EDITORIAL DA REVISTA EXIT! Nº 6

EDITORIAL DA REVISTA EXIT! Nº 6

(Publicada em Outubro de 2009)



Nos tempos que correm é francamente maçador escrever um editorial, uma vez que os editoriais da EXIT! sempre foram mais que uma curta apresentação dos diversos artigos, nunca deixando de procurar também apreender resumidamente o cenário real de cada situação, a partir do desenvolvimento de superfície. Mas, entretanto, tornou-se um pouco ocioso esboçar os momentos individuais em que agora se exprime, em sua forma de desenvolvimento actual, um processo de crise social que há muito tempo vem sendo repetidamente negado; pois a natureza histórica desta crise tornou-se entretanto evidente. Termos como colapso e “rota de colisão [Crashkurs]”, a previsão do desaparecimento de sectores económicos inteiros, etc., termos e previsões pelos quais a teoria da crise da crítica do valor foi publicamente repreendida como irresponsável e histérica desde a década de noventa, têm saído com a maior das facilidades nos últimos meses da boca dos apresentadores e apresentadoras do espectáculo diário, tal como dos corretores de bolsa, e as correspondentes avaliações já há muito tempo se encontram na imprensa mainstream burguesmente respeitável.
Se Claus Peter Ortlieb, no início do editorial da EXIT! nº. 2 (2005), escrevia "Crise em toda a parte", por maioria de razão isso se aplica hoje. Portanto, não há necessidade de mais pormenores sobre o estado actual da crise. A situação esboça-se rapidamente. Poderia dizer-se: "Nunca houve tanta crise", por analogia com a frase “Nunca houve tanto fim” na abertura de O Colapso da Modernização, de Robert Kurz (Frankfurt 1991), tendo em conta o facto de as previsões aí feitas se tornarem realidade. O fim do socialismo real como convulsão de toda uma época está agora a empalidecer. O capitalismo como sistema mundial, que então se podia realmente fazer valer com tanta pertinência neo-liberal, foi agora ultrapassado pela auto-contradição interna da sua própria dinâmica numa proporção imprevisível para a maior parte dos discursos (até da esquerda). Ainda que não seja para "amanhã de manhã" a entrada em colapso, a certeza presunçosa de uma eterna capacidade de regeneração da valorização do valor, mesmo que sob a forma de “capitalismo de casino”, tem feito triste figura desde o Outono de 2008, com a falência do Lehman Brothers, o subsequente efeito dominó sobre o sistema financeiro global e a nova crise da economia mundial.
Sobre a situação actual será talvez de dizer que ainda é muito reprimida na consciência social. O espaço vazio de uma alternativa socialista e de qualquer reflexão séria a este respeito faz-se sentir, não em último lugar, no facto de os empregados das grandes empresas, perante o colapso para si tornado palpável, reagirem desamparada e tacanhamente, virados para a economia empresarial, com inscrições nas T-Shirts a dizer: Nós somos da Opel, somos da Arcandor, salvai-nos! Alguma vez Merkel imaginava que justamente o seu governo teria de nacionalizar bancos, controlar estatalmente a produção de bens e subsidiá-los numa dimensão crescente, à maneira de Honecker? Há um tenso riso trocista por toda parte, mas nenhuma perspectiva. Os pacotes de salvamento e os programas de estímulo à conjuntura económica não são viáveis a título permanente e apenas modificam o processo de desenvolvimento da crise, cuja nova qualidade já não pode ser dirigida nas formas anteriores da economia das bolhas financeiras. É significativa a questão do ministro das Finanças, Peer Steinbrück: "Como é que vamos fazer a pasta de dentes voltar a entrar no tubo?"
Se a velharia do keynesianismo volta a ter grande procura, isso é em si um sintoma da crise. No limite interno do capitalismo, tais ideias são ainda mais ilusórias do que na fase fordista, a que ainda pertencia também o chamado "socialismo real". Só na aparência está de volta um tempo que acabou definitivamente. A renovada omnipotência imaginária do Estado é economicamente vazia, como se vê não só nos destinos fatídicos da Europa de Leste, como na Letónia, na Hungria etc., mas também nos países da Europa Ocidental que integram a União Europeia e nos E.U.A. As medidas de contenção social na Alemanha, dos prémios de abate de automóveis até ao trabalho a tempo parcial, estão mais sob o signo da campanha eleitoral do que constituem uma medida de intervenção real. Após as eleições federais, é de esperar a passagem para uma administração de emergência endurecida, tudo menos socialmente "sensível”. No fundo qualquer criança sabe isso. Quanto mais a insustentabilidade da situação se torna óbvia, mais brutalmente se preparam os aparelhos estatais, para um protesto que de modo nenhum está à vista. O Estado da segurança e da vigilância (cartões de identidade biométricos, etc.) já se tem vindo a armar nos últimos anos. Neste contexto, também se pode instrumentalizar com esmero a problemática ecológica a favor de uma ideologia de renúncia, promovida pela administração da crise e flanqueada pela esquerda através dum “reducionismo ecológico". Já antes da nova crise económica mundial, as classes mais baixas eram ameaçadas com uma "saudável" alimentação barata à base de repolho, cenoura e macarrão, de acordo com receitas ecológicas – todas cuidadosamente pensadas por cozinheiros profissionais do plano Hartz-IV.
Talvez precisamente por isso, de momento dão mais que pensar a atmosfera social e as reacções ideológicas do que o desenvolvimento da crise económica. Predomina um sentimento de acordo com o mote: todos falam da crise, mas ninguém faz nada. O que está na ordem do dia é o pragmatismo de crise e o business as usual o mais possível “sem agitação”, e não só para os gestores e para a classe política. Paradigmas da tendência são Kannitverstan (Johann Peter Hebel) e O Príncipe Próspero (Edgar Allan Poe – vd. o texto saído em 1995 A Máscara da Morte Vermelha, de Roswitha Scholz, acessível na homepage da EXIT!); o enclausuramento no fedor do próprio quotidiano e dos próprios hábitos deve deixar “ficar de fora” o ameaçador desastre social. E isto com o palpite, ou mesmo com a certeza, de que a "peste" da verdadeira crise acabará por atingir também as classes médias, nas últimas décadas ainda candidatas à ascensão social, sob o signo da economia do crédito e das bolhas financeiras.
A esperança de que o pesadelo possa acabar em breve agarra-se a um discurso de fim de alarme fornecido gota a gota. Pois não estão as cotações de bolsa novamente a subir? E não foram já devolvidos aos pequenos investidores os seus depósitos na falência do banco islandês Kaupthing? Fantasia-se com o “bater no fundo” e os áugures dos institutos económicos, temporariamente discretos, já ousam outra vez prever a luz ao fundo do túnel. Mais provável será que a estação tola de 2009 represente apenas uma pequena pausa. Uma grande crise não se desenvolve linearmente, mas sim aos solavancos. A próxima onda revelar-se-á quando a crise atingir toda a extensão dos mercados de trabalho, quando os programas de estímulo à conjuntura económica se esgotarem e entrar na ordem do dia o salvamento das consequências dos pacotes de salvamento aplicados.
Ao mesmo tempo vê-se que, na verdade, ninguém acredita assim tanto na tão invocada regulação keynesiana. Querer ser apenas o melhor social-democrata não valeu de nada ao Linkspartei [Partido de Esquerda]. O establishment político há muito tempo que adoptou as suas frases “justiceiras” e as suas ideologias de salvação nacional, descobrindo no meio da gestão da crise o pendor do seu próprio coração para o social, o que se coaduna perfeitamente com um darwinismo de exclusão social. Em linguagem simples: só é bom, só merece viver, o que aproveita à comunidade (nacional) imaginada intacta, que deve "emergir mais forte da crise" (Merkel). Uma vez que a crítica e as alternativas são tão ténues e socialmente tão fracas, não há qualquer tentativa de colocar o capitalismo fundamentalmente em causa, enquanto, por outro lado, a agenda de salvamento social-democrata (de esquerda) parece mais que duvidosa. Muito mais atraente é a ideia de que tudo continuará como está, se uma tripulação de “pessoas dinâmicas” conservadoras liberais tomar as rédeas na mão, como se vê actualmente na Alemanha com a estável maioria nas sondagens a favor da CDU/CSU e FDP.
A esquerda, tão surpreendida pela irrupção da crise histórica como as instituições oficiais, oscila entre, por um lado, as vozes que recentemente se fazem ouvir, segundo as quais "de algum modo" é de contar com um fim do capitalismo (mesmo se não se argumenta em termos de crítica do valor, predominando, pelo contrário, uma interpretação anacrónica em termos de "dominação de classe") e, por outro lado, a velha e famosa negação do carácter fundamental da crise. Talvez que a mais forte ontologização do capitalismo até ocorra na esquerda, no que respeita às formas sociais de base. Depois de as ideias revolucionárias tradicionais do passado não terem dado certo e de o capitalismo se ter conseguido arrastar de modo aparentemente interminável, está profundamente arraigada a ideia da sua capacidade de integração, como perpétua auto-renovação “autopoiética”, à moda da teoria dos sistemas.
No entanto, nessa crença tem havido um certo mal-estar. Já nos deslocamentos sociais dos últimos anos a chamada “materialidade” tem exigido uma atenção inexorável e o discurso sobre o fim da cultural turn (pós-moderna) tem feito caminho. “Ler Marx" é considerado outra vez cool entre os mais jovens. E assim emergem de repente categorias como a da “forma” social nas perspectivas da ciência política e da sociologia, em contracorrente com o mainstream da esquerda até hoje; uma dimensão com a qual sobretudo um posicionamento de esquerda consciente do capitalismo até à data nada queria ter a ver. De repente, essa dimensão torna-se fundamental, embora a teoria crítica da dissociação-valor continue a ser repelida, ignorada ou assumida de modo simplesmente eclético (e muitas vezes sem referência expressa).
O termo "crítica do valor" foi identificado na década de noventa sobretudo com um ponto de vista que enfatizava a crítica das categorias de base do trabalho abstracto, da forma do valor e da forma do capital como "sujeito automático" (Marx); em contraste com a crítica do capitalismo truncada, “na ontologia da forma”, tal como a dominação de classe externa e a relação de propriedade jurídica no marxismo tradicional do movimento operário. Perante este pano de fundo, desenvolveu-se já desde a segunda metade da década de oitenta a teoria de um limite interno histórico da valorização do capital. Na medida em que esse limite agora surge realmente à luz do dia, mesmo na superfície da sociedade, a abordagem da crítica do valor não só é retomada e desenvolvida, mas também “diferenciada” em direcções opostas, que já têm a sua própria história recente. Tornam-se assim claros os contornos de um debate inevitável, em que o estatuto e o conteúdo da teoria da crise desempenham um grande papel.
Uma base de comparação é a chamada "Nova Leitura de Marx” que, tendo inscrito nas suas bandeiras uma reconstrução crítica da teoria de Marx, teve origem já no fim da década de sessenta com Hans-Georg Backhaus e Helmut Reichelt, na sequência da recepção da teoria crítica de Adorno, e parecia vir a diminuir até ao início dos anos oitenta, sendo que de há alguns anos a esta parte se vem falando novamente dela. Também os trabalhos de Moishe Postone foram mencionados neste contexto. Esta abordagem viu-se como uma preocupação predominantemente filológica sobre o carácter e as contradições dos textos de Marx; portanto, não ergueu também a pretensão de um novo paradigma, como advoga a teoria crítica da dissociação-valor (por exemplo, no que respeita à filosofia do iluminismo, ao conceito de sujeito, à relação de género, à análise histórica e determinação da posição na história, etc.). Falta especialmente quase por completo o aspecto da teoria da crise, precisamente nos “clássicos” desta posição, mesmo no interior da filologia de Marx. Na linha da rejeição de uma crítica do valor que assumiu no plano fundamental a relação de género na forma da teoria da dissociação e simultaneamente formulou uma teoria radical da crise, a "Nova Leitura de Marx" (NLM), também mesmo em seu desenvolvimento recente, em especial por Michael Heinrich, gosta de ser tratada como alternativa academicamente compatível e muito "mais séria"; os “verdadeiros especialistas" sabem entretanto o que significa exactamente a sigla NLM.
Entre os dois pólos da NLM e da crítica do valor podem hoje distinguir-se tipicamente quatro posições diferentes:
1. A chamada orientação "antialemã" (Grigat, Scheit, Bruhn entre outros), com base numa espécie de "ortodoxia adorniana", que antes se considerava um reduto da "nova crítica do valor", mas desde o início desistiu de uma nova leitura da crítica da economia política e simultaneamente pretendeu afirmar como legado positivo a razão do iluminismo burguês constituída na forma do valor (tal e qual como o marxismo do movimento operário). A teoria radical da crise da crítica do valor é rejeitada no plano categorial da crítica da economia, enquanto ao mesmo tempo se fala precisamente do ameaçador "estado de excepção", cujo condicionamento permanece no escuro. Simultaneamente, perante as consequências bárbaras da crise real, o capitalismo surge como mal menor, qual pseudo "Realpolitik".
2. Uma reformulação da crítica da economia política, a qual não se entende a si mesma explicitamente como crítica do valor no contexto da NLM, mas mantém no entanto uma crítica da forma desenvolvida filologicamente (Wolf, Elbe, Heinrich). Positivamente em contraste com a orientação "antialemã", esta abordagem inclina-se, do ponto de vista epistémico, cada vez mais para um entendimento positivista-popperiano da ciência (em derrogação consciente da posição de Adorno na discussão do positivismo). Aqui se fazem sentir esforços para novamente dar eco de modo reducionista a uma crítica da forma, com a (antiga) perspectiva das classes (ver, por exemplo, Sven Ellmers, A Teoria das Classes Analítica da Forma de Karl Marx, Duisburg 2007, e Ingo Elbe, Marx no Ocidente, Berlim 2008); e ainda tendo como pano de fundo um entendimento de Marx que gostaria de jogar uma contra a outra a estrutura e a história, e de “libertar” parcialmente Marx enquanto “positivista estruturalista” da dialéctica, a qual tinha desempenhado ainda um papel central nos clássicos da NLM. A teoria radical da crise da crítica do valor é fundamentalmente rejeitada por esta tendência, tal como pelos "antialemães", ainda que esta tendência goste de a fazer surgir como referência filológica, apesar da oposição epistémica.
3. Uma crítica do valor surgida da cisão do antigo relacionamento da "Krisis", que ainda invoca em parte a teoria radical da crise, a qual por outro lado já está sendo retirada por determinados protagonistas, sobretudo no círculo da revista de Viena “Strefzüge” (Exner). A fundamentação teórica da crítica da economia política no plano conceptual esbate-se, sendo que também a teoria da dissociação sexual é em parte ignorada, em parte abertamente rejeitada e em parte abastardada de modo androcentricamente universalista, como momento “derivado”. Em vez disso impera uma recaída na orientação para a práxis “reformadora da vida” e de ideologia alternativa, que se enriquece com ideologias da “filosofia da vida” e desagua na anestesia do quotidiano e da afectação [Betroffenheit]. Auto-apologeticamente até se enfatiza em parte a importância de a teoria ser posta à distância; mas a "verdadeira vida", de que em última análise se trata, ocorre mesmo noutro lugar. Em caso de dúvida, prevalece a orientação para o mesquinho quotidiano (masculino).
4. A posição da crítica da dissociação-valor, que faz o contraponto aos discursos “críticos da forma” aqui referidos, enquanto estes preferem evitar uma discussão séria da teoria e dos conteúdos, embora assim de certa maneira reconheçam nela o adversário comum. A teoria de um limite interno histórico do capitalismo é afirmada inquebrantavelmente por esta posição, que também procura fundamentá-la com mais rigor. Simultaneamente, no contexto da teoria da dissociação sexual, trata-se de um entendimento fundamentalmente novo da totalidade social. Relativamente ao modo de proceder, a teoria da dissociação-valor rejeita uma noção positivista de ciência, bem como uma orientação para a razão do iluminismo, reconhecendo-se ligada à crítica da “falsa imediatidade” nos termos de Adorno, contra a regressão “na filosofia da vida”. Neste sentido, não apenas a preocupa uma crítica do conhecimento abstracta, mas, na análise histórico-social concreta, procura ter em consideração os momentos e planos de específicas hierarquias sexuais, disparidades sociais e formações ideológicas, que não são absorvidos no conceito geral da relação de dissociação-valor e ultrapassam a afirmação da forma abstracta (racismo, sexismo, anti-semitismo, anticiganismo). Nas posições da NLM e da crítica do valor regressiva existencialista em termos de filosofia da vida são precisamente estes últimos que permanecem teoricamente na obscuridade.
Uma determinação mais precisa das orientações da NLM e da crítica do valor, ora esboçadas apenas a traços largos, não pode, evidentemente, ser aqui prosseguida; as facetas da diferenciação exigem mais discussão. Quem considera isso uma polémica desnecessária está a subestimar a importância a longo prazo dos processos de clarificação teórica, que não se podem desenvolver sob a forma de um pacifismo do discurso habermasiano. Não se trata de mesquinhas lutas de demarcação "pessoal", mas das questões fundamentais de uma nova crítica do capitalismo.
A análise concreta da crise económica continua em cada um dos seus aspectos a ter definições e tarefas separadas, o mesmo acontecendo com a análise da crise ecológica e dos conflitos sociais. Quem quiser informar-se a este respeito sobre as elaborações e comentários actuais da crítica da dissociação e do valor pode consultar o nosso site (www.exit-online.org). Os textos incluídos nesta edição da EXIT! procuram conseguir determinações teóricas mais elaboradas para a crítica da economia política, a crítica do conhecimento como crítica social, a análise da história e a formação da ideologia.
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No texto sobre a teoria da crise UMA CONTRADIÇÃO DE MATÉRIA E FORMA, Claus Peter Ortlieb aborda o ensaio de Robert Kurz de 1986 A Crise do valor de troca e as críticas contra ele tecidas principalmente por Michael Heinrich. Trata-se, em especial, do que Marx denominou a produção de mais-valia relativa, ou seja, da mais-valia de que o capital consegue apropriar-se adicionalmente com o aumento da produtividade. Para o Marx dos Grundrisse, com a coerção para a redução permanente do tempo de trabalho necessário associada a este aumento da produtividade, abre-se uma "contradição em processo”, capaz de fazer “explodir no ar” o modo de produção baseado no valor. Enquanto Heinrich não consegue reconhecer tal contradição na produção de mais-valia relativa e invoca o Marx de O Capital contra o Marx dos Grundrisse, Ortlieb demonstra – como já Kurz fizera em 1986 de outra forma – que a categoria da mais-valia relativa desenvolvida em O Capital na verdade carrega consigo essa contradição: a partir de um certo grau do desenvolvimento capitalista, para uma massa de mais-valia social total constante, e mais ainda para uma massa crescente, é necessário que a produção material cresça pelo menos tão rapidamente como a produtividade. Mas isso é impossível, dada a finitude a longo prazo da riqueza material, como suporte material imprescindível do valor. Aqui reside a causa mais profunda tanto da crise da valorização do capital como da crise ecológica, sem solução no contexto do modo de produção capitalista.
Roswitha Scholz, no seu artigo FORMA SOCIAL E TOTALIDADE CONCRETA, trata de uma definição da teoria da dissociação-valor na dialéctica da crítica do conhecimento e, mais precisamente, não em termos de “método” abstractamente externo segundo o entendimento corrente da ciência, mas como unidade entre crítica do conhecimento e crítica social. Contra um conceito dedutivo de totalidade da socialização do valor “na lógica da derivação”, como o que em larga medida se via na crítica do valor desde os anos oitenta e até hoje não foi suplantado, recorre-se a uma compreensão da “totalidade concreta”, que desempenha um papel não negligenciável de diferentes maneiras entre os “antepassados" e os clássicos do pensamento da crítica do valor, de Lukács a Adorno e recentemente Postone. A “forma” social revela-se apenas no desenvolvimento do seu conteúdo histórico, e sem este também não poderá constituir qualquer determinação geral. Trata-se de uma "totalidade da empiria", que não é absorvida no conceito abstracto de valor ou de capital. Os planos da análise concreta e da empiria não podem, portanto, ser hierarquicamente subordinados ao conceito, mas tão-pouco podem ser jogados contra este. Assim, também é de criticar um modo de proceder que cai na “falsa imediatidade”; seja ele centrado no quotidiano (Holloway), existencialista na filosofia da vida (Hardt/Negri) ou, pelo contrário, teologicamente universalista (Badiou) ou "politicista" (Haug). Em vez disso trata-se de, perante os limites do capitalismo, redescobrir a dialéctica há muito desaparecida dos discursos da esquerda, no sentido de um "realismo dialéctico".
A história de todas as sociedades até hoje tem sido a história das relações de fetiche. É o que tem postulado até agora a crítica da dissociação-valor, demarcando-se das teorias do antigo marxismo, sem documentar isso detalhadamente também para a pré-modernidade. No ensaio de Carsten Weber ENTRE O MARTELO EA BIGORNA discute-se, primeiramente na forma de teses, na base de que fundamentos materiais e da história das ideias surgiu na Europa cristã uma matriz a priori independentizada, na forma de uma estrutura de dominação de desigualdade hierárquica, que se tornou instância normativa imperativa para todas as pessoas submetidas ao cristianismo. Aqui se revela que essa matriz, pelo menos em partes substanciais e em novas amálgamas, prosseguiu na modernidade até bem dentro do século XX, de tal modo que as pessoas foram expostas a uma grave opressão, historicamente sem precedentes, entre duas relações de fetiche, uma velha modulada e outra nova desenvolvendo-se com dinâmica acelerada, ficando, por assim dizer, entre o martelo e a bigorna. Na parte histórico-empírica do ensaio apresenta-se então as formas de aparência que assumiu a ordem de dominação pré-moderna. Através da descrição da ordem da desigualdade hierárquica no governo da casa torna-se claro que tanto o relacionamento conjugal entre marido e mulher como a relação entre pais e filhos, e até mesmo a relação impregnada de dominação entre o dono da casa e os servos, sobreviveram a séculos e vigoraram até um passado recente. A característica primordial de todas essas relações era a exigência de obediência absoluta, baseada na ideia de que o próprio Deus estabeleceu toda a dominação: a do homem sobre a mulher, a do pai sobre os filhos e a do dono da casa sobre os servos. A desobediência contra os titulares deste poder seria consequentemente identificada com a desobediência a Deus. Isso também valia para as relações de poder entre os proprietários nobres e os camponeses servos, ou entre senhores da terra e súbditos. O artigo conclui com uma análise dos movimentos históricos de emancipação contra essas relações de dominação cunhadas na pré-modernidade. Aqui se mostra que, à semelhança das lutas do movimento operário nos séculos XIX e XX, não foi reconhecido e consequentemente não foi atacado o núcleo fetichista essencial de desigualdade hierárquica da ordem dominante.
Em sua análise crítica da ideologia OS ASSASSINOS DE CRIANÇAS DE GAZA, Robert Kurz debate-se com os padrões de percepção da esquerda no conflito no Médio Oriente. Depois de nos últimos anos, da parte da crítica da dissociação-valor, terem sido fundamentalmente criticadas as guerras capitalistas de ordenamento mundial e a sua afirmação através da ideologia “antialemã”, é mais que tempo de tomar como alvo o reverso desta interpretação, cujos portadores também estão positivamente com a socialização global do valor e seus produtos decadentes. Estas interpretações da situação mundial estão impregnadas por um “anti-israelismo” afectivo, também alimentado por um “ódio inconsciente aos judeus" (Micha Brumlik), sendo o Estado judaico e a sua acção militar por conta própria contra o Hamas e o Hezbollah unilateralmente subsumidos ao capital mundial e ao seu imperialismo securitário. A barbárie islâmica contra Israel já não surge correspondentemente como a outra face da mesma medalha do imperialismo de crise, mas como "resistência", de uma forma quase romântica. Neste contexto, empalidece a base de comparação do velho "anti-imperialismo" e o conflito no Médio Oriente transforma-se em conflito por procuração, ao serviço de uma "crítica do capitalismo" de nova pequena-burguesia, que processa regressivamente a crise mundial do capitalismo.
A concluir este número da revista, a recensão de Gerd Bedszent MALTHUS VERDE do best-seller publicado pela Spiegel Colapso. Porque sobrevivem ou morrem as sociedades, de Jared Diamond, e ainda a divagação de Udo Winkel através das publicações sobre os temas NACIONAL-SOCIALISMO E GUERRA DE ANIQUILAÇÃO e OS DISCURSOS DE MARX NA CRISE.
De registar ainda duas novas publicações. Na editora Eichborn-Verlag saiu uma nova edição do Schwarzbuch Kapitalismus [O capitalismo de livro negro], de Robert Kurz, acrescida de um texto introdutório adicional, que trata exaustivamente o desenvolvimento havido desde a primeira edição (1999), para classificar a nova dimensão histórica da crise como continuação da quebra de época havida em 1989. Pela editora Unrast-Verlag foi publicada a colectânea Situações de anticiganismo. Para a crítica de um ressentimento omnipresente (ed. Markus End, Kathrin Herold, Yvonne Robel), contendo numerosas contribuições de diferentes perspectivas sobre o conceito, a história e as actuais manifestações de anticiganismo, incluindo o texto de Roswitha Scholz Antiziganismo e estado de excepção. Os ‘ciganos’ na sociedade do trabalho.
Roswitha Scholz pela redacção da EXIT!
Agosto de 2009

ÍNDICE
Editorial
Robert Kurz (Janeiro de 2009)
Carta Aberta às interessadas e interessados na EXIT!

Claus Peter Ortlieb
UMA CONTRADIÇÃO DE MATÉRIA E FORMA
Sobre a importância da produção de mais-valia relativa para a dinâmica da crise final
A última crise do capital? Uma controvérsia * Produtividade, valor e riqueza material * A produção de mais-valia relativa * A tendência para o desenvolvimento da mais-valia relativa * A coerção do crescimento, a expansão histórica do capital e os limites materiais * A coerção do crescimento e a destruição do ambiente * Conclusão
Roswitha Scholz
FORMA SOCIAL E TOTALIDADE CONCRETA
Sobre a urgência de um realismo dialéctico hoje
Totalidade concreta em Georg Lukács * Totalidade concreta em Theodor W. Adorno * Totalidade concreta em Moishe Postone * Totalidade concreta e crítica da dissociação-valor * Crítica do fetiche e da reificação como falsa imediatidade em John Holloway * Imediatidade antidialéctica em Hardt/Negri e em Badiou * O falso retorno da dialéctica após o seu suposto fim * Conclusão: alegações finais por um realismo dialéctico, hoje, para lá dos esquematismos tradicionais
 
Carsten Weber
ENTRE O MARTELO E A BIGORNA
As relações fetichistas de dominação da cultura europeia cristã como contexto complementar de sofrimento e cegueira
Sobre a origem da relação de fetiche pré-moderna * Desigualdade hierárquica na família * Excurso I: A exigência e a educação para a obediência incondicional como garantia da perpetuação das relações de dominação social * Desigualdade hierárquica corporativa no contexto da vida rural da dominação feudal * Transformações * Excurso II: Lutas camponesas de emancipação na pré-modernidade * Resumo
 
Robert Kurz
OS ASSASSINOS DE CRIANÇAS DE GAZA
Uma operação “chumbo derretido” para corações sensíveis
Assimetria moral e análise histórica * A violência afectiva do inconsciente colectivo antijudaico * O carácter dual do Estado de Israel * As identificações positiva e negativa de Israel com o mundo do capital * As exigências impossíveis de um paradoxo real * A razão de Estado de Israel nas guerras contra o Hamas e o Hezbollah * A opinião pública mundial anti-israelita e a decomposição ideológica da esquerda * Uma "terceira posição" que não é posição nenhuma * Crime e castigo ou crítica radical historicamente mediada? * Um coração para o regime da Sharia * O determinismo da consciência e papel dos heróis * O conflito por procuração e a desmoralização da crítica do capitalismo * Anti-israelismo - a matriz de um novo anti-semitismo * A esquerda como Dr. Jekyll e Mr. Hyde
 
Gerd Bedszent
MALTHUS VERDE
 
Udo Winkel
NACIONAL-SOCIALISMO E GUERRA DE ANIQUILAÇÃO
Um olhar pelas publicações
 
Udo Winkel
OS DISCURSOS DE MARX NA CRISE
Uma pequena divagação
 
Original EXIT! Heft 6 - Inhaltsverzeichnis und Editorial in www.exit-online.org.

http://obeco.planetaclix.pt/