Moishe Postone


O Trabalho e a Lógica da Abstracção [*]

Moishe Postone
(entrevistado por Timothy Brennan)

Desde a sua publicação em 1993, [o livro] Tempo, Trabalho e Dominação Social de Moishe Postone tem recebido um grande número de apreciações elogiosas de várias áreas das ciências sociais críticas. Ele defende que a “dominação social” mencionada no título é gerada pelo próprio trabalho e não apenas pelos mecanismos do mercado e pela propriedade privada. De um modo semelhante ao Grupo Krisis, na Alemanha (e à obra de Robert Kurz e Norbert Trenkle), o trabalho industrial é visto como a barreira para a emancipação humana e não como a chave para a sua concretização. Neste sentido, embora identifique uma convergência entre os objectivos do capitalismo e aqueles dos antigos socialismos estatais, Postone não se limita a rejeitar os sistemas anteriores. Um dos aspectos mais estimulantes do seu livro é a tentativa de formular uma nova teoria social crítica. Foi nesse espírito que a seguinte entrevista foi conduzida em 16 de Maio de 2008.         


Timothy Brennan: Muitos de nós consideram o seu livro Tempo, Trabalho e Dominação Social uma das releituras mais originais da teoria da maturidade de Marx nas últimas décadas. Como é que surgiu a sua escrita?

Moishe Postone: Obrigado. Na verdade, foi um processo muito longo que começou quando estava a fazer os meus estudos pós-graduados, nos anos 60. No início, o Marxismo possuía uma espécie de apelo romântico para mim – a figura de Trotsky, por exemplo, e de outros revolucionários. Mas, em termos teóricos, parecia-me antiquado, cru e positivista. Era muito mais atraído pelos críticos da modernidade, como Nietzsche e Dostoevsky, que realmente me diziam algo, embora tendessem a ser conservadores. Assim, estava a tentar combinar uma política de esquerda com este género de críticas que me pareciam mais fundamentais do que o Marxismo.       


TB: Ah, claro. O diálogo entre Nietzsche e Marx ainda continua, não é verdade? Você diz que isto já constituía um tema no seu círculo de estudos informais nos anos 60, quando ainda estava na universidade…

MP: Sim, enquanto estudante pós-graduado [graduate student] na Universidade de Chicago.


TB: Como é que surgiu então esta mudança no seu pensamento acerca de um suposto Marx Vitoriano tardio?

MP: Após os protestos [sit-ins] na Universidade, no final dos anos 60, formámos um grupo de estudo chamado “Hegel e Marx”. Lemos, entre outras coisas, partes de História e Consciência de Classe que apenas estavam disponíveis em fotocópias (o livro ainda não tinha sido publicado em inglês). E a leitura de Lukács foi uma revelação. Ele pegava em temas críticos da modernidade que haviam sido articulados por Nietzsche, Simmel e Weber e transformava-os ao incorporá-los numa crítica do capitalismo. Isto, para mim, abriu a possibilidade de uma crítica do capitalismo muito mais poderosa do que as críticas conservadoras da modernidade ou o reducionismo operário [working-class] com os quais estava familiarizado. Pouco tempo depois, descobri outro texto chave para mim – os Grundrisse – através do artigo de Martin Nicolaus “The Unknown Marx”, publicado na New Left Review.   


TB: Mas você acabaria por obter o seu Doutoramento na Alemanha. Foi uma questão de aperfeiçoar o seu alemão ou pretendia entrar em contacto directo com um ambiente onde a discussão decorria a um nível intelectual mais elevado?  

MP: Foi claramente a segunda hipótese. Um dos meus orientadores, Gerhard Meyer, aconselhou-me a ir para Alemanha de modo a contactar com uma atmosfera intelectual e política mais propícia a um trabalho sério sobre Marx. 


TB: Os Grundrisse eram de facto bastante populares nos anos 70. Um conjunto de pensadores utilizou o livro como um meio para contrariar [confounding] interpretações anteriores de Marx. Mesmo hoje em dia nota-se que essa estratégia está a regressar na nova filosofia política italiana de Negri e Virno, por exemplo, que se baseiam amplamente na leitura de uma única passagem sobre as máquinas, quase no final dos Grundrisse, para defenderem aquilo a que chamam “Intelecto Geral” [General Intellect] (um termo utilizado de passagem por Marx nessa secção). Há alguma razão válida para suspeitar que os Grundrisse – que são fundamentalmente um conjunto de notas com vista a estabelecer uma base para a crítica das categorias da economia política – são tão populares porque são infinitamente maleáveis?       

MP: Na verdade, não creio que os Grundrisse sejam infinitamente maleáveis. Penso que podemos dizer que nesse manuscrito Marx abre o seu jogo [shows his hand]. No decurso da escrita dos Grundrisse, Marx chega à conclusão de que uma teoria crítica adequada tem de ser completamente imanente ao seu objecto. A crítica não pode ser realizada de um ponto de vista externo ao objecto mas deve emergir do próprio modo de exposição imanente. O Capital é portanto estruturado deste modo imanente. Todavia, em virtude precisamente desta natureza rigorosamente estruturada e imanente do modo de exposição de Marx, o objecto da sua crítica (por exemplo, o valor, assim como o trabalho que o constitui, analisados enquanto formas historicamente específicas) tem sido frequentemente entendido como o ponto de vista dessa crítica.

As secções metodológicas dos Grundrisse clarificam este modo de exposição, assim como outras secções – tais como as passagens sobre as máquinas que você referiu – tornam explícito que as categorias de O Capital, como o valor, são historicamente específicas, que a chamada teoria do valor-trabalho [labor theory of value] [NT1] não é uma teoria do trabalho criador de riqueza (transhistórica) [labor theory of (transhistorical) wealth]. Em virtude de não estarem estruturados de um modo tão imanente, os Grundrisse dão-nos uma chave para a leitura de O Capital. Ao mesmo tempo, existem diferenças entre os Grundrisse e O Capital. Os Marxólogos que salientam essas diferenças estão certos e, simultaneamente, errados. Estão certos no sentido em que, por exemplo, as ramificações completas da categoria de mais-valia não são totalmente desenvolvidas nos Grundrisse. Não obstante, centrar-se nessas diferenças pode frequentemente ofuscar um ponto essencial – que Marx torna clara a natureza geral da sua crítica do capitalismo nos Grundrisse. O núcleo fundamental da sua crítica, que é diferente daquele do Marxismo tradicional, é mantido em O Capital.

Em segundo lugar, a minha preocupação principal não se prende com aquilo que Marx possa ou não ter querido dizer. Também não me foco no desenvolvimento das tensões internas que possam ou não existir em O Capital. Os meus Erkenntnisinteresse (interesses intelectuais), o meu interesse, é ajudar a reformular uma teoria crítica do capitalismo poderosa. Nesse sentido, estou a tentar tornar a crítica da economia política tão internamente coerente quanto possível – por razões teóricas, certamente não por razões hagiográficas.  


TB: O clima teórico dos nossos dias, como sabemos, ainda é dominado por este ou aquele pós-estruturalismo Francês, que mesmo agora (subsistindo como uma crítica Deleuziana das modalidades, com o aparecimento das palestras não publicadas de Foucault no Collège de France, com a ressurgência de uma espécie de Lacan Hegeliano na obra de Zizek, com a viragem Heideggeriana em estudos subalternos, e outros tantos exemplos) ainda é o ponto de partida para grande parte da Esquerda cultural. Imagino que alguns leitores vão encarar esta discussão como um olhar retrógrado para os anos 70, mas aquilo que estou a procurar lembrar às pessoas é que as modas teóricas do momento surgem precisamente da mesma constelação que você vivenciou, sendo marcadas por muitas dessas mesmas obras e acontecimentos. Pode dizer algumas palavras acerca do como e porquê você continuar a guiar-se pela Escola de Frankfurt e pela Teoria Crítica – começando, aliás, antes da Teoria Crítica com Lukács e desenvolvendo o seu percurso até aos autores mais recentes, como Jürgen Habermas? Trata-se de um exercício algo estimulante no contexto actual e certamente contra a corrente [dominante].                  

MP: Posso dar-lhe razões teóricas, assim como contingentes. Uma razão contingente – e isto refere-se àquilo que você sugeriu acerca da importância do contexto imediato – é que eu estive em Frankfurt durante quase toda a década de 1970 e início da década de 1980. Por um lado, o maior impacto [reception] do pós-estruturalismo nos EUA ocorreu quando eu estava na Alemanha. Por outro lado, a influência do pós-estruturalismo na Alemanha foi bastante mais fraca, algo que teve a ver com a enorme familiaridade com a Escola de Frankfurt e com Lukács. Para além disso, se não estou enganado, na medida em que o meio académico Americano esteve aberto a [outras] influências teóricas nos anos 70 e 80, isso aconteceu principalmente nas humanidades e não nas ciências sociais.        


TB: Sim, principalmente nos departamentos de literatura.

MP: Trata-se, creio eu, de um desenvolvimento duplo [double-edged]. Por um lado, penso que é positivo e importante que tenha havido uma abertura em relação a outras teorias. Por outro lado, penso que uma abertura a outras teorias nos departamentos de literatura é distorcida [skewed] em termos do seu entendimento da sociedade. Detesto dizer isto, mas essa é realmente a minha opinião.   


TB: Foi mais fácil para si imergir na Escola de Frankfurt tendo estudado num país que nunca levou o pós-estruturalismo tão a sério como sucedeu nos Estados Unidos? Está a dizer que muito do que algumas pessoas pensaram ser novo nas críticas do pós-estruturalismo já tinha, com efeito, sido realizado muito antes, de outra maneira e noutra linguagem, por parte da Escola de Frankfurt?  

MP: [Sim e] creio que de um modo mais efectivo, muito mais efectivo. Eu fui atraído pela Escola de Frankfurt e por Lukács antes de ir para a Alemanha e de integrar círculos que partilhavam as minhas atitudes críticas tanto em relação às análises de classe reducionistas como ao estruturalismo (por exemplo, Althusser). O pós-estruturalismo é na realidade um prolongamento [crítico] do estruturalismo [a post- of structuralism], assim como, mais implicitamente, do reducionismo de classe. Não tendo sido atraído por aquilo contra o qual o pós-estruturalismo reagia, este último acabou também por não suscitar o meu interesse. Uma característica de toda esta orientação teórica – o estruturalismo e o seu “pós” – é que escamoteia quaisquer considerações político-económicas sérias. Sempre considerei que uma teoria social crítica adequada tem de ser capaz de apreender a dimensão (se lhe quisermos chamar dimensão) político-económica da vida. Quando descobri Lukács e os Grundrisse, aquilo que eu achei tão poderoso – mais poderoso do que os conservadores que me tinham aliciado com as suas críticas da modernidade – foi o facto de eles abrirem o caminho para um género de teoria social crítica fundamental que era muito mais histórica e, ao mesmo tempo, cultural e político-económica.                


TB: Na explicação que acabou de dar para a sua atracção pela Escola de Frankfurt, contudo, você não mencionou o facto de a sua alma mater (Universidade Johann Wolfgang Goethe, em Frankfurt), para todos os efeitos práticos, ter relegado a primeira geração de pensadores [da Escola] de Frankfurt para a memória [dusty bookshelves] de um passado venerável. Porque é que isso aconteceu? E como é que explica o papel de Habermas neste panorama teórico (para além da explicação em torno da sua ambição em ser visto como o filósofo da República Federal Alemã)?   

MP: Em primeiro lugar, isso não foi bem assim. Existiam vários académicos menos conhecidos internacionalmente – como Jürgen Ritsert, por exemplo – que continuaram a trabalhar no contexto do quadro teórico estabelecido pelos “Teóricos Críticos de primeira geração”. Não obstante, é um facto que Habermas se tornou predominante. Diria que isto aconteceu não apenas em virtude do seu sucesso em termos de política académica, mas também porque o quadro de análise [framework] da antiga Teoria Crítica tinha alcançado os seus limites históricos. Embora eu concorde com Habermas neste aspecto, discordo completamente tanto da sua análise da natureza desse limite como do caminho que ele escolheu com vista a revigorar a Teoria Crítica.        

TB: Gostaria agora de enquadrar a sua recuperação do Marx tardio (e a sua ênfase na produção, estatísticas de comércio, taxas de lucro, e assim por diante) no seu investimento teórico naquilo que apenas poderá ser chamado de metafísica – isto é, na filosofia especulativa. Devemos encarar Tempo, Trabalho e Dominação Social como uma obra de filosofia – em linha, digamos (embora, obviamente, não no que toca ao âmbito [scope]), com a Fenomenologia do Espírito e a Filosofia do Direito de Hegel, que abordam principalmente questões económicas ligadas ao trabalho, desigualdade, sociedade civil e relações de propriedade burguesas, embora nunca deixando o terreno das abstracções necessárias do pensamento especulativo enquanto tal?

MP: Os filósofos ficariam provavelmente chocados com essa insinuação, mas gostaria de mudar os termos da questão. Uma das coisas que mais valorizo em Lukács, apesar de discordar dele em vários aspectos, é o facto de ele ter apropriado e analisado questões filosóficas com referência a uma teoria das formas sociais capitalistas que as tornava plausíveis, histórica e culturalmente. Isto abriu a possibilidade de encarar a filosofia nem idealisticamente – como o resultado de um acto misterioso mediante o qual as grandes mentes se elevam acima das efemérides do seu próprio tempo e espaço – nem, contudo, em termos materiais redutores. Ele historicizou-a [a filosofia, NM] e fê-lo de um modo analiticamente rigoroso. Ele transformou o terreno do pensamento especulativo, removendo a aparência da sua independência relativamente ao contexto. Quanto mais leio Marx, mais eu penso que isto foi precisamente o que ele conseguiu alcançar. Não tenho a certeza se teria conseguido ler Marx desta maneira sem [a ajuda de] Lukács; contudo, não creio que a análise de Lukács seja igual à de Marx. Prefiro a de Marx.          

A outra questão que gostaria de salientar tem a ver com a noção de que a crítica do capitalismo é económica. Da mesma maneira que Lukács reformulou as questões filosóficas como desvios [displacements], como formas de pensamento que se debatem [grapple] com uma realidade que não conseguem apreender [grasp] completamente, também Marx reformulou os postulados da economia política como expressões de formas superficiais de uma realidade que não conseguem apreender completamente. Seria um erro encarar esta abordagem como defensora da primazia do económico, assim como uma afirmação da filosofia especulativa. Pelo contrário, trata-se de uma teoria de uma mediação social historicamente específica (que poderei apenas mencionar de passagem sem elaborar) que possibilita uma análise do pensamento económico e filosófico enquanto expressões de uma realidade material que não conseguem apreender na sua plenitude.     


TB: Um dos aspectos que se destaca no seu projecto é o respeito que revela por História e Consciência de Classe, de Lukács. Você demonstra, entre outras coisas, o quanto Adorno, Horkheimer e o resto da Escola Frankfurt devem a Lukács e a medida em que o livro Ser e Tempo, de Heidegger, constituiu uma tentativa de responder a essa obra.     

MP: Quando li História e Consciência de Classe pela primeira vez, fiquei apreensivo em relação ao que me parecia ser uma espécie de ruptura entre as duas primeiras secções do ensaio sobre a reificação e a terceira [secção]. Na primeira secção, Lukács incorpora [embeds], na forma mercadoria, a crítica da modernidade de Weber em termos dos processos de racionalização. Portanto, ele fundamenta [grounds] a racionalização historicamente. Muito antes de Foucault ter desenvolvido a ideia de uma sociedade disciplinar, Lukács já o havia feito no essencial e tinha igualmente fundamentado o desenvolvimento dessas formas historicamente. Na segunda parte do ensaio, Lukács efectua uma análise brilhante da trajectória do pensamento filosófico Ocidental, de Descartes a Hegel, inserindo-o no quadro de uma teoria das formas do capital. Penso que estas duas secções são soberbas. Pareceu-me, contudo, que o foco de Lukács no proletariado na última parte do ensaio contrariava [went against the grain] o entendimento muito mais alargado do capitalismo delineado nas duas primeiras partes. Não me parecia claro como, no âmbito do quadro desenvolvido por Lukács na terceira parte, a revolução proletária seria capaz de transformar os processos de racionalização que ele tinha exposto anteriormente.   

Muitas das pessoas que criticaram o “mito do proletariado” de Lukács acabaram por deitar fora o bebé com a água do banho. Puseram de parte toda a análise da forma mercadoria, redescoberta por Lukács, por causa daquilo que encararam como o mito do proletariado. Já tentei – e levei algum tempo para chegar às minhas próprias conclusões – separar aquilo que considero ser o núcleo fundamental da análise de Lukács das categorias Marxianas, enquanto formas que são simultaneamente culturais e sociais, das maneiras muito específicas como ele entendia essas categorias. Levei bastante tempo a trabalhar essas ideias. Quanto mais trabalhava na crítica de Lukács, mais eu me apercebia (às vezes pode-se ler a mesma coisa muitas vezes, mas apenas após um certo ponto conseguimos atingir aquilo a que os Alemães chamam de momento “aha”; mesmo tratando-se de algo que era familiar, quase que “desfamiliarizamos” o familiar) que, ao passo que eu sempre tinha tomado as categorias da crítica de Marx como sendo categorias de praxis, segundo Lukács a praxis é como que uma realidade subterrânea coberta por um véu [veneer] [NT2], que é constituído pelas categorias. Elas não são categorias de praxis para Lukács mas categorias que dissimulam [veil] e inibem a praxis. A revolução para ele, tal como a crise, é a erupção deste “nível mais profundo” de praxis através do véu da abstracção que o cobre. Trata-se da erupção de um nível ontológico da vida, constituído pelo trabalho. Não creio que esta seja uma maneira correcta de ler Marx.        


TB: Eu interpretei sempre esta intrusão calculada do “proletariado” no ensaio de um modo diferente. Lukács não está a tanto debater-se com o estereótipo [received idea] do proletariado enquanto praxis – o motor e o agente da história (como poderá parecer à primeira vista) – mas a dizer que as revoluções na periferia global, nos anos 20 e nos anos imediatamente anteriores (União Soviética, China, México), alteraram a natureza da investigação filosófica. Elas colocaram à disposição da filosofia um tipo de agente [actor] cuja existência tornava possível ao intelectual superar um impasse teórico [mental] anterior. Por outras palavras, apenas o teórico que se identifica com aqueles que rejeitam o sistema industrial e os valores corporativos pode ultrapassar as antinomias esgotadas [tired] do pensamento burguês herdadas de Kant.     

MP: Sim, pode-se argumentar que essa é a posição de Lukács. Uma visão [insight] importante que eu retirei dos Grundrisse, contudo, é que a crítica do capitalismo de Marx aponta verdadeiramente para a abolição do proletariado – não no sentido legalista, Soviético de que se não existir uma burguesia, eo ipso não existe um proletariado – mas no sentido da abolição material do trabalho que o proletariado executa. E parece-me que não há nada na terceira parte do ensaio de Lukács que aponte nessa direcção. O movimento aí presente é o do proletariado enquanto objecto para o proletariado enquanto sujeito. Em última instância implica a afirmação do proletariado; não aponta para a abolição do proletariado e do trabalho que ele executa.  

A condição para a abolição da sociedade de classes – que eu entendo no sentido muito geral de uma sociedade na qual a maioria [dos indivíduos] cria constantemente um excedente que é apropriado por uma minoria (e que, neste sentido geral, tem caracterizado a maior parte das sociedades humanas desde a chamada revolução neolítica) – é a abolição da necessidade do trabalho directo executado pela maioria enquanto condição para a produção de um excedente. Esta possibilidade, de acordo com Marx nos Grundrisse, é gerada pelo próprio capital.  

Você mencionou a dívida da Teoria Crítica para com Lukács. Diria que a trajectória da primeira ilumina retrospectivamente algumas das limitações dele. Os Teóricos Críticos adoptaram a crítica da racionalização e da burocratização de Lukács baseada num entendimento simultaneamente social/económico e cultural do capitalismo. Durante as décadas de 1930 e 1940, contudo, eles tornaram-se críticos das afirmações do trabalho e da totalidade por parte de Lukács. Não obstante, a Teoria Crítica não recuperou a carácter dual [double-sidedness] da estrutura categorial [categorial framework] mas, ao invés, acabou por inverter a posição afirmativa de Lukács de um modo igualmente unilateral.    

Pollock e Horkheimer, por exemplo, chegaram à conclusão de que tinha emergido uma nova forma estatista de capitalismo, na qual a velha contradição capitalista entre trabalho e mercado/propriedade privada tinha sido superada. Para eles, isto significava que a totalidade e o trabalho tinham sido realizados historicamente. O resultado, contudo, não tinha sido emancipatório. Em vez disso, emergiu uma nova forma de dominação tecnocrática associada à razão instrumental. Eles associavam agora o trabalho à acção instrumental.   

A viragem pessimista de Horkheimer encontrou paralelo no entendimento de Adorno acerca das categorias de Marx. Seguindo Lukács e Alfred Sohn-Rethel, Adorno apropriou essas categorias como categorias de subjectividade e também de objectividade. Na análise de Marx, essas categorias possuem um carácter dual. A leitura dessas categorias por parte de Adorno sustentava [underpinned] as suas análises bastante acutilantes e por vezes brilhantes. Todavia, a sua leitura enfatizava a dimensão do valor de uma maneira unilateral. O resultado, apesar do seu poder [analítico], era uma análise incapaz [ill equipped] de lidar com a reemergência da oposição política radical e que, num outro nível, já não era suficientemente reflexiva.     

A minha ênfase no carácter dual da análise de Marx é uma tentativa de superar os impasses da Teoria Crítica, evitando aquelas que considero ser as fraquezas da resposta teórica de Habermas. Ao mesmo tempo, eu destaco as obras de Lukács e da Escola de Frankfurt porque considero que o caminho que eles inauguraram – uma teoria crítica reflexiva que apreende a sociedade e a cultura com as mesmas categorias – é muito mais poderoso e promissor do que aquele do estruturalismo e pós-estruturalismo.


TB: O seu método parece progredir [move on], tal como o de Lukács (e o do livro crucial de Alfred Sohn-Rethel sobe o trabalho intelectual), de uma análise da forma mercadoria para as estruturas universais [pervasive] que derivam [emanate] da forma mercadoria a um nível macrológico. Por conseguinte, o carácter dual da mercadoria, que é simultaneamente um valor de uso (uma qualidade) e um valor de troca (uma quantidade), confere à própria existência social um carácter dual – na verdade, um carácter contraditório. A minha questão é como é que somos capazes de demonstrar, então, que o carácter singular [unique] da mercadoria sob o capitalismo possui este poder penetrante? Como é que podemos evitar cair numa espécie de metafórica?        

Ainda bem que faz essa pergunta. Permita-me responder regressando, por momentos, a Lukács. Uma das minhas críticas à terceira parte do ensaio sobre a reificação de Lukács é que a dialéctica da consciência do proletariado tem pouco a ver com a dialéctica histórica contínua [ongoing] do capital. Pelo contrário, este processo [em Lukács] corresponde a uma auto-consciência [self-awareness] crescente da sua condição por parte do proletariado. Lukács apresenta-o como um processo mediante o qual o proletariado se reconhece a si mesmo como objecto, e na medida em que o faz, está em vias de se tornar sujeito. A condição do proletariado, contudo, é uma condição prévia estática; o desenvolvimento do capital da subsunção formal para a subsunção real [do trabalho] e o desenvolvimento desta última tem pouco a ver com o processo que Lukács descreve. Segundo a minha interpretação de O Capital, a começar pela sua grande ênfase na mercadoria como forma geral do capital, é aí elucidado um desenvolvimento que não pode simplesmente ser designado por económico, mas é realmente o desenvolvimento da forma mercadoria à medida que se desdobra [as it moves]. Esta dinâmica da forma mercadoria é aquilo que Marx designa por capital. O carácter dual da mercadoria fundamenta [grounds] esse movimento. O significado da análise da forma mercadoria de Marx enquanto possuidora de um carácter dual torna-se mais claro, portanto, uma vez entendido como a base para a análise da dinâmica histórica singular que caracteriza o capitalismo. Isto é bastante diferente de uma análise que permanece limitada à oposição entre valor e valor de uso presente no primeiro capítulo de O Capital.              

Marx alicerça [grounds] a forma de produção capitalista, assim como a sua trajectória e crescimento, na sua análise da natureza dinâmica do capital. Eu procurei desenvolver o carácter geral dessa dinâmica como uma dialéctica de transformação e reconstituição [treadmill dialectic]. É esta dialéctica de transformação e reconstituição que gera a possibilidade histórica de abolição do trabalho proletário. Ela torna esse trabalho anacrónico enquanto, ao mesmo tempo, reafirma a sua necessidade [NT3]. Esta dialéctica histórica gera processos de transformação contínua, assim como a reprodução permanente das condições subjacentes à totalidade. À medida que o capital se desenvolve, contudo, a necessidade imposta pelas formas subjacentes a esta dialéctica assume-se cada vez mais como uma necessidade apenas para capital; torna-se cada vez menos uma necessidade para a vida humana. Por outras palavras, o capital e a vida humana separam-se historicamente. Não creio que esta dimensão histórica esteja presente em Lukács. Estou a mencionar isto em resposta à sua pergunta porque me parece que é precisamente no que toca à questão da dinâmica histórica da sociedade contemporânea que uma análise do capitalismo baseada nas categorias da mercadoria e do capital revela o seu poder. No meu ver, é esta dimensão analítica que transporta a teoria para além da metafórica. Se não dermos atenção à questão da dinâmica histórica do capital – que em última instância subjaz às mudanças nas configurações do estado e da sociedade civil no mundo moderno –, estaremos a ignorar aquilo que considero ser essencial na análise de Marx e mais vulneráveis à acusação de que apenas revelámos algumas homologias interessantes.                 


TB: Esse é precisamente o busílis da questão. Há uma coisa na sua explicação que me chamou a atenção. Você salientou que quando Marx utiliza o termo “capital” em O Capital, ele está-se a referir ao “movimento da forma mercadoria através da sociedade”. Esta parece-me ser uma afirmação muito forte [very large claim] e que se adequa na perfeição à abstracção que você parece querer imprimir ao seu argumento – a generalização da forma. Portanto, deixe-me perguntar-lhe: seria incorrecto, neste sentido, do seu ponto de vista, definir o termo capital de um modo convencional como “valor acumulado enquanto dinheiro e utilizado para fins de investimento em vez de uso”?       

MP: Sim, essa definição não é suficientemente abrangente. Diria que a concepção de capital de Marx vai mais além. Embora se possa encarar o capital como o dinheiro investido e reinvestido de modo contínuo, isso não capta suficientemente o papel dessa categoria na crítica da economia política. Em primeiro lugar, é importante notar que quando Marx trata o dinheiro e a acumulação, ele fá-lo no contexto [framework] da teoria do valor. Afinal de contas, o capital aparece primeiramente em O Capital enquanto valor que se auto-valoriza. A distinção que Marx estabelece em O Capital (e nos Grundrisse) entre valor e riqueza material – entre uma forma de riqueza determinada pelo dispêndio temporal [de força de trabalho, NM] e outra baseada na natureza e quantidade dos bens produzidos – torna-se particularmente importante na explicação da dinâmica peculiar de transformação e reconstituição [treadmill dynamic] subjacente à natureza e trajectória de “crescimento” contínuo no capitalismo, a qual significa que se deve produzir cada vez mais [bens] para se conseguirem incrementos cada vez menores na mais-valia [produzida].     

Em segundo lugar, a categoria do capital é desenvolvida dialecticamente no decurso da exposição analítica de Marx. É inicialmente determinada como valor que se auto-valoriza. Todavia, a dimensão de valor de uso torna-se cada vez mais parte integrante do capital. Ao contrário do que poderia parecer no 1º capítulo de O Capital, o valor de uso não se situa fora dessas formas [do capital]; não se trata de um substrato ontológico situado sob as formas. É apenas mais à frente no texto, quando a categoria do capital é introduzida, que os aspectos da análise da mercadoria no 1º capítulo fazem sentido retrospectivamente. A ideia do carácter duplo da mercadoria enquanto valor e valor de uso revela ser parte de uma análise crítica que vai para além de uma rejeição romântica do abstracto (valor) em nome do concreto (valor de uso). Ao invés, essa análise é a de uma “substância” que flui sem ser idêntica a nenhuma das várias formas fenoménicas [forms of appearance] que adquire ao longo do seu fluxo [flow]. O capital, como é óbvio, passa da forma do dinheiro para a forma de bens para a forma do dinheiro para a forma de bens [D-M-D-M-D…, NM]. Flui através de todas essas formas, sem ser idêntico a nenhuma delas.             

O capital é aqui entendido como uma forma de mediação que flui. É constituído socialmente, mas está envolvida nesta análise uma noção de construção social bastante diferente da noção amplamente difundida de um construcionismo social transparente [overt social constructionism], e que opõe simplesmente o que é construído àquilo que presume ser “natural” ou “ontológico” – uma posição cuja crítica permanece abstracta e indeterminada. O capital deve ser entendido como uma forma peculiar de mediação social, como um tipo de construção social dissimulada [covert] e dinâmica cuja eficácia não está dependente das pessoas acreditarem nela (portanto, [como uma mediação social] “quasi-objectiva”). Esta forma de mediação social constitui social e historicamente aquele que é o objecto da especulação metafísica.      

É o facto de o capital ser simultaneamente valor e valor de uso que gera a sua dinâmica histórica singular, uma dinâmica que abre caminho a um futuro para além de si mesmo, ao mesmo tempo que constrange a realização desse futuro. Isto significa que a história, no sentido de uma dinâmica contínua gerada imanentemente, é historicamente específica. Significa igualmente que a consciência crítica deve ser entendida como sendo gerada no quadro estruturado pelo capital e não, primariamente, com referência a uma dimensão putativa “exterior” ou ontológica. Esta posição é completamente congruente com o modo de exposição de Marx enquanto crítica imanente. Permite que a crítica do capitalismo evite as armadilhas das teorias que se encaram como excepções àquilo que analisam.      


TB: A sua tese é rica e complexa, mas um dos seus aspectos mais claros é a alegação de que o Marxismo tradicional tem-se focado demasiado na luta de classes e na exploração na leitura que faz de Marx. A sua ênfase é antes no Marx da maturidade em O Capital, que, segundo a sua interpretação, tentou descrever algo bastante diferente: uma lógica que domina e envolve toda a gente e é responsável por um controlo impessoal [and leaves no one strictly speaking in control]. Você ilustra esta ideia de um modo sucinto quando escreve que: “O Sujeito histórico, de acordo com Marx, é a estrutura alienada de mediação social que constitui a formação capitalista”. Qual é, então, o seu conceito de acção [agency]? E relativamente à questão da exploração, de acordo com a sua tese, o valor resulta ou não em última instância do trabalho?         

MP: São questões menores, aquelas que me está colocar! Deixe-me ver se consigo pelo menos começar a aflorá-las. Quando eu falo de uma lógica que domina as formas de mediação social e se encontra no cerne do capitalismo, eu entendo essa “lógica” (colocada entre aspas) como o desenvolvimento [working out] daquilo que Marx tentava captar na juventude com a noção de alienação, isto é, com a noção de que as pessoas criam estruturas que as dominam. De acordo com esta análise, a forma de dominação subjacente ao capitalismo é reflexiva. No capitalismo, portanto, a dominação não está enraizada em última instância nas instituições da propriedade e/ou do estado – embora elas sejam importantes. Em vez disso, está alicerçada em estruturas de compulsão quasi-objectivas constituídas por determinados modos de prática, expressos pelas categorias da mercadoria e do capital. Esta forma de dominação é expressa mais claramente pela dinâmica do capital, pela existência de uma dinâmica que possui as propriedades de uma lógica histórica. Ou seja, quando falamos acerca da história no capitalismo, estamos na verdade a falar de um processo bastante diferente do que se estivéssemos a falar acerca dos desenvolvimentos históricos no mundo Mediterrânico antigo, no Sudeste Asiático antigo, na China, ou em qualquer outro lugar.       

Esta lógica tem-se tornado cada vez mais rígida e global. É, obviamente, bastante diferente de qualquer noção de progresso histórico (embora providencie a base para a ideia de progresso histórico), porque na medida em que existe uma dinâmica, a acção [agency] é circunscrita e constrangida. Quanto maior for a possibilidade [degree] de acção humana, menor será a influência de uma lógica histórica. Parece-me que Marx analisa o capitalismo como uma sociedade na qual existe um grau considerável de acção individual e um grau considerável de constrangimento estrutural histórico. A dinâmica do capitalismo, contudo, abre a possibilidade de acção histórica [historical agency], mesmo enquanto constrange a sua realização. Diria que a compreensão deste facto pode ajudar a evitar algumas consequências inesperadas da acção política, [demonstrando] que as consequências da acção política não são completamente aleatórias e que a falta de entendimento dos constrangimentos do capital condena muitos dos projectos políticos a um tipo de fracasso imprevisto ou a tornarem-se parte integrante daquilo que pretendiam superar.         


TB: Um exemplo algo trivial de acção no que se refere ao capitalismo é dado por aqueles líderes carismáticos e determinados de facções militares ou movimentos populares que, uma vez no poder, decidem colocar barreiras [put a distance] entre as suas economias nacionais e o mercado. Mosaddeq e Nasser de um modo limitado, Lumumba, Jyoti Basu e, mais recentemente, Chavez, Mugabe e Evo Morales. Não seria portanto correcto dizer que de um modo relativamente simples [straighforward] a lógica dominante do capital pode, através da força de vontade e de uma relação favorável de poder, ser ultrapassada?  

MP: Penso que, consideradas retrospectivamente, as coisas são algo diferentes, que a equação da intervenção estatal com a acção, e do mercado com os constrangimentos, parece agora questionável. Se olharmos para a trajectória dos últimos cem anos, de um modo muito geral, vemos a ascensão e a queda da actividade económica dirigida pelo estado. A actividade económica de direcção central assumiu uma variedade de formas, desde o Keynesianismo no Ocidente até à União Soviética. Essas formas, que foram dominantes nas décadas após a Segunda Guerra Mundial e pareciam ser a chave para o futuro, esbarraram nos seus limites nos anos 70. Isto indica que o grau de acção [agency] que elas expressavam era mais circunscrito do que parecia ser o caso na altura.        

Já se fizeram muitas análises da crise geral do princípio dos anos 70. Em vez de tentar efectuar uma explicação aprofundada, diria que, em retrospectiva, parece que aquilo que a União Soviética chamou de socialismo, deixando de lado por agora as suas dimensões negativas com as quais estamos bastante familiarizados, era na verdade um meio – talvez o único meio possível na altura – para criar um capital nacional, o que significava criar uma economia nacional. Criar uma economia nacional significava também, pelo menos no papel, a distribuição dos recursos de modo diferente daquele com que eram distribuídos os bens do exterior. Foi uma estratégia para contrariar o desenvolvimento desequilibrado e estabelecer uma soberania estatal efectiva. Todavia, isto não implicou de forma alguma a superação do capitalismo.  


TB: Estou a ver – na verdade foi a lógica que foi o agente, ao invés dos indivíduos.

Receio que sim. Também não creio que seja acidental que quando o modelo estatista entrou em crise nos anos 70, a liderança do Partido Comunista Chinês parece ter reconhecido que a era anterior estava a terminar, ao contrário da liderança na União Soviética. A via Chinesa [para o socialismo] não foi simplesmente o resultado da acção de Deng mas uma viragem para os mercados – especialmente para os mercados de capitais – em resposta aos limites da intervenção estatal. Este tipo de desenvolvimento estatista que havia sido bastante bem sucedido já não era muito eficaz. Este desenvolvimento geral coloca em questão a identificação da intervenção estatal com a acção [agency]. Por outro lado, as abordagens baseadas no mercado que não tinham funcionado muito bem na época anterior de desenvolvimento estatista pareciam agora estar a resultar (estou a falar em termos de valorização do capital, obviamente). Elas podem não resultar daqui a vinte anos. Obviamente, a África do Sul é um local bastante diferente do que teria sido se a geração anterior não tivesse lutado com sucesso contra o apartheid, o que teria resultado provavelmente num estado desenvolvimentista mais clássico. Isso não parece ser uma opção viável para eles actualmente. Devemos evitar a tendência para tomar uma configuração histórica do capitalismo e reificá-la. A maioria dos debates acerca da planificação e dos mercados são estáticos; eles descontextualizam e reificam os termos [da discussão].            


TB: Qual seria a característica determinante de uma sociedade não capitalista?

Penso que seriam várias. Certamente, na base do conhecimento retrospectivo, parece que a abolição da propriedade privada e do mercado não são condições suficientes para a abolição do capitalismo. Se regressarmos à distinção que Marx faz entre valor e riqueza material, parece-me que uma condição básica para a abolição do capitalismo seria a abolição do valor. Um resultado disso – dado o potencial produtivo desenvolvido sob o capitalismo – seria que a riqueza da sociedade não dependeria de uma massa de indivíduos a efectuarem um trabalho que hoje consideramos ser vazio, fragmentado, oprimido, explorado. O socialismo implicaria a verdadeira abolição de muito desse trabalho sem criar uma enorme população excedentária, um dos problemas em várias partes do mundo. Por outro lado, as decisões político-económicas seriam bastante menos constrangidas pelas restrições quasi-objectivas do valor e do capital, de modo que vários projectos, tais como aqueles que o governo Francês procurou implementar no início dos anos 80, poderiam ter uma maior possibilidade de sucesso. Embora não esteja certo acerca das condições necessárias no terreno para realizar essa mudança, penso que é muito importante salientar duas dimensões: uma ligada à condição do trabalho da maioria das pessoas e outra ligada aos tipos de constrangimentos colocados sobre a tomada de decisão política.       


TB: Mesmo a análise mais detalhada da crítica do capital de Marx não necessita de incluir como conclusão a imagem clara de um socialismo futuro. Para compreender o capitalismo, por outras palavras, não é necessário descrever o pós-capitalismo. [Mas] ao mesmo tempo, é difícil dissociar completamente as duas coisas. Alguns sectores da esquerda não aceitarão menos do que um mundo sem leis, governos e autoridade. A eliminação do trabalho alienado é insuficiente para lhes despertar o interesse. Não importa o que os socialismos reais tenham alcançado, este tipo de esquerda renega o projecto na sua totalidade. Mas será que mesmo a contenção parcial do mercado por parte de uma autoridade instituída não seria substancialmente melhor do que aquilo que temos agora?       

MP: Oh, absolutamente. Ao falar daquilo que julgo ser o socialismo – e note que é bem diferente da concepção Marxista tradicional – não significa que seja um ultra. Penso que essa análise [do que é o socialismo] poderia ajudar também a guiar a implementação de reformas. Estou plenamente de acordo consigo [quanto ao facto de] que estamos muito longe mesmo de uma situação pré-revolucionária. A única forma de alcançarmos essa situação seria a um nível prático, isto é, através de uma série de reformas, umas mais prementes do que outras. A questão da “população excedentária” (no sentido de que um grande número de pessoas foram tornadas “supérfluas” pelo desenvolvimento capitalista) é um problema tremendamente urgente, tal como são, obviamente, as questões ambientais. Sou um pouco pessimista porque, para além da crescente necessidade de algum tipo de reformismo global, enfrentamos uma situação que aponta para a reemergência de um conflito entre as grandes potências.    

Não creio que as aventuras militares dos EUA no Golfo Pérsico possam ser realmente separadas de uma avaliação a longo prazo de possíveis conflitos futuros entre as grandes potências. Embora as companhias petrolíferas Americanas possam ter beneficiado imenso, não creio que os EUA tenham invadido [o Iraque] apenas para beneficiar essas companhias. É claro que o petróleo desempenha um papel importante, mas fá-lo em parte por causa da possibilidade futura de conflitos entre as grandes potências. A dialéctica dos conflitos entre grandes potências e da globalização faz-me recuar e olhar novamente para as duas décadas que precederam a 1ª Guerra Mundial, quando existia uma dialéctica semelhante. Não me vou adentrar neste assunto, mas creio que foi levado a cabo um conjunto de iniciativas que nos aproximaram de uma perspectiva global. Uma das razões porque louvei os movimentos anti-fábricas clandestinas [anti-sweatshop] nas universidades, nos anos 90, foi o facto de eles já não reificarem os governos do terceiro mundo como algo imbuído de uma soberania progressista mágica e, na verdade, conseguirem ver o que se passava no terreno, independentemente das fábricas estarem localizadas na Indonésia ou no Vietname.       


TB: Voltemos à questão do trabalho. Você destaca o Marx teórico das formações sociais ao invés do Marx profeta da revolução, se posso pôr as coisas nestes termos. Um dos seus argumentos é que o valor económico sob o capitalismo não é redutível ao músculo e nervo [blood and sinew] dispendidos na produção dos objectos materiais para a troca. O valor, e o trabalho que o produz, é abstraído sob o capitalismo e circula desta maneira altamente mediada, distante das suas origens no esforço físico humano. Num certo sentido, esta característica do capitalismo, como você salienta, é aquilo a que Weber se referia como “racionalização” – isto é, a racionalização quantitativa das instituições modernas – e aquilo a que Lukács aludia com a sua ideia de reificação das relações humanas. Palavras como abstracção e racionalização – estes são termos que apontam na direcção do pensamento, gestão [management], planificação, projecções, teoria. A minha pergunta é: você está a descrever um processo de mudança do trabalho físico para o trabalho intelectual ou isso seria uma afirmação exagerada?      


Creio que sim e não. Aquilo que me chamou a atenção, ao pensar sobre a teoria do valor em O Capital, é que Marx, por um lado, procura indicar que à medida que o capital se desenvolve, dá origem a um aparelho produtivo que já não expressa simplesmente a força [colectiva] dos trabalhadores; vai muito para além disso. Por outro lado, para Marx o valor permanece preso ao dispêndio temporal de trabalho por parte dos trabalhadores. A pressão fracturante exercida por estes dois momentos é constitutiva da forma de produção capitalista. Ela encerra também a contradição fundamental desta formação social. Esta posição é diferente daquela assumida por teóricos como Daniel Bell ou Jürgen Habermas, que afirmam que a teoria do valor-trabalho foi válida no passado, mas hoje em dia o valor baseia-se na ciência e na tecnologia. É igualmente diferente das abordagens Marxistas ortodoxas que tentam reduzir tudo, incluindo o poder de cálculo de um super-computador, ao tempo de trabalho dispendido na sua produção, incluindo a engenharia. Estas posições diametralmente opostas partilham um entendimento comum do valor. Em nenhum dos casos o valor é entendido como uma forma historicamente específica de riqueza. Marx destaca algo que eu penso ser muito mais interessante, que é o facto de embora o capital gerar estas enormes capacidades produtivas e, se quiser, aumentar a centralidade do trabalho intelectual, permanece preso estruturalmente ao trabalho directo [dispendido] no processo de produção. Esta é a principal contradição do capital. Creio que é isto que Marx procura analisar com a sua teoria do valor. É algo bastante diferente das preocupações de Ricardo e de Smith.          


TB: Portanto, apesar da distância, da abstracção e tudo mais, a mediação…

MP: … permanece baseada no tempo de trabalho.


TB: E por isso [mediação baseada no tempo de trabalho] você entende o trabalho físico envolvido na produção das coisas. 

MP: Sim, medido temporalmente.


TB: Então, seguindo esse raciocínio, o que lhe apraz dizer sobre as previsões bastante difundidas nas últimas duas ou três décadas de que entrámos numa era pós-industrial?

MP: Bem, na verdade escrevi um pequeno ensaio sobre Daniel Bell já há algum tempo, comparando-o a Ernst Mandel, que escreveu sobre o capitalismo tardio.  


TB: Eles não podiam ser mais diferentes politicamente.

MP: Sim, mas a dada altura Bell foi assistente na Escola de Frankfurt em Morningside Heights, quando eles vieram pela primeira vez para Nova Iorque. Penso que ele “apropriou” muito das suas teorias e transformou-as no seu modo inimitável.    


TB: Sim, tal como “adaptou” O Homem Unidimensional de Marcuse quando escreveu As Contradições Culturais do Capitalismo, que acompanha Marcuse ponto por ponto sem nunca referi-lo, para depois subverter a sua tese ao elogiar a modernidade que Marcuse rejeitou memoravelmente. 

MP: Bem, ele está certamente familiarizado com as preocupações fundamentais da Escola de Frankfurt. Seja como for, Daniel Bell defende que a única coisa que nos impede de alcançar verdadeiramente uma sociedade pós-industrial é uma mentalidade [mind-set], que ele chamou de economicista [economistic], contrária a um pensamento sociologista. Ao escrever em finais dos anos 60 ou inícios dos anos 70, talvez essa visão ainda fosse plausível. Mas não creio que a teoria da sociedade pós-industrial que, no seu cerne, é linear, consiga explicar a natureza das mudanças ocorridas desde o final dos anos 60. Não consegue explicar porque é que aquilo que parecia ser um movimento histórico capaz de superar o economicismo, promovendo um trabalho recompensador [fulfilling] e um tempo livro crescente, foi travado e revertido. Creio que aquilo que a sociedade pós-industrial realmente conseguiu alcançar foi uma demonstração de que existe um potencial tremendo gerado sob o capitalismo que poderia melhorar verdadeiramente a vida da maioria das pessoas, e não apenas em termos de consumo. Todavia, ao abstrair-se dos constrangimentos do capital, a teoria pós-industrial desemboca em modelos lineares cujas falhas não consegue explicar.       


TB: Mas você pensa então que o “capitalismo pós-industrial” se refere a algo real e não a uma ilusão metropolitana que se resume a pouco mais do que uma deslocalização da produção para o terceiro mundo?

MP: Sim. Pessoas como André Gorz já demonstraram há anos que a quantidade de trabalho proletário perdida para a racionalização tecnológica é maior do que a quantidade deslocalizada. É um erro pensar no trabalho proletário como uma quantidade de trabalho fixa que está simplesmente a ser deslocalizada, primeiro para o México, depois para a China e finalmente para o Vietname. Obviamente que a deslocalização de empregos é uma realidade. Ambas as situações estão a acontecer. Eu tento captar esta realidade ao analisar – a um nível bastante abstracto, reconheço – como o capital aponta para a superação do trabalho proletário ao mesmo tempo que o reconstitui.      


TB: Concordo. Por outro lado, a noção de que a produção fundamental através do trabalho físico árduo já não constitui a base da riqueza internacional parece-me extrema e unilateral, particularmente ao testemunhar o espectáculo de acumulação primitiva ao estilo do século XIX na China ou a capitalização de indústrias previamente descapitalizadas na Índia – para dar apenas dois exemplos. Será que não deveríamos suspeitar que a imagem de uma “sociedade pós-industrial” deriva da perspectiva de intelectuais que vivem nos países metropolitanos e que – em virtude das deslocalizações, da ascensão do sector dos serviços e da completa financeirização da economia – estão desligados do motor industrial por detrás de tudo o que vêm? Por outras palavras, isto não é uma questão de interesse próprio?   

MP: Não sei se é uma questão de interesse próprio. Pode ser uma semi-ilusão. Concordo consigo quando diz que é uma percepção selectiva, mas não creio que seja apenas uma ilusão. Dizer que a força física bruta vai ser sempre a base da riqueza internacional chama a atenção para a exploração brutal que existe. Todavia, fá-lo de uma maneira que ignora [brackets] a dimensão histórica do capitalismo e, portanto, qualquer consideração das condições de possibilidade do socialismo. Substitui as considerações temporais por considerações espaciais. A propósito, no caso da China não é apenas uma questão de repetir a acumulação primitiva do século XIX. Quanto muito, esse foi mais o caso da “acumulação comunista”. A minha posição é que a centralidade da força de trabalho na China pode ser explicada nos termos Marxianos do valor (e não em termos desenvolvimentistas). Li certa vez que as fábricas Alemãs que são compradas e depois deslocalizadas para a China são aí reconfiguradas, onde tendem a eliminar a robótica e a introduzir mais pessoas na linha de produção porque as pessoas são muito mais baratas. Está aqui envolvido um trade-off entre mais-valia absoluta e relativa favorável à primeira. Num certo sentido, isto é aquilo que os Americanos designariam por programa de redução de custos (embora essa formulação ofusque a distinção que acabei de mencionar).         


TB: Portanto, é quase uma inversão do processo descrito em O Capital.

MP: Num certo sentido, sim. Mas Marx também descreve como o capital recupera formas anteriores num novo contexto. Não há nada de linear no desenvolvimento do capital.


TB: Parte da sua crítica àquilo que chama “Marxismo tradicional” é que a sua visão do trabalho é “transhistórica”. Você defende que o Marxismo tradicional não consegue apreender a transformação qualitativa do trabalho sob o capitalismo, que equivale a nada menos do que a “dominação dos seres humanos pelo tempo”. Mas não é verdade que toda a economia política anterior à revolução neoclássica – incluindo Rousseau, Smith e o Marx dos manuscritos de 1844 – nos dá o que poderíamos chamar de concepção [rendering] antropológica do trabalho? O trabalho é, desse ponto de vista, igual em todos os períodos [históricos], independentemente das relações económicas. Existe sempre a necessidade de uma actividade física para transformar [refashion] a natureza sob [determinadas] condições culturais com vista a criar um excedente social. Em suma, não será necessário distinguir entre [concepção] “antropológica” e “transhistórica”? O facto inultrapassável do trabalho humano enquanto constante e base da vida humana é precisamente o que permite que as diferentes “formas” de trabalho – incluindo as formas específicas assumidas no capitalismo – adquiram o seu carácter histórico.       

MP: Permita-me simultaneamente aceitar e talvez modificar a ideia de [concepção] “transhistórica” e “antropológica”. Penso que é inquestionável que a existência de algum tipo de interacção entre os seres humanos e a natureza é uma condição para a vida humana. Creio, contudo, que se pode questionar se isso implica necessariamente o trabalho físico da maioria [das pessoas]. Há uma passagem – creio que na introdução à Contribuição para a Crítica da Economia Política – em que Marx se refere à história até aos nossos dias, incluindo o capitalismo, como “pré-história”. A minha leitura desta passagem é que, a partir da chamada revolução neolítica, houve uma enorme expansão da capacidade produtiva humana. Esta expansão, contudo, deu-se sempre à custa da maioria. Todas as chamadas formas históricas da sociedade são baseadas na existência de um excedente contínuo, e esse excedente foi sempre criado por essa maioria.      


TB: Mesmo antes da “queda”, por assim dizer, descrita no Génesis? Isto é, mesmo antes da criação de comunidades agrícolas e das cidades?   

MP: Não, eu disse depois da “revolução neolítica”. Isso não acontecia, pelo que sei, com os caçadores-recolectores. Este desenvolvimento pode ter sido um passo de gigante para a humanidade como um todo, mas foi certamente um passo negativo para muitas pessoas. O problema com as sociedades históricas não se prende apenas com uma classe alta que oprime e vive à custa daqueles que produzem o excedente, mas igualmente com o facto de que o bem-estar do todo e o bem-estar individual (ou, pelo menos, da maioria) serem opostos. O crescimento e o desenvolvimento da produtividade social podem beneficiar ou ser apropriados por uma classe alta, mas o verdadeiro problema é que a labuta da maioria é a condição para a riqueza e a cultura do todo. Creio que, para Marx, o capitalismo pode ser a última forma da pré-história porque cria as condições para que um excedente contínuo possa existir sem estar dependente do trabalho da maioria. Isto relaciona-se com aquilo que você disse acerca das teorias do trabalho intelectual e da sociedade pós-industrial. O problema com ambas as abordagens, que estão relacionadas, é que ambas se abstraem do capitalismo. Elas encaram-no simplesmente em termos de desenvolvimento tecnológico e depois não conseguem entender a verdadeira trajectória global de desenvolvimento. O que é poderoso na abordagem de Marx é que ele vê tanto a opressão contínua como a sua crescente desnecessidade para a sociedade como um todo. Ele analisa a opressão real das pessoas em condições nas quais já não é necessária. Num certo sentido, isso torna-a pior.             


TB: Isso talvez ajude a explicar porque não existe uma grande solidez [conceptual] nos chamados “socialismos reais”. Podem ser traçados todos os tipos de distinções entre os mesmos e o capitalismo em termos de relações de mercado, mas não tanto no que se refere ao trabalho da maioria e ao seu sofrimento.  

MP: Correcto.


TB: Se a crítica não é capaz de superar as categorias de pensamento capitalistas, porque, como mencionámos, estas são subsumidas pela lógica dominante, se a crítica não consegue superar uma relação alienada e reificada com o mundo excepto através da descoberta das contradições nesse mesmo sistema, da sua realidade negativa, por assim dizer, podemos ao menos sugerir qual será essa contradição?     

MP: Deixe-me voltar um pouco atrás. Depende da maneira como entendemos as categorias de pensamento capitalistas. Se o capitalismo é visto apenas como algo negativo – um sistema opressivo e explorador que converte a qualidade em quantidade (uma leitura que, admito, descreve efectivamente aspectos importantes do capitalismo) – então é necessário recorrer a algo “exterior” [ao capitalismo] para fundamentar a crítica. Do meu ponto de vista, contudo, o capitalismo deve ser entendido como uma ordem social e cultural na qual nós vivemos – uma ordem que não pode ser completamente apreendida em termos negativos, mas que é caracterizada por uma complexa interacção entre o que podemos designar como momentos positivos e negativos, todos eles historicamente constituídos. Isto é, o “capitalismo” deve ser entendido como uma forma conceptual mais rigorosa de analisar a “modernidade”, como uma forma de vida social/cultural que gerou igualmente um vasto espectro de ideias e valores (tais como a igualdade) que foram emancipadores de diversas formas.      

Não creio que faça sentido conceptualmente conceber os críticos como estando situados fora dos seus contextos sociais e históricos. A crítica – seja de que tipo for – tem de ser fundamentada [grounded] imanentemente. Marx já tinha percebido isto em A Ideologia Alemã quando critica o idealismo dos Jovens Hegelianos. Ele não os descarta simplesmente como teóricos equivocados, mas defende que uma teoria adequada deve ser capaz de explicar porque é que o seu idealismo é plausível para eles. Do mesmo modo, uma boa teoria deve ser capaz de explicar as condições da sua própria possibilidade. A teoria não pode afirmar que as pessoas são formadas socialmente/historicamente/culturalmente e depois entender-se a si mesma implicitamente como uma excepção às suas próprias pressuposições.     

Tem razão ao sugerir que é a ideia de contradição que permite a este tipo de teoria crítica evitar uma espécie de funcionalismo Durkheimiano. A “contradição” não é simplesmente uma noção objectivista associada às noções Maoístas da relação que se estabelece entre o primeiro e o terceiro mundo ou à ideia de uma derradeira crise económica. Em vez disso, parece-me que está enraizada numa análise do fosso [gap] crescente entre aquilo que é e aquilo que poderia ser. Todavia, como já mencionei atrás, este fosso não é conceptualizado correctamente com referência àquele entre a produção industrial, por um lado, e o mercado e a propriedade privada, por outro. Ao invés, deve ser conceptualizado como o fosso entre o trabalho social tal como é estruturado actualmente e o trabalho social tal como poderia vir a ser estruturado. Esta possibilidade, contudo, não pode nunca ser concretizada sob o capitalismo. No início da nossa conversa falámos acerca de como as teorias do trabalho intelectual e do pós-modernismo antecipam, por um lado, um futuro possível na base dos desenvolvimentos presentes de um modo implicitamente linear, sem contudo compreenderem os constrangimentos que impedem esse futuro de ser realizado. Penso que podemos entender alguns movimentos sociais igualmente como expressões do sentimento de que aquilo que existe não tem de ser assim. Por outras palavras, a noção de que a contradição é não apenas crucial para a auto-reflexividade mas também para a análise crítica dos movimentos emergentes, permitindo avaliar esses movimentos. Penso que a ideia da desnecessidade [non-necessity] das coisas tal como são, por exemplo, foi extremamente poderosa nos chamados novos movimentos sociais da geração anterior. Penso também que podemos ver o fundamentalismo como a reacção oposta – a um sentimento de declínio quando a anterior configuração do mundo atingiu os seus limites na última geração. Isto ainda é bastante incipiente, mas creio que podemos começar a olhar para a consciência opositora na base de uma contradição entre aquilo que é e aquilo que poderia ser – e para certos tipos de formações reaccionárias como expressões do sentimento de ameaça, como reacções que se agarram àquilo que existe (ou que é tomado como sendo aquilo que existe) –, de maneiras que são muito diferentes do que seria o caso se apenas se aceitasse a realidade tal como ela é. Falta-lhe o senso comum descomprometido [doxic ease] daquilo a que poderíamos chamar tradicionalismo     
               
Embora não tenha escrito extensamente acerca dos vários fundamentalismos religiosos que emergiram e se tornaram poderosos nas últimas décadas – nos Estados Unidos, no Médio Oriente e na Índia, por exemplo –, tenho escrito sobre uma formação reaccionária que, do meu ponto de vista, coloca problemas à esquerda, nomeadamente, o anti-semitismo (o meu trabalho sobre o anti-semitismo é muito mais conhecido na Alemanha do que nos EUA). É particularmente importante abordar esta questão hoje em dia, como pano de fundo das políticas de globalização e anti-globalização. Com efeito, isto pode ser difícil na medida em que a acusação de anti-semitismo tem sido utilizada pelos regimes Israelitas e pelos seus apoiantes para tentar desacreditar quaisquer críticas sérias das acções e políticas Israelitas. Por outro lado, a crítica de Israel não deve ser usada para ocultar (e muito menos legitimar) a propagação real do anti-semitismo hoje em dia. O anti-semitismo difere da maioria das outras formas de discurso essencialistas, tais como o racismo, em virtude do seu carácter aparentemente anti-hegemónico e anti-global. No seu cerne está a noção de que os Judeus constituem uma conspiração internacional poderosa e secreta. Eu entendo-o como uma forma fetichista de anti-capitalismo.            

O anti-semitismo identifica falsamente [misrecognizes] a dominação abstracta do capital – que sujeita as pessoas a forças misteriosas abstractas que elas não conseguem perceber, muito menos controlar – com a dominação do Judaísmo internacional. Diria que o problema que isto coloca à esquerda actual é que embora esta ideologia seja profundamente reaccionária, ela pode parecer anti-hegemónica. É por esta razão que Bebel, o líder Social-democrata Alemão, julgou necessário denunciar o anti-semitismo como o socialismo dos tolos. Hoje em dia, poderíamos alargar essa caracterização – tornou-se no anti-imperialismo dos tolos. É uma revolta contra a história tal como foi constituída pelo capital – falsamente reconhecida como uma conspiração Judaica. Pode ser entendido como um importante traço distintivo entre formas de anti-capitalismo progressistas e reaccionárias.     


TB: Você disse que acredita que as lacunas da obra de Lukács sobre a reificação abriram a porta a Heidegger, cujo Ser e Tempo, na sua opinião, foi marcado por Lukács e procurava responder às problemáticas levantadas por ele. Isso intrigou-me. De que “porta” está a falar?    

MP: Ainda não arrumei completamente as ideias nesta questão, mas estava-me a referir à dimensão ontológica do pensamento de Lukács. Levei algum tempo a compreender completamente a importância dessa dimensão na sua abordagem. Ante disso, a minha interpretação era que ele entendia as categorias de Marx como categorias da constituição dos seres humanos. Quando voltei ao texto e o reli várias vezes, cheguei à conclusão que esse não era necessariamente o caso e que, na verdade, Lukács entende a forma mercadoria quase inteiramente em termos da sua dimensão de valor e parece ontologizar a dimensão de valor de uso. Parece-me que esta ideia de que existe um nível ontológico sob o nível da sociedade abriu a porta a Heidegger. Eu costumava pensar a oposição entre Lukács e Heidegger como uma entre uma teoria social e historicamente específica e uma tentativa de negação da mesma através da ontologia. Agora creio cada vez mais que o entendimento de Lukács possuía simultaneamente dimensões específicas e ontológicas e que a dimensão ontológica do pensamento de Lukács abriu a porta a Heidegger e à sua ontologia reaccionária.       


TB: Isso é interessante porque poderia supor-se, após ler Lukács, que ele estava primariamente interessado na epistemologia e que o regresso de Heidegger à ontologia foi uma forma de mudar a ênfase dinâmica no sujeito que confronta o objecto para fixá-la, aprisioná-la [arrest it] e paralisá-la, por assim dizer, o que é uma das consequências de se mover numa ontologia. A contemplação do ser, às mãos de Heidegger, produz um enigma [conundrum] e o telos da sua investigação é esse mesmo enigma.         

MP: Concordo com isso e não estou obviamente a sugerir que Lukács é igual a Heidegger. Todavia, retrospectivamente, creio que Lukács, ao não ser tão plenamente social e histórico como originalmente pensei que fosse, permitiu de certo modo que Heidegger se imiscuísse na sua própria ontologia.   


TB: Quando se refere ao elemento ontológico em Lukács, você diz que é o seu entendimento da forma valor do capital que é ontológico.  

MP: Não, creio que para ele o valor é historicamente específico, mas assume-se como um véu [veneer], por assim dizer, que cobre o valor de uso. O valor de uso, tal como Lukács o entende, é ontológico – ou pelo menos assim me parece.  


TB: E o termo ontológico, se o quisermos traduzir, significa aquilo que os Heideggerianos entendem por ôntico – uma existência bruta como uma pedra, não relacional?  
MP: Para mim significa outra coisa. Parece-me que Lukács possui uma noção de valor de uso enquanto dimensão qualitativa da vida que lhe é inerente e que [segundo Lukács] a dimensão quantitativa do capitalismo distorceu e obscureceu esta dimensão qualitativa da vida. A abolição das formas abstractas do capitalismo permitiria que a dimensão qualitativa da vida fosse recuperada. Creio, contudo, que o capitalismo implica uma dialéctica entre qualidade e quantidade muito mais complicada. Tanto o valor como o valor de uso possuem aspectos quantitativos e qualitativos e ambos possuem momentos emancipadores e não emancipadores. Para além disso, como já mencionei anteriormente, os dois termos estão intimamente ligados no capitalismo – a dinâmica que caracteriza o capitalismo está assente na sua dialéctica. É um facto que a abolição capitalismo requer a abolição do valor – contudo, não na base de uma dimensão qualitativa subjacente, mas na base de uma possibilidade gerada historicamente pela interacção das duas dimensões das formas sociais do capitalismo.        


TB: Você diz que, em Lukács, as categorias do capital (valor de troca, mais-valia, reificação, fetichismo, etc.) formam uma espécie de véu, enquanto o seu argumento é que essas categorias são elas mesmas um tipo de praxis. Nos nossos dias, isso assemelha-se bastante às asserções de pessoas como Paolo Virno e Antonio Negri, que entendem a revolução como autopoiética. Talvez a diferença seja que para si os padrões daquilo que constitui uma ordem verdadeiramente pós-capitalista são, quando muito, mais rigorosos [stringent] do que outros, enquanto eles acreditam que a revolução já aconteceu: o verdadeiro internacionalismo já existe e os oprimidos já impuseram a sua vontade aos líderes a partir debaixo.     

MP: Que raciocínio conveniente.


TB: Precisamente. De qualquer modo, como é que distinguiria esta noção de quem estado a falar da noção de autopoiese?

MP: Parece-me que, na verdade, existe uma sobreposição inesperada entre essa noção neo-operaista e a teoria de Lukács. Em ambos os casos, a praxis parece referir-se a um nível mais imediatamente social do que aquele que é apreendido pelas categorias. Assim, as categorias não captam realmente formas de vida social mas meramente formas de aparência de uma vida que é moldada pela praxis. A praxis parece então escapar a essas categorias, ao passo que – como você notou – eu argumento que as próprias categorias captam formas de prática.        

Agora, no que respeita à noção de autopoiese, diria que aquilo que pode ser entendido como “auto” no capitalismo é o capital. No seu desdobramento dialéctico, mediante o qual a história e a lógica se entrelaçam numa configuração historicamente específica, o capital adquire os atributos daquilo que Marx designa por “Sujeito automático”. Diria que Nietzsche expressa o mesmo de uma forma fetichista com a sua concepção do demiurgo enquanto gerador de um processo contínuo de criação e destruição. Do meu ponto de vista, é o capital – esta estrutura peculiar, auto-perpetuante e destrutiva [undermining] – que pode ser legitimamente chamado de autopoiético.     

Quais as implicações disto para a ideia de acção [agency]? Em primeiro lugar, a acção não surge simplesmente ex nihilo [do nada, NM]. Tal concepção permanece presa a um dualismo (burguês) clássico entre liberdade e necessidade (mais frequentemente expresso como aquele entre acção e estrutura). A própria noção de acção está profundamente incrustada na estrutura da sociedade capitalista que destruiu formas anteriores de inter-relacionamento humano mais incrustadas [socialmente] juntamente com os seus sistemas de valores. A ironia é que na medida em que a acção individual surge historicamente, fá-lo num contexto [framework] que restringe severamente a acção histórica. Em segundo lugar, temos de encarar os imaginários e os valores dos agentes sociais como sendo constituídos socialmente/historicamente. Um vasto espectro de formas subjectivas está associado às várias dimensões e momentos do capital. Entre elas, como referi, estão formas subjectivas que apontam para além do capitalismo. Estas formas não são completamente contingentes nem pré-programadas, por assim dizer. Nem o capital se move de um modo quasi-automático para a sua superação, nem a subjectividade gerada espontaneamente aponta para a superação do capital. Ou seja, o capital pode gerar as condições para a possibilidade de uma sociedade pós-capitalista [beyond capital], mas a dialéctica do capital não é uma dialéctica da história transhistórica. O capital não se vai transformar automaticamente noutra coisa. A lógica do capital pode ser considerada autopoiética, mas a revolução é precisamente o oposto [not that]. O movimento contínuo e crescente, tão caro aos Futuristas, é aquele do capital, mas a revolução envolve o controlo desse movimento. Abole os constrangimentos colocados sobre a acção que tornam o capital autopoiético e, portanto, permite uma sociedade baseada na acção histórica [historical agency]. Benjamin expressou uma ideia semelhante com a sua metáfora da revolução enquanto travão de emergência de uma locomotiva desgovernada. Concordo com a imagem do capitalismo como uma locomotiva desgovernada, embora pense que a revolução exige mais do que simplesmente puxar o travão de emergência.                        


TB: Estava a pensar se poderíamos concluir falando uma última vez mais directamente sobre o trabalho intelectual. Dada a forma como abordámos a questão da acção e da lógica impessoal e impenetrável [impervious] do capital, será possível elucidar-nos acerca do papel e da função do intelectual? O que é que o intelectual é capaz de fazer para promover a mudança do capitalismo para um sistema mais equitativo?    

Deixe-me tentar responder de um modo indirecto, porque o termo trabalho intelectual pode na verdade englobar coisas muito diferentes. Uma grande parte do trabalho intelectual está a tornar-se proletarizado e não é mais satisfatório, em virtude de se estar a usar o cérebro em vez dos músculos, do que tem sido o trabalho fabril Fordista. Creio que a maioria das pessoas envolvidas no que chamamos trabalho intelectual está na verdade envolvida num trabalho bastante unilateral, unidimensional, constrangido e insatisfatório. Tendo dito isto, parece-me que o papel dos intelectuais críticos deve ser o de tentar apreender o que se está a passar. Apesar das diferenças que eu possa ter com David Harvey ou Giovanni Arrighi ou Robert Brenner, respeito as suas tentativas de compreender o presente enquanto história. Apenas através do entendimento do presente enquanto história podemos começar a perceber que tipo de projectos e iniciativas políticas contribuem para a criação de um movimento que aponta verdadeiramente para além do capitalismo e quais não passam de erros. No mínimo dos mínimos, o trabalho da análise crítica deve ser um guia negativo, um guia que possa dizer, “isto não leva a lado nenhum”, ou “isto constitui um perigo por causa daquilo”, ou “estas são algumas das consequências indesejadas”, digamos, de uma política identitária [identity politics] definida em termos muito restritos, consequências bastante diferentes daquilo que as pessoas promotoras de uma política identitária tinham em mente. Por outro lado, os intelectuais críticos que se preocupam com a categoria de capitalismo têm de levar a sério o surgimento de novas maneiras de ver o mundo, não no sentido de aproveitar a boleia ou de as aceitar como correctas apenas porque são novas, mas antes, pelo menos, para as entender como o sinal de que algo está a mudar ou enquanto expressões da insatisfação sentida relativamente às formas antigas da crítica social e dos movimentos sociais (por exemplo, os movimentos operários clássicos foram não apenas enfraquecidos pelos capitalistas na transição para o pós-Fordismo mas também em virtude de não responderem aos problemas quotidianos sentidos por muitas pessoas).        

Será que isto significa que o trabalho dos intelectuais críticos é como o de Sísifo? Talvez, mas não creio. Sei que esta não é uma maneira muito optimista de acabar a nossa conversa, que apreciei, mas não estou certo que os tempos sejam muito optimistas.

TB: É verdade, mas como é que podemos ter a certeza que não são?




Notas do Tradutor

[NT1] A tradução para português de “labor theory of value” é efectuada habitualmente através da expressão “teoria do valor-trabalho”. Neste caso, para um melhor entendimento do sentido original, talvez se justificasse a utilização da expressão “teoria do trabalho criador de valor” (por oposição a uma “teoria do trabalho criador de riqueza transhistórica”). Postone salienta que, em Marx, o trabalho é único elemento criador de valor, mas não o único elemento criador de riqueza material. O valor é a forma (social fetichista) específica assumida pela riqueza (material) na sociedade capitalista.    

[NT2] “Veneer” pode ser traduzido literalmente por “verniz”. Assim, os termos “capa”, “cobertura”, “revestimento”, “película”, etc. poderiam ser traduções alternativas perfeitamente válidas. Todavia, o facto de Postone utilizar três linhas mais abaixo a expressão “veneer of abstraction” levou-me a optar pela palavra “véu”. Embora não seja uma tradução tão literal, penso que não altera em nada o significado original e tem a vantagem de soar melhor em português (relativamente às traduções alternativas).

[NT3] Lembremos Marx: “O próprio capital é a contradição em processo, pelo facto de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza”.



[*] Texto original: Postone, Moishe (2008), “Labor and the Logic of Abstraction: An Interview”, in South Atlantic Quarterly, Vol. 108, No. 2, pp. 305-330. Foram introduzidos alguns termos entre parêntesis rectos quando julgámos que isso ajudava a clarificar e a complementar a tradução mais fiel e “literal”. 


Tradução: Nuno Miguel Cardoso Machado (nuno.cocas.machado@gmail.com). Fevereiro/2012