Boaventura Antunes - Intervenção no XVIII Congresso do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas: Lisboa 9-10 Outubro 2015



As minhas saudações a todas e a todos os congressistas
 
Peço que me acompanhem numa pequena reflexão sobre a nossa situação difícil, no sindicato e fora dele, e sobre as portas de saída, se é que as há, desta “apagada e vil tristeza”.
No último mandato o sindicato perdeu mais de 6.000 sócios, ao ritmo de 4 por dia. A falta de jovens e a incapacidade de renovação fazem suspeitar que nos fugiu debaixo dos pés o chão que pisávamos com tanta força e convicção há 40 ou 50 anos.
Em 1966 o novo Código Civil definia o contrato de trabalho como aquele em que uma pessoa se obriga a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra, sob autoridade e direcção desta, que lhe paga. Abriam-se então enormes perspectivas de melhorar a vida das pessoas com a criação de postos de trabalho, apesar de este ser de facto alienado, na sábia definição do código.
A Lei do Contrato de Trabalho de 1969 estabelece o princípio da manutenção dos direitos adquiridos. Esta promessa não cumprida, de que a situação do trabalhador só poderia melhorar, tinha então credibilidade, pois as empresas deparavam-se com uma enorme falta de pessoal, a começar pela banca. Em 1973, antes dos computadores, quando dezenas de jovens bancários e bancárias ficavam a fazer serão para processar manualmente os aumentos de capital, o chefe vinha saber se já todos tinham assinado o livro de horas, dizendo que o banco não precisava de ficar a dever nada a ninguém.
Este boom de trabalho foi particularmente intenso na banca, pois já então a economia começava a precisar cada vez mais de ser alavancada pelo crédito. Não foi só por mérito nosso que o sindicato dos bancários foi dos principais protagonistas na fundação da CGTP e da UGT e assumiu um papel de relevo na sociedade.
Mas, enquanto lutávamos com bandeiras e pregões para fazer um mundo melhor, dentro e fora das empresas, na primeira metade da década de 1970 desenvolvia-se o microprocessador, que viria a potenciar a revolução microelectrónica. A partir dos anos oitenta, com computadores e redes que continuam a desenvolver-se, passaram a ser inapelavelmente suprimidos mais postos de trabalho do que é possível criar pela expansão intensiva e extensiva dos negócios.
Uma banca rejuvenescida e nacionalizada pôde dar cartas a nível mundial, com o sistema multibanco a ser tomado como exemplo e os fabricantes de ATMs a virem testá-las em Portugal. Mas desapareceram para sempre os postos de trabalho que existiam quando um cliente ao levantar dinheiro dava que fazer a quatro ou cinco bancários.
E o que se passa na banca passa-se em todo o universo empresarial e em todos os sectores de actividade, seja em Lisboa, em Xangai, em Detroit ou em Joanesburgo: é preciso apenas um pequeno número de pessoas para produzir o bens e serviços necessários. E o funil aperta-se todos os dias no mundo globalizado: as empresas têm de produzir mais e melhor com menos pessoal, para se aguentarem na concorrência; para isso precisam de mais investimento, que faz aumentar ainda mais a bolha do crédito. Por outro lado, há cada vez mais homens e mulheres supérfluos, a começar pelos mais jovens a quem ninguém consegue dar trabalho, que só podem viver a crédito.
O “Colapso da modernização” em curso, para usar o título de um ensaio de Robert Kurz de 1991, começou com a ruína dos países antes ditos em desenvolvimento, continuou com a queda dos países ditos socialistas e chega agora aos centros. Um mundo cheio de migrantes e refugiados é a expressão mais brutal da dificuldade de este sistema baseado no trabalho e no dinheiro, que já nos pareceu tão credível, continuar a servir de suporte à vida das pessoas.
A desregulamentação dos mercados desde os anos oitenta visou criar novas fontes de financiamento, com derivados financeiros cada vez mais fantásticos e circuitos transnacionais de endividamento nunca antes vistos, onde surge o célebre déficit gémeo dos EUA, que importam quase tudo (sobretudo da Ásia) pagando com títulos de dívida, ou a Zona Euro, onde alguns países conseguem exportar porque outros se endividam para lhes comprar.
2008 mostrou que o crédito globalmente sacado sobre o futuro tem limites. No entanto as dívidas públicas e privadas não pararam de aumentar desde então. Estamos numa via sem regresso: a concorrência obriga a cada vez mais investimentos, recorrendo ao crédito, para cada vez menos postos de trabalho. Os supérfluos só podem continuar a consumir a crédito. E só por ignorância militante se pode preconizar o regresso às antigas moedas nacionais neste mundo globalizado.
O quantitative easing, primeiro da Reserva Federal Americana, agora do BCE, com a criação a partir do nada, com um mero clique de rato, de 60.000 milhões de euros por mês, não tem qualquer contrapartida na criação substancial de valor. Mas é o expediente possível para evitar o colapso dos Estados e das empresas, na Europa e não só.
Perante a catástrofe que nos cerca, onde ironicamente o país tira proveito dos turistas que nos chegam desviados pela miséria e pela guerra que dominam o Médio Oriente e o Norte de África, só podemos lembrar-nos do terramoto que no século XVIII devastou Lisboa e impressionou toda a Europa iluminista. Então, perante a força destruidora de uma natureza que se pensava ter começado a dominar, ficou para a história a palavra de ordem: “Enterrar os mortos e cuidar dos vivos”.
O terramoto hoje em curso não é local, é universal. E muito mais sofisticado, pois não são as camadas geológicas que colapsam, mas as estruturas sociais acumuladas inconscientemente nos últimos séculos que se revelam ocas e vêm abaixo quando menos se espera. Faltando o trabalho na produção de bens e serviços não há quem os compre, a não ser a crédito. Faltando o dinheiro, caem as empresas e os Estados.
Os sete mil milhões de homens, mulheres e crianças que povoam o planeta têm de continuar a viver, a estudar, a viajar e a fazer o que precisam para construir as suas vidas socialmente, haja ou não trabalho, haja ou não dinheiro.
Estão vivas e vivos. É delas e deles que é preciso cuidar.
E as instituições que se revelarem incapazes de cuidar delas e deles é que precisam de ser enterradas. E nem vale a pena chorar tais mortos, pois afinal não são gente.
Voltando ao meu argumento inicial: não podemos continuar a agir como se os banqueiros precisassem de muitos trabalhadores e estivessem a gerir o dinheiro dos depositantes descontando letras de operações comerciais efectivas, como acontecia há quarenta anos. Se a revolução microelectrónica torna supérfluos os postos de trabalho, o quantitative easing revela a superfluidade dos banqueiros, na sua função histórica de recolher e pôr a girar as poupanças da sociedade, tornando-os meros feitores do BCE.
Não podemos continuar com a linguagem da luta de classes cuja história acabou. No nosso sindicato, “os últimos combates” (para referir o título de um célebre ensaio sobre o tema) foram já no século passado, quando uma empolgante greve valentemente participada foi tristemente desconvocada ao terceiro dia.
Se a outra parte diz que não pode, é preciso dizer que tem de pagar mesmo sem poder. Se for preciso contem-lhes a parábola do Evangelho de Lucas, do feitor que sabia que a sua função ia acabar e procurava captar as boas graças daqueles com quem negociava, pensando no seu futuro.
Se é verdade que “a longo prazo estamos todos mortos”, como dizia Keynes, a morte económica não tem de provocar a morte biológica.
Os dois mil milhões que o BCE emite diariamente para evitar o colapso do sistema têm de acudir desde logo a todas as pessoas que precisam de viver socialmente as suas vidas. Sem esquecer as mulheres e homens que fizeram e fazem a banca. É isso que é preciso dizer nas negociações contratuais em curso aos que fazem o papel de banqueiros, se quisermos coisas tão simples como uniformizar e actualizar a tabela salarial. Se assim for, as associadas e associados não deixarão de se fazer ouvir, para fazê-los ver que tem de ser mesmo assim.
O futuro faz-se com as pessoas a pensarem nas suas vidas, que queremos fazer em sociedade!
 
Boaventura Antunes
Intervenção feita resumidamente no XVIII Congresso do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, Lisboa 9-10 Outubro 2015