Nota prévia: a comunicação que se segue serviu de
base à introdução do ensaio “O valor é o homem. Teses sobre a socialização pelo
valor e a relação entre os sexos” de Roswitha Scholz, no âmbito do colóquio que
lhe foi dedicado em Lisboa, na Casa da Achada (Centro Mário Dionísio), a 20 de
Outubro de 2011. Optou-se por procurar não só enquadrar a publicação do ensaio
em 1992, mas também resumir o percurso teórico da autora desde essa data,
realçando os seus contributos para a crítica da dissociação-valor da EXIT!. O
texto não pretende, por isso mesmo, ser uma apresentação exaustiva da teoria da
dissociação-valor nem deve ser lido ou usado com essa intenção. O autor espera
que a simplificação necessária para o tempo disponível e contexto social da
comunicação não tenha prejudicado com gravidade o conteúdo radical da teoria da
dissociação-valor.
A publicação do ensaio “O Valor é o Homem”
Passaram já dezanove anos desde a publicação do
ensaio “O valor é o homem” de Roswitha Scholz na revista Krisis nº12, número em
certa medida dedicado ao tema da relação entre os sexos na sociedade da
mercadoria. Com o nome original de Crítica Marxista, a revista Krisis
constituiu-se em meados da década de 1980 a partir do declínio do movimento
operário, do esgotamento do paradigma da luta de classes e da academização da
teoria marxista. Até ao ano de 1992 a revista e os seus autores tinham já se
destacado por um regresso às categorias da crítica da economia política de Marx,
as quais foram sujeitas a um aprofundamento crítico radical, com destaque para
uma crítica do valor, do trabalho e do fetichismo da mercadoria. Nesse âmbito, a
partir de um entendimento negativo de valor e trabalho, a sociedade moderna era
já classificada como um “sistema produtor de mercadorias”, classificação que
inclui tanto as sociedades capitalistas ocidentais como o “socialismo real” da
União Soviética. A questão do Patriarcado mantinha-se no entanto
sistematicamente ausente da reflexão crítica, apenas referida como mera questão
derivada ou secundária; neste aspecto, a crítica do valor não diferia do
marxismo tradicional na secundarização da “questão da mulher”, que no caso deste
perdia primazia para a “questão das classes”.
De certa forma, o ensaio de Roswitha Scholz veio
preencher esta lacuna não reconhecida da Krisis. De forma resumida podemos dizer
que a autora defende aí que, apesar da dominação patriarcal e da divisão sexual
do trabalho ser anterior à sociedade capitalista, os elementos de dominação
sexual não possuem o mesmo significado em todas as épocas históricas, devendo
por isso mesmo ser estudados em acordo com a especificidade de cada uma das
sociedades e não a partir de bases meramente biológicas ou ontológicas. Neste
sentido, deve-se realçar que apenas na sociedade capitalista se verifica uma
“determinação patriarcal das relações sociais por meio do trabalho abstracto e
do valor” e que no correspondente processo histórico de socialização do
capitalismo, “todo o conteúdo sensível que não é absorvido na forma abstracta do
valor, a despeito de permanecer como pressuposto da reprodução social, é
delegado à mulher” (Scholz, 1992, O Valor é o Homem). Assim sendo, todas as
actividades quotidianas que não são passíveis de serem integradas no processo de
valorização do capital (criação dos filhos, administração do lar, preparação das
refeições, etc.) vêem-se remetidas para esfera feminina, e são elas próprias
feminizadas. E, no fundo, é também por causa destas que o sistema moderno
produtor de mercadorias foi podendo desenvolver-se. Do seu ponto de vista, a
teoria do valor não consegue captar a totalidade do seu objecto (a sociedade da
mercadoria) enquanto deixar omisso aquilo que o valor exclui mas do qual não
pode prescindir (o dissociado).
Se em 1992 a recepção externa do ensaio de
Scholz foi tratada como mera curiosidade filosófica pelo feminismo ou como
insuficientemente empírica de acordo com o positivismo anti-especulativo
académico, tudo isto restringido ao espaço da língua alemã, no interior
da associação predominantemente masculina da Krisis gerou conflitos intensos,
não só ao nível conceptual mas também ao nível pessoal entre os vários autores e
autoras. A estranheza com que o ensaio foi recebido, tocando temas como o da
emotividade e da sensibilidade com um instrumental vagamente psicanalítico,
associado a um certo ressentimento sobre o tema, levou a que alguns autores se
afastassem logo em 1992 da produção teórica no seio da revista; e em certa
medida foi o reiterado apoio de Robert Kurz, forçado a usar da autoridade
intelectual atribuída pelos restantes autores, que acabou por permitir a
publicação do ensaio de Roswitha Scholz e de certo modo a ditar a temática do
número 12 da revista.
Os contornos da publicação do ensaio só foram no
entanto conhecidos em 2004, ano em que se deu uma cisão no grupo Krisis. De
referir que entretanto se publicou a obra mais conhecida do grupo, o
Manifesto contra o Trabalho (onde o trabalho é definido como “dominação
patriarcal”) e a revista teve até àquele ano mais 15 números, tendo Roswitha
Scholz sido responsável por mais três artigos onde procurava simultaneamente
aprofundar e alargar o âmbito do ensaio inicial, escrevendo sobre as teorias
feministas, o patriarcado e a estrutura psico-cultural da década de 1990, em
plena ascensão do capitalismo-casino. A cisão da Krisis não foi o resultado de
meras incompatibilidades pessoais mas fundamentalmente do diferendo em torno de
três questões inter-relacionadas: a relação entre a teoria crítica do valor e do
trabalho e os movimentos sociais; os limites da crítica ao Iluminismo
desenvolvida por Robert Kurz, nomeadamente a crítica do sujeito; o culminar do
conflito latente quanto à relevância teórica da questão do género e do
patriarcado para a crítica do valor.
Através de uma solução administrativa de contornos
inqualificáveis (o que também não é novidade nos grupos da esquerda), Robert
Kurz e Roswitha Scholz foram excluídos da associação da revista Krisis. Com eles
saíram também uma significativa parte dos teóricos e teóricas da associação,
fundando a revista Exit! e dando início ao declínio teórico-conceptual cada vez
mais evidente da Krisis.
A crítica da Exit!: aspectos fundamentais
Naturalmente, a Exit! partilha com a Krisis o
regresso e aprofundamento da crítica da economia política de Marx; e portanto, a
crítica do valor, do trabalho e do fetichismo da mercadoria. E a Krisis continua
também a reproduzir de forma reduzida uma das teses principais de Robert Kurz: a
do duplo Marx. Esta duplicidade não é meramente cronológica (jovem Marx
vs Marx maduro) ou epistemológica (Marx cientista vs Marx teórico da classe
operária). A duplicidade atravessa toda a biografia e obras de Marx. De um lado,
um Marx esotérico, crítico da totalidade da sociedade capitalista, crítico do
valor e do trabalho, crítico do fetichismo da mercadoria enquanto forma social
inconsciente partilhada por capitalistas e trabalhadores; do outro lado, um Marx
exotérico, partidário da modernização e da metafísica do progresso, preocupado
até com a falta de desenvolvimento do capitalismo na Alemanha. Ou seja: por um
lado, um crítico radical da sociedade capitalista na sua totalidade negativa
e, por outro, um partidário do movimento operário que lutava pelo reconhecimento
social no interior dessa mesma totalidade.
Entretanto, o aprofundamento destas ambiguidades e
contradições de Marx, associado ao desenvolvimento da crítica ao Iluminismo de
Robert Kurz e da crítica da dissociação sexual de Roswitha Scholz alterou
qualitativamente e de forma decisiva a nova crítica do valor da Exit!. Correndo
o risco de excessiva simplificação, podemos identificar os seguintes aspectos
fundamentais da crítica social da Exit!:
Crítica do trabalho e do marxismo tradicional.
Tal como apresentado no seu Projecto Teórico, “enquanto o marxismo tradicional
da luta de classes tinha problematizado apenas a apropriação jurídica
superficial da mais-valia pelo capitalista, a "EXIT!" tematiza a forma social de
"sujeito automático" que lhe serve de base. A mais-valia deixa de ser um objecto
positivo, que uns têm e outros não têm, e que se possa exigir ou tirar. Pelo
contrário, trata-se de um fim em si irracional, que está acima de todos os
sujeitos actuantes. "Valorização do valor" significa uma reacoplagem cibernética
do valor a si mesmo, como uma espécie de máquina social. Tal como o valor, como
forma da acumulação sem fim, também o "trabalho abstracto", como seu conteúdo,
se torna igualmente um fim em si irracional, indiferente a qualquer qualidade
social ou material” (Crítica do Capitalismo para o Século XXI. Com Marx para
além de Marx: o Projecto Teórico do Grupo "EXIT!").
Crítica do carácter metafísico real da sociedade
moderna. Enquanto crítica do fetichismo da mercadoria, a crítica do valor
não pode deixar de ser uma crítica da metafísica. Não por acaso, Marx realiza
uma analogia entre o fetichismo da mercadoria e o mundo religioso, define o
valor como uma “objectividade social” sem “um átomo de matéria natural”, uma
“objectividade fantasmagórica”, uma “forma de riqueza abstracta”; e a mercadoria
é apresentada como mera “representação de trabalho abstracto”, tempo de trabalho
humano indiferenciado. Isto também significa que as abstracções inerentes ao
“modo de produção baseado no valor” (Marx) são simultaneamente abstracções
mentais e reais; daí que o fetichismo da mercadoria possa ser entendido como uma
metafísica real social. Neste aspecto, a metafísica social da modernidade é
também particularmente distinta das metafísicas sociais pré-modernas: enquanto
nestas a metafísica mantêm-se transcendente e funciona como quadro religioso de
referência e estabilização social, a metafísica social do sistema
produtor de mercadorias baseada na “valorização do valor” é imanente ao mundo e
imprime-lhe uma dinâmica histórica de transformação social cega.
Crítica do Iluminismo, entendido não como
mero pensamento filosófico do século XVIII mas enquanto expressão ideológica e
legitimatória das categorias de socialização negativa do sistema moderno
produtor de mercadorias, e neste sentido, bem práticas e vivas na sociedade do
século XXI. Esta crítica é desenvolvida fundamentalmente enquanto (i) crítica da
metafísica histórica da modernidade e (ii) crítica da forma sujeito. (i) A forma
temporal da medida da riqueza abstracta (o tempo socialmente necessário) implica
uma relação contraditória e dinâmica entre valor e trabalho abstracto, entre
riqueza abstracta e produtividade material. Esta contradição inerente à
“valorização do valor” implica uma trajectória histórica e geográfica muito
particular: uma produtividade material crescente em unidades temporais cada vez
mais pequenas e uma correspondente necessidade de expansão do mercado. Ou seja:
a “valorização do valor” é um processo social dinâmico e objectivo de crescente
intensidade temporal (produtividade) e progressiva expansividade geográfica
(mercado mundial). Este processo imprime na modernidade uma dinâmica interna,
objectiva e inconsciente, completamente desconhecida nas sociedades
pré-modernas, a qual é ideologicamente “digerida” e legitimada como progresso
e historicamente projectada para toda a História. (Como é sabido, diversos
traços das filosofias burguesas da história foram entretanto também
interiorizadas por Marx na sua definição do “materialismo histórico”). (ii) É
amplamente conhecido o carácter ocidentalista do “universalismo abstracto” do
sistema moderno produtor de mercadorias e as múltiplas tentativas de legitimar o
seu domínio através de justificações teóricas da inferioridade dos povos
não-ocidentais; assim, toda a evocação teórica do sujeito universalista é
rapidamente desmentida por uma qualquer prática de exclusão ou classificação de
conotação negativa (diversos filósofos iluministas destacam-se nesta atitude,
não em grau menor o insuspeito Kant da pretensa “paz perpétua”). A Exit! procura
aprofundar estas ideologias enquanto expressões apologéticas do universalismo
abstracto do sujeito monetário, concorrencial, branco e ocidental, e mostrar que
sua actualidade prática negativa radica no próprio núcleo da sociedade produtora
de mercadorias e só poderá desaparecer com ela. Por outro lado (e aqui já é
evidente o contributo de Roswitha Scholz), denuncia-se também que o sujeito
moderno “não é de modo nenhum sexualmente neutro, mas tem, sim, como pressuposto
essencial uma determinada relação entre os sexos” (Crítica do Capitalismo
para o Século XXI), com uma supremacia masculina evocada para os domínio da
razão, cálculo e pensamento abstracto e a delegação na mulher da emotividade,
espontaneidade e sensibilidade (basta lembrar como Rousseau pensa a relação
entre os sexos no romance “A Nova Heloísa”).
O patriarcado produtor de mercadorias. O
aprofundamento da problemática da dissociação sexual levado a cabo por Scholz ao
longo dos anos, tanto em ensaios da revista da Exit! como em publicações
próprias (com destaque para o livro “O Sexo do Capitalismo” (2000)) levou-a à
modificação da crítica do valor, na forma sexualmente neutra com que se
apresentava. Para Scholz, a crítica da economia política de Marx é insuficiente
e é cada vez evidente a necessidade pensar as suas categorias fundamentais
(valor e trabalho abstracto) em simultâneo com a dissociação sexual, defendendo
a existência de uma “reciprocidade” dialéctica entre o valor e a dissociação,
que devem passar a ser vistos como uma única forma social “co-originária”.
Neste sentido, a moderna relação entre os sexos deve ser reflectida “ao mesmo
nível conceptual que o próprio capital e já não como mero apêndice subordinado”
(Crítica do Capitalismo para o Século XXI). Desta feita, o sistema
produtor de mercadorias deve ser simultaneamente reflectido, e num mesmo nível
de abstracção, como um “patriarcado produtor de mercadorias” (Roswitha Scholz).
(Haveria também que referir como aspecto fundamental para a Exit! a tese do
“limite interno absoluto” da “valorização do valor”; ou seja, a teoria da crise
global do sistema produtor de mercadorias. Um ponto que por motivos de
complexidade e tempo não podemos aprofundar aqui).
A teoria da dissociação-valor de Roswitha Scholz:
aspectos gerais fundamentais
Em seguida apresentarei as características
principais do pensamento mais recente de Roswitha Scholz, ou seja, onde a teoria
do valor surge já como teoria da dissociação-valor (sobre isto ver sobretudo
Scholz, 2010, Não digo nada sem a minha Alltours). Ao mesmo tempo
procurarei esclarecer alguns equívocos muitas vezes associados a leituras
meramente sociológicas da teoria da dissociação-valor.
1. A dissociação-valor é pensada como “Princípio
Estrutural Geral”. Não consiste, portanto, na mera diferenciação das esferas de
eleição do estudo sociológico (público/privado, estado/mercado,
produção/consumo,...) mas no “princípio fundamental abrangente que atravessa
todas as esferas” (Scholz, 2010, Não digo nada sem a minha Alltours).
2. A dissociação-valor insiste na reflexão
dialéctica sobre a relação tensa entre a essência e a aparência, uma condição da
crítica do fetichismo. Ao contrário das teorias pós-modernas que abandonam a
distinção através de um anti-essencialismo superficial, a teoria da
dissociação-valor defende a categoria de essência. Mas (e aqui está a chave)
a essência não é positiva, trans-histórica ou biológica (a capacidade das
mulheres darem à luz, por ex.) mas sim negativa, histórica e social,
designadamente a essência fetichista da forma de riqueza moderna do valor e do
trabalho abstracto. Nesse sentido, não se recusa também categorias teóricas
universalistas, à boa maneira das teorias pós-modernas, antes denuncia-se
o universalismo negativo e realmente existente do sistema mundial produtor de
mercadorias. A diferença entre essência e aparência permite também
compreender melhor, por exemplo, o teorema desenvolvido pela sociologia do
género do chamado “tecto de vidro”, a tal “barreira invisível” que impede a
ascensão profissional e monetária das mulheres apesar da inexistência de
qualquer entrave jurídico ou impedimento empiricamente verificável.
3. O sistema patriarcal moderno produtor de
mercadorias é reflectido enquanto totalidade social. Mas não uma totalidade
positiva e congruente, à maneira hegeliana, mas uma totalidade negativa,
quebrada e incoerente que nunca pode bater certo. Aquilo que está dissociado
do valor é constitutivo do valor e não simplesmente derivado dele. A
feminilidade e as actividades femininas não podem assim, de modo algum, ser
evocadas de forma apriori como ponto de partida da crítica ao capitalismo.
4. A teoria da dissociação-valor implica também uma
crítica do feminismo marxista que em larga medida limitou-se a interiorizar os
conceitos do marxismo tradicional, nomeadamente a metafísica do trabalho, sem a
necessária crítica fundamental do androcentrismo subjacente. Procurou-se por
isso apenas complementar a análise de Marx de forma extrínseca, como se Marx
tivesse simplesmente se esquecido das mulheres, em vez de ver nesse
“esquecimento” justamente uma forma da dissociação se manifestar no homem Marx.
Isto significa que não podemos simplesmente introduzir a partir de fora a
questão feminina na crítica da economia política de Marx, mantendo no
fundamental as suas categorias centrais. Quando isso acontece, o valor e o
trabalho continuam a ser entendidos de forma positiva e transhistórica, tal como
no marxismo vulgar do movimento operário, e nesse sentido, de forma fetichista.
Isto leva muitas vezes o feminismo marxista a teses aberrantes como a de
soviética Alexandra Kollontai que fala da gravidez como um processo de trabalho
produtivo das mulheres. Mas também a teses contraproducentes como as da italiana
Leopoldina Fortunati que, no seu clássico da década de 1980, O Arcano da
Reprodução, a partir de uma categoria de valor despida de qualquer teor
crítico, fala do trabalho doméstico como produtor de valor e de “como um bebé
produz grandes quantidades de valor de uso quando sorri para os seus pais”
(Leopoldina Fortunati, 1995, The Arcane of Reproduction, p.128); já se
encontram aqui uma forma embrionária do fetichismo do trabalho emocional que
anima muito do feminismo marxista de hoje.
5. Enquanto reflexão sobre a totalidade e a tensão
entre essência e aparência, a teoria da dissociação-valor esforça-se por pensar
as diferenças na sua necessária e inescapável relação dialéctica com a
totalidade social negativa; com isto também se recusa a alinhar com a mera
pesquisa desconstrutivista apologética das diferenças, sem atender a
conteúdos, bem como com o relativismo pós-moderno que se esquiva a qualquer
diferenciação conceptual, deixando completamente intocável a indiferença
socialmente destrutiva do valor e do trabalho abstracto e abandonando
completamente qualquer conceito de totalidade. Crítica semelhante dirige Scholz
também às teorias queer, nomeadamente por criticarem de forma superficial e
muitas vezes meramente descritiva a heterosexualidade compulsiva moderna sem
atender ao princípio social abrangente da dissociação-valor que historicamente a
constituiu, e escamoteando o modo como as exigências de identidade flexível
(sócio-sexuais) se conformam aos imperativos actuais da totalidade capitalista,
que, tal como Robert Kurz nos diz, requer que indivíduos de ambos os sexos
mobilizem “em igual medida ‘ternura e dureza’ para a concorrência, e aliem a
competência técnica à competência emocional, a fim de fazer avançar o processo
de fazer dinheiro” (Robert Kurz, 2000, Virtudes Femininas).
6. O asselvajamento do patriarcado produtor de
mercadorias. Como Scholz nos diz “desde os anos de 1950, a relação de
dissociação e valor modificou-se e agudizou-se com a crescente actividade
profissional das mulheres. Daí resulta um enfraquecimento dos arranjos
tradicionais de género na pós-modernidade: as mulheres foram equiparadas aos
homens no plano escolar e estão "duplamente socializadas" (Regina
Becker-Schmidt), ou seja, elas são igualmente responsáveis pela família e pela
profissão. Inversamente, os homens enfrentam agora uma “transformação em donas
de casa", na sequência da precarização das relações de emprego. As instituições
da família e do trabalho estão em erosão, sem que novas formas sociais e de
reprodução sustentáveis tomem o seu lugar. À deterioração fundamental da
economia corresponde um asselvajamento do patriarcado na era da globalização
(...) Na situação de colapso, as mulheres correm hoje o risco sobretudo de lhes
ser atribuída a função de administradoras da crise” (Scholz, 2010, resumo da
comunicação Dissociação e valor – o asselvajamento do Patriarcado na
pós-modernidade). O que se tende a assistir, portanto, não é ao fim do
patriarcado no contexto da igualdade jurídica e social, como falam alguns, mas
antes à sua barbarização.
Uma nota final: embora Roswitha Scholz seja mais
imediatamente reconhecida por se debruçar sobre a relação entre os sexos na
sociedade da mercadoria, seria um equívoco considerá-la como uma espécie de voz
feminista da revista Exit! e da crítica do valor. Os motivos para renunciar a
tal identificação são vários: em primeiro lugar porque há muito tempo que a
teoria do valor se assumiu também como uma teoria da dissociação; em segundo
lugar, porque existem vários autores no seio da Exit! a reflectirem sobre a
dissociação (e penso aqui obviamente em Robert Kurz); mas em terceiro lugar,
porque a própria Roswitha Scholz, para além de ter aberto caminho no âmbito da
socialização dos sexos na sociedade da mercadoria, também tem realizado
reflexões sobre outros temas, e também aí abrindo caminhos novos. Em Roswitha
Scholz, a dissociação-valor tem sido assim reflectida em simultâneo com temas
como: as diferenças de “raça” e classe, o conceito de totalidade concreta, a
teologização de alguma crítica social de esquerda, o 11 de Setembro, o declínio
da classe média, o anti-semitismo e, num ensaio porventura tão surpreendente como
o que se apresenta hoje, o anticiganismo.
A explicação para esta variedade de críticas é
simples: seguindo Adorno, Roswitha Scholz atribui prioridade ao objecto a
conhecer e não à perspectiva do sujeito do conhecimento; é do objecto que deriva
o método e não o inverso. E se o objecto é o movimento histórico da totalidade
social negativa e fragmentada do patriarcado produtor de mercadorias então a
crítica meramente feminista não chega.
20/10/2011