente, mesmo que possam vir lágrimas aos
olhos da fedorenta normalidade burguesa, perante este acto heróico da política
democrática padrão: o núcleo anti-emancipatório da liberdade e igualdade
mostra-se em forma pura nos tempos da sua decadência.
Pois
não é só a proibição dos minaretes na Suíça, que nem foi uma decisão unânime,
a apontar para um racismo que se articula cada vez mais imediatamente (1). Até
um acontecimento na Itália indica como o MBO, no decorrer de sua queda, se
prepara para fazer face à crise fundamental: aí se chegou a uma situação, em
Rosarno, em que uma “comissão de cidadãos” exigiu a expulsão de todos os
estrangeiros imigrantes ilegais da cidade. “Nós não somos racistas, não
temos nada contra os imigrantes legais, só queremos a segurança dos cidadãos.”
(2)
Não,
naturalmente que os bons cidadãos não são racistas. Mas se estes
trabalhadores migrantes ainda por cima imaginam ter que se defender por estarem
a ser perseguidos como fora de lei com espingardas de pressão de ar (3), então
é claro que a coisa foi longe demais. E assim o cidadão normal de todas as
classes regozija-se por “essa gente”, finalmente, ser levada daqui pela polícia
- tudo de acordo com as regras; na Europa, é de novo legalmente permitido
deportar pessoas.
A
crítica internacional a estes incidentes foi tão inconsequente como previsível:
por exemplo, os “Relatores Especiais das Nações Unidas para os Direitos dos
Migrantes e contra o Racismo, Jorge Bustamante e Githu Muigai” reivindicaram
que teria de ser posta em prática uma política de migração “de acordo com
as normas internacionais relativas aos direitos humanos”. (4) Ao que uma
esquerda há muito domesticada no capitalismo não terá muito a acrescentar.
Estes
exemplos apenas mostram claramente, no plano empírico, que a crise chegou onde
ninguém imaginava ser possível: aos países centrais europeus. E parece que é
afectada a esquerda, a qual não se opôs teoricamente, nem portanto também
praticamente, a esta crise nem aos processos de barbarização daí decorrentes.
Pelo contrário, ela acompanha este falso imediatismo, mesmo quando se apresenta
como radical: diversas vezes foi apontado no contexto da crítica da dissociação
e do valor que o racismo anti-islâmico, que se exprime também na ideologia
anti-alemã, representa uma forma de reacção ideológica fundamental do MBO
que se afunda, e no seu conjunto aponta, portanto, para uma síndrome de
profundidade da forma de sujeito: precisamente para o crescimento exponencial do
racismo europeu, na esteira da crise da subjectividade ocidental. (5) É o que
mostra o chamado “Estudo Heitmeyer” de Novembro passado, segundo o qual um
em cada dois europeus destes países concorda com as declarações “há
imigrantes a mais” e “o Islão é uma religião de intolerância”. 43 por
cento dos inquiridos consideram que a homossexualidade é imoral, quase um terço
assume uma “hierarquia natural entre negros e brancos”, um quarto parte do
princípio que “os judeus têm influência demais.” (6)
Seria
necessário, não em último lugar, uma esquerda forte, que pudesse opor-se a
esta loucura; pois o estudo mostra que, na consciência quotidiana das relações
de concorrência, atribuições completamente diferentes e até contraditórias
passam por estar de acordo, como sedimento ideológico. O que os “anti-alemães”,
por um lado, e os anti-imperialistas anti-israelitas, por outro lado, não
querem ver é aqui claramente expresso, a saber, a simultaneidade de padrões
racistas e anti-semitas de pensamento (sem que ambos possam ser equiparados).
De
facto, seria necessária uma esquerda que estivesse ciente da sua origem ideológica,
com perspicácia crítica. Porque, como é sabido, o racismo (para além do
anti-semitismo e do sexismo) tem uma longa história europeia, e especialmente
alemã: a sua forte fundamentação e implantação ideológica radica no
racismo dos ideólogos do Iluminismo. Deve ser lembrada aqui, especialmente,
desde a tendência racista de Kant e de Hegel, no caso do primeiro na forma de
incitação contra “negro preguiçoso” (e não só), até ao racismo subtil
da esquerda que, por exemplo em Rudi Dutschke, em sua obra “Tentativa de pôr
Lenine de pé”, tinha tentado a sua legitimação teórica, procurando
explicar o fracasso da Revolução Russa a partir das relações de produção e
mentalidades “asiáticas”, que representariam um modo de produção negativo
sui generis (7) - uma figura de
argumentação ideológica perfeitamente similar à agora formulada pelo racismo
anti-islâmico, que não deve ser confundido com a necessária crítica radical
do conteúdo anti-semita do Islamismo pós-moderno. Mas a esquerda parece não
ter aprendido nada com a sua própria história e assim, perante uma pressão
mais forte para a falsa imediatidade, pode acontecer muito rapidamente que, de
repente, deixe de se entender a si mesma. Da ATTAC, passando pelo Linkspartei,
até aos anti-alemães, em tempos de crise ela guarnece-se mais do que nunca com
as categorias burguesas de “liberdade, igualdade, democracia”, as quais
anuncia com um entusiasmo de incrível ingenuidade, correndo, portanto, o risco
de ela própria cair cada vez mais num “racismo estrutural”. A dicotomia de
racismo e direitos humanos, tal como é apresentada pelos Relatores Especiais
das Nações Unidas para os Direitos dos Migrantes e contra o Racismo, e como se
encontra também entre os anti-alemães com uma acentuação semelhante (só
que, no caso destes, os valores ocidentais são jogados contra o mundo islâmico
anti-semita), constitui uma ilusão ideológica. Se não se conseguir quebrá-la
pela negatividade da crítica radical, não será possível combater o racismo,
por não ser possível compreendê-lo no seu contexto condicional estrutural.
A
invocação dos valores ocidentais, designadamente, não é um antídoto eficaz
contra as quedas no racismo, mas estas últimas é que são provocadas pela
primeira. Tal invocação, portanto, não passa ela própria de um combate ideológico
de retaguarda contra as consequências das suas próprias falsas premissas.
A
sugestão de universalidade dos direitos humanos burgueses e de seus valores de
liberdade e igualdade não passa, na verdade, de um momento das relações históricas
de exclusão, uma particularidade no interior da totalidade constituída pelo
“sujeito automático” mais o domínio dele dissociado do trabalho doméstico
e amoroso. Nas cerimónias rituais de invocação desses valores e dos
“direitos humanos eternos” exprimem-se as pretensões do sujeito burguês da
circulação, que não está consciente de seu próprio contexto condicional
social. Dentro do movimento de produção e circulação em si mediado, pode
falar-se, em sentido dialéctico, da determinação do sujeito do direito e do
Estado pelo sujeito da concorrência e do trabalho, somente na medida em que a
fonte última da própria substância fetichista real do “trabalho
abstracto” reside no plano da forma de produção. (8) Se este contexto
imanente da subjectividade burguesa não for conceptualizado também não pode
ser reconhecido o contexto de dissociação fetichista no plano geral da
totalidade social, uma vez que este contexto está numa relação dialéctica
necessária com aquela subjectividade burguesa.
A
ausência de crítica do racismo, quer burguesa quer cada vez mais também da
esquerda, ausência essa relacionada com um conceito positivo de sujeito,
degenera, portanto, na aparência social real, que é provocada pelo facto de
que “os produtores apenas entram em contacto social através da troca dos
produtos do seu trabalho, [e assim] também os caracteres sociais específicos
de seus trabalhos privados apenas surgem nesta troca. Ou os trabalhos privados,
de facto, actuam apenas como membros do trabalho social geral através das relações
em que a troca desloca os produtos do trabalho e através deles os produtores.
Para este últimos, portanto, as relações sociais de seus trabalhos privados
surgem como o que elas são, ou seja, não como relações sociais imediatas
entre as pessoas nos seus próprios trabalhos, mas sim como relações materiais
entre pessoas e relações sociais entre coisas.” (9) Se Marx já censurou
Ricardo e Smith, que apesar de tudo se agarravam ainda a um conceito de valor - embora insuficiente
- porque estes, ao confundir capital fixo e circulante com
capital variável e constante, teriam “transformado o processo de produção
capitalista num completo mistério”, onde “a origem da mais-valia contida no
produto desaparece completamente da vista” (10), por maioria de razão isso se
aplica à consciência pós-moderna virtualizada, que não elaborou criticamente
a separação estrutural entre os mercados financeiros e a forma de produção
desde a década de 1980. À ausência de substância dos movimentos de acumulação
de capital corresponde a ausência de substância da reflexão teórica. Assim,
também a consciência de esquerda parece definitivamente apoiada e
complementada pelos “modos toscamente empíricos” (Marx) da empresa académica,
no ponto de vista das «relações objectivas entre as pessoas”, para assim
estar de volta a puras relações de circulação, o que tem por consequência
que ela fica impotente perante o racismo crescente.
Deste
modo se deixa de ver, nomeadamente, que as relações jurídicas dos sujeitos da
mercadoria também se tornam obsoletas, juntamente com a capacidade de valorização
do capital. O pensamento de esquerda perpetua a doutrina da universalidade da
razão da ideologia iluminista, especialmente na inversão da relação entre
capacidade jurídica e capacidade de trabalho; e, portanto, vaporiza qualquer
impulso decisivo num moralismo impotente (precisamente aquela reivindicação de
direitos civis, que é jogada contra a realidade), o que já representa o
primeiro passo para a barbárie quotidiana. Nesse sentido, a invocação dos
valores burgueses é para a consciência crítica, na melhor das hipóteses,
impotência pura - no pior caso, ela própria é estruturalmente racista, uma vez
que não consegue superar a relação necessária entre as correspondentes formações
ideológicas e a universalidade meramente aparente de direitos e valores
burgueses, ficando assim condenada à oscilação mental entre estes dois pólos
opostos dicotómicos.
Se
o processo de “desumanização da humanidade” no decurso da crise
fundamental esteve até agora em grande parte confinado ao mundo não europeu
(mesmo se, por exemplo, o tratamento dos beneficiários do plano Hartz IV já
mostra este declínio das exigências legais na Alemanha, e se os “campos de
detenção” de “imigrantes ilegais” por toda a Europa representam um
excelente exemplo dessa ausência do direito), agora a tendência para as
pessoas se tornarem supérfluas penetra também nos países centrais europeus.
É uma ironia cruel, no caso mencionado de trabalhadores migrantes africanos em
Itália, que estes se tenham manifestado precisamente pelo seu “direito ao
trabalho” e, portanto, se tenham entregado já indefesos à máquina da
valorização em colapso, o que precisamente já teve como consequência aquela
ilegalidade tendencial, que foi realmente praticada contra eles. (11)
O
crescente “racismo para fora” não é a única forma de pensamento racista
– ele cruza-se com um “racismo para dentro” que, à semelhança do
anterior, já se propaga abertamente. O discurso de ódio de Rüttgers contra os
romenos já articulava um “anticiganismo estrutural” na forma pura (a proporção
de Roma na Roménia é superior à média), que em muitos países europeus já
resultou em actos de violência, na forma de pogroms
contra os Sinti e os Roma, situação em que, naturalmente, é interessante
notar que este reflexo reage como impulso inconsciente à “ciganização”
das relações, em que cada um, na crise fundamental mais do que nunca, pode ter
o sentimento de deslizar para o estatuto de “cigano” – pois o
anticiganismo exprime já a necessidade impotente, especialmente em tempos de
crise, de escapar ideologicamente à sua própria precarização, através de
uma demarcação relativamente aos de baixo.
Assim,
este estereótipo serve para mobilizar não apenas o ressentimento no interior
da Europa, mas também um racismo no interior de cada Estado, como explica
Roswitha Scholz em seu texto Homo
Sacer e “Os Ciganos”:
“Nota-se
uma certa generalização do estereótipo do cigano, não só na denúncia dos
beneficiários do Hartz-IV e numa vigilância omnipresente (pretensamente em
defesa face aos terroristas), incluindo dados biométricos e impressões
digitais digitalizadas para uma identificação mais rápida. Potencialmente
qualquer um pode ir parar ao bairro da miséria, como pedinte ou vagabundo, e
ser “o último dos últimos”. Ocorre uma “boemização coerciva”
(Diedrich Dietrichsen), mas com trabalho forçado obrigatório. O “abanão em
toda a Alemanha” (Roman Herzog) significa para muitos exigências reforçadas
de mobilidade, com exposição simultânea ao perigo de desclassificação. O
“fundraising [captação de recursos]”, a nova forma pós-moderna de pedir,
de andar de porta em porta, já há anos que está generalizado por toda a
parte, como modo de angariar recursos.” (12)
Roswitha
Scholz
parece acabar por ter razão em suas análises, infelizmente, e as
declarações de Roland Koch enquadram-se precisamente na denúncia por ela
prevista dos beneficiários do plano Hartz IV: “Uma vez que na Alemanha,
se
for caso disso (!) também haverá trabalho para toda a vida, teriam de
ser
utilizados instrumentos ‘de modo que ninguém veja a vida como uma
variante
agradável de Hartz IV’, disse Koch. Não pode haver nenhum sistema
funcional
de ajuda ao desemprego que não contenha um elemento de intimidação.
‘Caso
contrário, isso seria insuportável para os que têm uma ocupação regular,
se
comparassem o seu rendimento disponível com os valores dos subsídios.’”
(13) A máscara de carácter política internalizou os critérios da
economia
empresarial quase sem problemas; à oferta ideológica deveria
contrapor-se uma
grande procura, como explica Roswitha Scholz: “Hoje de certo modo a
ameaça da
queda atinge todos e cada um, mesmo e justamente dentro da célebre
classe média.
Quase se poderia falar duma ‘ciganização’ das relações sociais, não
fosse a expressão tão banal, e não estivesse o discurso inflacionado de
termos como ‘beirutização’, balcanização etc. Contudo, o termo
‘ciganização’ aponta para uma dimensão teórico-histórica profunda, para
as raízes efectivas do actual estado de coisas no interior da história e
da
sociedade capitalista moderna.” (14) A crítica da classe média, tão
aclamada no discurso político, que Roswitha Scholz liga estreitamente à
sua análise
do “anticiganismo estrutural”, parece mais necessária do que nunca: O
aumento do desemprego (em especial também entre o pessoal docente, o
capital
humano já não utilizável, mas “altamente qualificado”, que parece
particularmente vulnerável a uma ideologia “contra os de baixo”, no
sentido
acima esboçado) (15) potencia a eficácia dos estereótipos
anticiganistas, com
a classe média em queda a executá-los na realidade: A simpática
associação
cívica de Rosarno, responsável pela deportação de trabalhadores
migrantes
africanos, parece ter sido constituída em grande parte por cidadãos
politicamente activos da classe média. Na dialéctica de particularidade e
universalidade do capital, este vira-se cada vez mais de volta ao
domínio
regional, na sequência da crise fundamental, uma vez que, com a
dessubstancialização do valor, também a sua mediação internacional e a
nível
nacional se está tornando cada vez mais obsoleta: se a crise não pode
ser
prevista de forma determinística em suas formas de desenvolvimento, em
todo o
caso Rosarno pode ser não apenas um acontecimento acidental, mas uma
possível
referência futura, em que “comissões de cidadãos” democráticas se
organizam em pequenos grupos cooperativos e regionais, recrutados
principalmente
a partir de uma “classe média politicamente activa”, que transformam em
virtude racista a dificuldade de mediação da produção social em ruptura –
também aqui a teoria crítica tem de reflectir e intervir contra essas
tendências,
no sentido da análise da “totalidade concreta” (Roswitha Scholz). A
situação
na Grécia mostra que este cenário já é actual. Os poucos refugiados
africanos que chegam à Grécia e de seguida conseguem abrir caminho até
Atenas
- se não forem logo internados em campos de detenção nas cidades
costeiras - tentam encontrar alojamento em casas abandonadas para
demolição, pois “quem
não consegue encontrar uma cama dorme na rua num banco de jardim.
Durante o
dia, pois à noite é muito perigoso. As milícias andam à caça (!).” (16)
Mas
é preciso pôr a descoberto as classes médias como cada vez mais apoiantes das
ideologias racistas também a partir de outra perspectiva: pela sua estrutura
intrínseca elas são em grande parte constituídas por grupos profissionais
empregados do Estado, que devem a sua existência ao boom
fordista. Desde o fim deste também é previsível que tais grupos sociais se
tornem supérfluos, sendo que eles, no entanto, dada a sua posição social, já
têm sempre uma afinidade com o Estado democrático de Direito e com os seus
valores, ou seja, pela sua posição no contexto da socialização fetichista, têm
uma afinidade com a ideologia da circulação e com o fetichismo jurídico dela
derivado. Existe o risco, na imediatidade da crise mais do que nunca, de que a
dependência apenas mediada desta camada social relativamente à produção de
mais-valia, leve a um alijamento completo da crítica do “trabalho
abstracto” (na medida em que esta ainda exista, numa vaga memória de O
Capital de Marx), e de que a invocação ideologicamente próxima dos
valores burgueses realize a particularidade destes valores, sempre tornada clara
mas não teoricamente imbuída, sob a forma de um “racismo para fora”. Sem dúvida
que o “racismo para fora” e o racismo anticiganista se condicionam aqui
reciprocamente e se misturam com outros ideologemas: A ascensão do
anti-semitismo deve ser também considerada numa parte significativa devida à
crise das classes médias, que, em seu auto-entendimento como “capital
produtivo”, já estão sempre estruturalmente sensíveis a uma argumentação
contra os “especuladores improdutivos”.
Nas
esquerdas alemãs e europeias, pouco tem sido tematizada até agora esta posição
das classes médias, quase predestinadas à “dialéctica das ideologias” em
rápida expansão devido à sua precária situação social, o que constitui, na
verdade, parte do deficit teórico existente, mas há uma boa razão exactamente
para isso, ou melhor, uma razão muito má. Em grande medida a intelligentsia
da esquerda, e principalmente na sua vertente académica, pertence a esta mesma
classe média.
Uma
análise
crítica da barbárie racista, que agora atingiu definitivamente o
centro da Europa, apresentaria a essa esquerda aquela pretensão de
Adorno, que
ela parece ser mais incapaz de atender do que nunca, mesmo na forma
democraticamente degradada da “ortodoxia adorniana”: “Se a dialéctica
negativa exige a auto-reflexão do pensamento, isso deve significar
palpavelmente que o pensamento, para ser verdadeiro, pelo menos hoje,
tem de
pensar também contra si mesmo.” (17) Para uma esquerda que glorifica a
subjectividade burguesa, e que corre o risco de, com a submissão
masoquista às
categorias capitalistas, ela própria se desfazer irremediavelmente com
elas,
esta frase de Adorno poderá permanecer um autêntico hieróglifo: E parece
que
chegou o tempo em que começam a tornar-se realidade social as imagens de
forças
naturais destruidoras do mundo dominadas por um medo profundamente
projectivo - com a diferença de que, desta vez, não haverá “arcas”
salvadoras disponíveis.
NOTAS
1.
Parece óbvio ao autor que não se trata aqui de questões de diferenças
religiosas, mas de atitudes motivadas pelo ressentimento.
3.
Zeit-online reconhece mesmo a possibilidade de ter havido armas de fogo real.
5.
Se a análise aqui se refere principalmente ao racismo, deve notar-se, no
entanto, que a esquerda já não consegue expressar uma posição coerente
contra a produção desta ideologia (bem como de outras ideologias), o que tem
como consequênca que ela está prestes a jogar as diversas ideologias umas
contra as outras e, portanto, a sucumbir a uma dialéctica fatal. Isto será
discutido com mais detalhe noutro lugar.
7.
Também, segundo Dutschke, com o fundamento de que as sociedades asiáticas não
teriam sido suficientemente penetradas pelo Iluminismo burguês. A argumentação
de Dutschke tem uma certa semelhança com a islamofobia racista de hoje, e a
aleatoriedade do objecto (sejam as hordas asiáticas ou o Islão) já aponta
para o carácter ideológico desta figura argumentativa.
8.
Em concreto, isso surge como segue, no exemplo de um refugiado: “Além do
trabalho de intérprete ele está trabalhando como desinfestador; assim ele
consegue o tempo de trabalho suficiente para a segurança social obrigatória,
para ser autorizado a permanecer. Se perder os empregos, ele tem de deixar o país.”
Http://www.zeit.de/2010/06/DOS-Fluechtlinge?page=1
9.
Karl Marx, MEW 23, Das Kapital – Erster
Band, Berlin, 2008, S.87.
10.
MEW 24, Das Kapital – Zweiter Band,
Berlin, 1973, S.228.
11.
Uma vez que as vítimas da crise fundamental, como, por exemplo, os
trabalhadores migrantes, estão sujeitos essencialmente à lógica descrita da
capacidade jurídica e da capacidade de valorização, que põe em causa a sua
vida, tanto mais necessário se torna contrariar esta barbárie, com a crítica
do falso universalismo da ideologia da circulação.
15.
Ver o artigo do Zeit-online: Desemprego entre académicos sobe fortemente:
http://www.zeit.de/wirtschaft/2010-01/arbeitslosigkeit-akademiker-wirtschaftskrise
17.
Theodor W. Adorno, Negative Dialektik, Frankfurt am Main, 2003, S. 358 [Dialética
Negativa, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2009].
Original
Europäischer
Rassismus oder Die inhumane Kontinuität aufklärungsideologischen Denkens
in
www.exit-online.org.
02.07.2010.