Daniel Späth - A AUTONOMIA FETICHISTA DA FORMAÇÃO IDEOLÓGICA ANTI-SIONISTA


Breve esboço da extensão do conceito de anti-semitismo
 
Que o delírio anti-semita também possa existir sem judeus é um facto bem conhecido; já não o é, porém, que o delírio anti-sionista também possa ter lugar sem o Estado de Israel. A ideia tradicional, partilhada pela esquerda radical, de um anti-semitismo secundário, cujo ódio ao objecto concreto – os judeus e as judias – foi transferido para o Estado de Israel após Auschwitz, representa um entendimento truncado do mesmo, funcionando o anti-sionismo nela, afinal, umas vezes mais outras menos, como forma derivada de um anti-semitismo a ser fundamentado sobretudo economicamente. O reverso de tal argumento é muitas vezes a afirmação de que a ideologia anti-sionista estaria aglutinada com o evento histórico real da fundação do Estado de Israel, que representaria portanto a conditio sine qua non para ela. O próprio ponto de partida dessa análise de um anti-semitismo secundário, de que o Estado de Israel experimentaria na percepção global uma sobredeterminação ideológica, não pode ser apreendido criticamente neste plano. Precisamente por isso se torna necessário combater teoricamente com uma crítica afiada o anti-sionismo que grassa globalmente.
 
Uma crítica transcendente de tal conceito insuficiente de anti-semitismo encontra-se no texto do teórico Joachim Bruhn ‘Nichts gelernt und nichts vergessen’. Ein Schema zur Geschichte des Antizionismus in Deutschland [‘Nada aprenderam e nada esqueceram’. Um esquema da história do anti-sionismo na Alemanha]. Insistindo na "dialéctica de bourgeois e citoyen", Bruhn regista que o anti-semitismo também tem sempre de "mostrar a face política" (1). Com base num discurso de Hitler de 1920 Bruhn refere que Hitler já então negava aos judeus e judias qualquer forma de estatalidade na Palestina. Uma vez que Bruhn agora, por um lado, aponta para a mesma origem do anti-semitismo e do anti-sionismo de Hitler, ele toca num nível crucial da sobredeterminação ideológica, que neste último caso e no do seu ódio ocorre contra um Estado judeu, embora ele ainda não existisse historicamente na realidade. Por outro lado, com esta perspectiva Bruhn persiste no entanto no acoplamento do anti-sionismo ao facto histórico da fundação do Estado, sendo que o protectorado britânico já tinha negociado em 2 Novembro 1917 o estabelecimento de um Estado israelita (2). Que Bruhn noutra posição veja aqui o anti-sionismo como resultado da "impertinente permanência no ponto zero de qualquer esclarecimento" (3) aponta apenas para o limite interno da capacidade anti-alemã de crítica, na qual a filosofia iluminista é desviada até na terminologia para uma oposição contrafactual à formação ideológica anti-sionista/anti-semita.
 
Na minha opinião, para o desenvolvimento da crítica da ideologia anti-sionista, pelo contrário, importa agora examinar radicalmente a sua coerência negativa, isto é, evidenciar a sua autonomia fetichista em relação à fundação histórica do Estado de Israel, autonomia que, como se explicará a seguir, de facto não está ligada à sua facticidade histórica. No entanto aqui é necessário alargar a análise crítica da ideologia do anti-sionismo a um campo perante o qual a consciência anti-alemã recua quase instintivamente. Na verdade, já a obra do filósofo iluminista Immanuel Kant destila aquela coerção patogénica que nega "a priori" aos judeus e judias qualquer possibilidade de desenvolvimento de um Estado orgânico. Esta motivação anti-sionista (4) torna-se manifesta em seu trabalho Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft [A religião nos limites da simples razão]. Nele explicita o iluminista a condição da possibilidade de uma "comunidade ética" (5), que não só dá as suas leis politicamente, com coerção externa, mas também estabelece uma convicção moral, baseada na interiorização desta mesma coerção. Kant põe aqui em contraste um "bom" e um “mau” princípio no homem, situação em que apenas superando o último tal comunidade poderia ser constituída. Ora aqui é decisivo que ele atribui estes princípios à fé cristã e à fé religiosa, sendo que, como o título já evoca, a questão da fé é julgada sob as premissas da razão e da questão de saber qual a disposição "adequada", ou seja, moral da "comunidade". "Inadequado" em relação a esta "comunidade" a consolidar orgânica e eticamente é para Kant o judaísmo (6): Assim Deus ter-lhe-ia imposto que poderia fundar "apenas uma comunidade política, não uma comunidade ética" (7). O Estado judaico foi sempre, é sempre e sempre será um "estado impróprio", constituído apenas politicamente, sem capacidade para uma disposição moral. A nação judaica não é genuína, é uma "nação de comerciantes barulhentos", desprovida de qualquer forma de "reputação civil" (8). No jargão actual dos/das anti-sionistas, Kant já estava ciente de que a "comunidade" judaica apenas poderia ser uma "construção".
 
Naturalmente que estas considerações breves devem ser clarificadas e aprofundadas (9), mas está à vista a partir delas que a motivação da ideologia anti-sionista não se inflama a partir da existência factual do Estado de Israel, mas aponta para uma autonomia fetichista que predetermina a sua articulação mesmo antes da fundação do Estado de Israel. O facto de, na obra de Kant, a divisão entre a filosofia do direito e a filosofia da moral fornecer o ponto de partida para a sua ideologia anti-sionista aponta mais uma vez o carácter persistente desta, que emana da presunção da razão burguesa e da sua inerente contraditoriedade. À pérfida questão da crítica justa ao Estado de Israel, significante de uma atitude anti-sionista, deve, portanto, contrapor-se decididamente que este Estado já antes da sua fundação era objecto de sentimentos anti-semitas. Só com este pano de fundo se estabelece um critério para a crítica ou para a solidariedade com o Estado dos judeus e das judias.
 
 
Bibliografia
 
 
 
Notas:
 
 
(2) São de mencionar aqui também os trabalhos de Olaf Kistenmacher, que se movem no mesmo plano de argumentação que o de Bruhn, embora debruçando-se sobre um assunto diferente, o Partido Comunista Alemão nos anos de 1920. Embora eu apenas tenha descoberto os trabalhos de Kistenmacher após a redacção deste texto, a sua orientação crítica não deve deixar de ser aqui mencionada.
 
(3) Ver http://audioarchiv.blogsport.de/2010/03/04/antizionismus-2/, a citação surge aos 35 minutos e 45 segundos.
 
(4) Quando eu a seguir uso o termo "formação ideológica anti-sionista" também para o anti-semitismo de Kant, com isso não se pretende dizer que o seu ódio aos judeus e judias é idêntico ao anti-sionismo de hoje, que de facto se executa perante a existência real do Estado. Pelo contrário, é preciso insistir que já antes da fundação do Estado de Israel existia a motivação anti-sionista, sem que – para mais uma vez o sublinhar – se possa confundir o anti-sionismo de hoje com a motivação anti-sionista de então.
 
(5) I. Kant, Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft [A religião nos limites da simples razão], Stuttgart, 2007, p.167.
 
(6) É crucial notar aqui que a filosofia moral de Kant acaba por ser a extensão da sua filosofia do direito e, portanto, é central para o projecto filosófico de legitimação do Estado burguês. Nesta conexão se manifesta também aqui o anti-sionismo kantiano.
 
(7) I. Kant, Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft [A religião nos limites da simples razão], Stuttgart, 2007, p.167.
 
(8) I. Kant, Anthropologie in pragmatischer Hinsicht [Antropologia do ponto de vista pragmático], Stuttgart, 2008, nota de pé de página, p.136.
 
(9) Este aprofundamento está pensado para a EXIT! nº 10 em que devem ser apresentados de forma crítica o anti-semitismo/anti-sionismo e o racismo kantianos.