As minhas saudações a todas e a todos os congressistas
Peço que me acompanhem numa pequena reflexão sobre a nossa situação difícil, no
sindicato e fora dele, e sobre as portas de saída, se é que as há, desta
“apagada e vil tristeza”.
No último mandato o sindicato perdeu mais de 6.000 sócios, ao ritmo de 4 por
dia. A falta de jovens e a incapacidade de renovação fazem suspeitar que nos
fugiu debaixo dos pés o chão que pisávamos com tanta força e convicção há 40 ou
50 anos.
Em 1966 o novo Código Civil definia o contrato de trabalho como aquele em que
uma pessoa se obriga a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra,
sob autoridade e direcção desta, que lhe paga. Abriam-se então enormes
perspectivas de melhorar a vida das pessoas com a criação de postos de trabalho,
apesar de este ser de facto alienado, na sábia definição do código.
A Lei do Contrato de Trabalho de 1969 estabelece o princípio da manutenção dos
direitos adquiridos. Esta promessa não cumprida, de que a situação do
trabalhador só poderia melhorar, tinha então credibilidade, pois as empresas
deparavam-se com uma enorme falta de pessoal, a começar pela banca. Em 1973,
antes dos computadores, quando dezenas de jovens bancários e bancárias ficavam a
fazer serão para processar manualmente os aumentos de capital, o chefe vinha
saber se já todos tinham assinado o livro de horas, dizendo que o banco não
precisava de ficar a dever nada a ninguém.
Este boom de trabalho foi particularmente intenso na banca, pois já então a
economia começava a precisar cada vez mais de ser alavancada pelo crédito. Não
foi só por mérito nosso que o sindicato dos bancários foi dos principais
protagonistas na fundação da CGTP e da UGT e assumiu um papel de relevo na
sociedade.
Mas, enquanto lutávamos com bandeiras e pregões para fazer um mundo melhor,
dentro e fora das empresas, na primeira metade da década de 1970 desenvolvia-se
o microprocessador, que viria a potenciar a revolução microelectrónica. A partir
dos anos oitenta, com computadores e redes que continuam a desenvolver-se,
passaram a ser inapelavelmente suprimidos mais postos de trabalho do que é
possível criar pela expansão intensiva e extensiva dos negócios.
Uma banca rejuvenescida e nacionalizada pôde dar cartas a nível mundial, com o
sistema multibanco a ser tomado como exemplo e os fabricantes de ATMs a virem
testá-las em Portugal. Mas desapareceram para sempre os postos de trabalho que
existiam quando um cliente ao levantar dinheiro dava que fazer a quatro ou cinco
bancários.
E o que se passa na banca passa-se em todo o universo empresarial e em todos os
sectores de actividade, seja em Lisboa, em Xangai, em Detroit ou em Joanesburgo:
é preciso apenas um pequeno número de pessoas para produzir o bens e serviços
necessários. E o funil aperta-se todos os dias no mundo globalizado: as empresas
têm de produzir mais e melhor com menos pessoal, para se aguentarem na
concorrência; para isso precisam de mais investimento, que faz aumentar ainda
mais a bolha do crédito. Por outro lado, há cada vez mais homens e mulheres
supérfluos, a começar pelos mais jovens a quem ninguém consegue dar trabalho,
que só podem viver a crédito.
O “Colapso da modernização” em curso, para usar o título de um ensaio de Robert
Kurz de 1991, começou com a ruína dos países antes ditos em desenvolvimento,
continuou com a queda dos países ditos socialistas e chega agora aos centros. Um
mundo cheio de migrantes e refugiados é a expressão mais brutal da dificuldade
de este sistema baseado no trabalho e no dinheiro, que já nos pareceu tão
credível, continuar a servir de suporte à vida das pessoas.
A desregulamentação dos mercados desde os anos oitenta visou criar novas fontes
de financiamento, com derivados financeiros cada vez mais fantásticos e
circuitos transnacionais de endividamento nunca antes vistos, onde surge o
célebre déficit gémeo dos EUA, que importam quase tudo (sobretudo da Ásia)
pagando com títulos de dívida, ou a Zona Euro, onde alguns países conseguem
exportar porque outros se endividam para lhes comprar.
2008 mostrou que o crédito globalmente sacado sobre o futuro tem limites. No
entanto as dívidas públicas e privadas não pararam de aumentar desde então.
Estamos numa via sem regresso: a concorrência obriga a cada vez mais
investimentos, recorrendo ao crédito, para cada vez menos postos de trabalho. Os
supérfluos só podem continuar a consumir a crédito. E só por ignorância
militante se pode preconizar o regresso às antigas moedas nacionais neste mundo
globalizado.
O quantitative easing, primeiro da Reserva Federal Americana, agora do
BCE, com a criação a partir do nada, com um mero clique de rato, de 60.000
milhões de euros por mês, não tem qualquer contrapartida na criação substancial
de valor. Mas é o expediente possível para evitar o colapso dos Estados e das
empresas, na Europa e não só.
Perante a catástrofe que nos cerca, onde ironicamente o país tira proveito dos
turistas que nos chegam desviados pela miséria e pela guerra que dominam o Médio
Oriente e o Norte de África, só podemos lembrar-nos do terramoto que no século
XVIII devastou Lisboa e impressionou toda a Europa iluminista. Então, perante a
força destruidora de uma natureza que se pensava ter começado a dominar, ficou
para a história a palavra de ordem: “Enterrar os mortos e cuidar dos vivos”.
O terramoto hoje em curso não é local, é universal. E muito mais sofisticado,
pois não são as camadas geológicas que colapsam, mas as estruturas sociais
acumuladas inconscientemente nos últimos séculos que se revelam ocas e vêm
abaixo quando menos se espera. Faltando o trabalho na produção de bens e
serviços não há quem os compre, a não ser a crédito. Faltando o dinheiro, caem
as empresas e os Estados.
Os sete mil milhões de homens, mulheres e crianças que povoam o planeta têm de
continuar a viver, a estudar, a viajar e a fazer o que precisam para construir
as suas vidas socialmente, haja ou não trabalho, haja ou não dinheiro.
Estão vivas e vivos. É delas e deles que é preciso cuidar.
E as instituições que se revelarem incapazes de cuidar delas e deles é que
precisam de ser enterradas. E nem vale a pena chorar tais mortos, pois afinal
não são gente.
Voltando ao meu argumento inicial: não podemos continuar a agir como se os
banqueiros precisassem de muitos trabalhadores e estivessem a gerir o dinheiro
dos depositantes descontando letras de operações comerciais efectivas, como
acontecia há quarenta anos. Se a revolução microelectrónica torna supérfluos os
postos de trabalho, o quantitative easing revela a superfluidade dos
banqueiros, na sua função histórica de recolher e pôr a girar as poupanças da
sociedade, tornando-os meros feitores do BCE.
Não podemos continuar com a linguagem da luta de classes cuja história acabou.
No nosso sindicato, “os últimos combates” (para referir o título de um célebre
ensaio sobre o tema) foram já no século passado, quando uma empolgante greve
valentemente participada foi tristemente desconvocada ao terceiro dia.
Se a outra parte diz que não pode, é preciso dizer que tem de pagar mesmo sem
poder. Se for preciso contem-lhes a parábola do Evangelho de Lucas, do feitor
que sabia que a sua função ia acabar e procurava captar as boas graças daqueles
com quem negociava, pensando no seu futuro.
Se é verdade que “a longo prazo estamos todos mortos”, como dizia Keynes, a
morte económica não tem de provocar a morte biológica.
Os dois mil milhões que o BCE emite diariamente para evitar o colapso do sistema
têm de acudir desde logo a todas as pessoas que precisam de viver socialmente as
suas vidas. Sem esquecer as mulheres e homens que fizeram e fazem a banca. É
isso que é preciso dizer nas negociações contratuais em curso aos que fazem o
papel de banqueiros, se quisermos coisas tão simples como uniformizar e
actualizar a tabela salarial. Se assim for, as associadas e associados não
deixarão de se fazer ouvir, para fazê-los ver que tem de ser mesmo assim.
O futuro faz-se com as pessoas a pensarem nas suas vidas, que queremos fazer em
sociedade!
Boaventura Antunes
Intervenção feita resumidamente no XVIII Congresso do Sindicato dos Bancários do
Sul e Ilhas, Lisboa 9-10 Outubro 2015