Breve esboço da extensão do conceito de
anti-semitismo
Que o delírio anti-semita também possa existir sem
judeus é um facto bem conhecido; já não o é, porém, que o delírio anti-sionista
também possa ter lugar sem o Estado de Israel. A ideia tradicional, partilhada
pela esquerda radical, de um anti-semitismo secundário, cujo ódio ao objecto
concreto – os judeus e as judias – foi transferido para o Estado de Israel após
Auschwitz, representa um entendimento truncado do mesmo, funcionando o
anti-sionismo nela, afinal, umas vezes mais outras menos, como forma derivada de
um anti-semitismo a ser fundamentado sobretudo economicamente. O reverso de tal
argumento é muitas vezes a afirmação de que a ideologia anti-sionista estaria
aglutinada com o evento histórico real da fundação do Estado de Israel, que
representaria portanto a conditio sine qua non para ela. O próprio ponto
de partida dessa análise de um anti-semitismo secundário, de que o Estado de
Israel experimentaria na percepção global uma sobredeterminação ideológica, não
pode ser apreendido criticamente neste plano. Precisamente por isso se torna
necessário combater teoricamente com uma crítica afiada o anti-sionismo que
grassa globalmente.
Uma crítica transcendente de tal conceito
insuficiente de anti-semitismo encontra-se no texto do teórico Joachim Bruhn
‘Nichts gelernt und nichts vergessen’. Ein Schema zur Geschichte des
Antizionismus in Deutschland [‘Nada aprenderam e nada esqueceram’. Um esquema da
história do anti-sionismo na Alemanha]. Insistindo na "dialéctica de
bourgeois e citoyen", Bruhn regista que o anti-semitismo também tem
sempre de "mostrar a face política" (1). Com base num discurso de Hitler de 1920
Bruhn refere que Hitler já então negava aos judeus e judias qualquer forma de
estatalidade na Palestina. Uma vez que Bruhn agora, por um lado, aponta para a
mesma origem do anti-semitismo e do anti-sionismo de Hitler, ele toca num nível
crucial da sobredeterminação ideológica, que neste último caso e no do seu ódio
ocorre contra um Estado judeu, embora ele ainda não existisse historicamente na
realidade. Por outro lado, com esta perspectiva Bruhn persiste no entanto no
acoplamento do anti-sionismo ao facto histórico da fundação do Estado, sendo que
o protectorado britânico já tinha negociado em 2 Novembro 1917 o estabelecimento
de um Estado israelita (2). Que Bruhn noutra posição veja aqui o anti-sionismo
como resultado da "impertinente permanência no ponto zero de qualquer
esclarecimento" (3) aponta apenas para o limite interno da capacidade anti-alemã
de crítica, na qual a filosofia iluminista é desviada até na terminologia para
uma oposição contrafactual à formação ideológica anti-sionista/anti-semita.
Na minha opinião, para o desenvolvimento da
crítica da ideologia anti-sionista, pelo contrário, importa agora examinar
radicalmente a sua coerência negativa, isto é, evidenciar a sua autonomia
fetichista em relação à fundação histórica do Estado de Israel, autonomia que,
como se explicará a seguir, de facto não está ligada à sua facticidade
histórica. No entanto aqui é necessário alargar a análise crítica da
ideologia do anti-sionismo a um campo perante o qual a consciência anti-alemã
recua quase instintivamente. Na verdade, já a obra do filósofo iluminista
Immanuel Kant destila aquela coerção patogénica que nega "a priori" aos
judeus e judias qualquer possibilidade de desenvolvimento de um Estado orgânico.
Esta motivação anti-sionista (4) torna-se manifesta em seu trabalho Die
Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft [A religião nos limites da
simples razão]. Nele explicita o iluminista a condição da possibilidade de
uma "comunidade ética" (5), que não só dá as suas leis politicamente, com
coerção externa, mas também estabelece uma convicção moral, baseada na
interiorização desta mesma coerção. Kant põe aqui em contraste um "bom" e um
“mau” princípio no homem, situação em que apenas superando o último tal
comunidade poderia ser constituída. Ora aqui é decisivo que ele atribui estes
princípios à fé cristã e à fé religiosa, sendo que, como o título já evoca, a
questão da fé é julgada sob as premissas da razão e da questão de saber qual a
disposição "adequada", ou seja, moral da "comunidade". "Inadequado" em relação a
esta "comunidade" a consolidar orgânica e eticamente é para Kant o judaísmo (6):
Assim Deus ter-lhe-ia imposto que poderia fundar "apenas uma comunidade
política, não uma comunidade ética" (7). O Estado judaico foi sempre, é sempre e
sempre será um "estado impróprio", constituído apenas politicamente, sem
capacidade para uma disposição moral. A nação judaica não é genuína, é uma
"nação de comerciantes barulhentos", desprovida de qualquer forma de "reputação
civil" (8). No jargão actual dos/das anti-sionistas, Kant já estava ciente de
que a "comunidade" judaica apenas poderia ser uma "construção".
Naturalmente que estas considerações breves devem
ser clarificadas e aprofundadas (9), mas está à vista a partir delas que a
motivação da ideologia anti-sionista não se inflama a partir da existência
factual do Estado de Israel, mas aponta para uma autonomia fetichista que
predetermina a sua articulação mesmo antes da fundação do Estado de Israel.
O facto de, na obra de Kant, a divisão entre a filosofia do direito e a
filosofia da moral fornecer o ponto de partida para a sua ideologia
anti-sionista aponta mais uma vez o carácter persistente desta, que emana da
presunção da razão burguesa e da sua inerente contraditoriedade. À pérfida
questão da crítica justa ao Estado de Israel, significante de uma atitude
anti-sionista, deve, portanto, contrapor-se decididamente que este Estado já
antes da sua fundação era objecto de sentimentos anti-semitas. Só com este pano
de fundo se estabelece um critério para a crítica ou para a solidariedade com o
Estado dos judeus e das judias.
Bibliografia
Joachim Bruhn, ‘Nichts
gelernt und nichts vergessen’.
Ein Schema zur Geschichte des Antizionismus
in Deutschland [Nada aprenderam e nada
esqueceram. " Um esquema da história do anti-sionismo na Alemanha], em:
http://www.ca-ira.net/isf/beitraege/bruhn-nichts.gelernt.html.
Joachim Bruhn, „Nichts gelernt
und nichts vergessen“, conferência em
http://audioarchiv.blogsport.de/2010/03/04/antizionismus-2/
I. Kant, Die Religion innerhalb der Grenzen der
bloßen Vernunft [A religião nos limites da simples razão], Stuttgart, 2007,
p.167.
I. Kant,
Anthropologie in pragmatischer Hinsicht
[Antropologia do ponto de vista pragmático],
Stuttgart, 2008, nota de pé de página, p.136.
Notas:
(2) São de mencionar aqui também os trabalhos de
Olaf Kistenmacher, que se movem no mesmo plano de argumentação que o de Bruhn,
embora debruçando-se sobre um assunto diferente, o Partido Comunista Alemão nos
anos de 1920. Embora eu apenas tenha descoberto os trabalhos de Kistenmacher
após a redacção deste texto, a sua orientação crítica não deve deixar de ser
aqui mencionada.
(3) Ver
http://audioarchiv.blogsport.de/2010/03/04/antizionismus-2/,
a citação surge aos 35 minutos e 45 segundos.
(4) Quando eu a seguir uso o termo "formação
ideológica anti-sionista" também para o anti-semitismo de Kant, com isso não se
pretende dizer que o seu ódio aos judeus e judias é idêntico ao anti-sionismo de
hoje, que de facto se executa perante a existência real do Estado. Pelo
contrário, é preciso insistir que já antes da fundação do Estado de Israel
existia a motivação anti-sionista, sem que – para mais uma vez o sublinhar – se
possa confundir o anti-sionismo de hoje com a motivação anti-sionista de então.
(5) I. Kant, Die Religion innerhalb der Grenzen
der bloßen Vernunft [A religião nos limites da simples razão], Stuttgart,
2007, p.167.
(6) É crucial notar aqui que a filosofia moral de
Kant acaba por ser a extensão da sua filosofia do direito e, portanto, é central
para o projecto filosófico de legitimação do Estado burguês. Nesta conexão se
manifesta também aqui o anti-sionismo kantiano.
(7) I. Kant, Die Religion innerhalb der Grenzen
der bloßen Vernunft [A religião nos limites da simples razão], Stuttgart,
2007, p.167.
(8) I. Kant,
Anthropologie in pragmatischer Hinsicht
[Antropologia do ponto de vista pragmático],
Stuttgart, 2008, nota de pé de página, p.136.
(9) Este aprofundamento está pensado para a EXIT!
nº 10 em que devem ser apresentados de forma crítica o
anti-semitismo/anti-sionismo e o racismo kantianos.
Original
DIE FETISCHISTISCHE EIGENSTÄNDIGKEIT ANTIZIONISTISCHER IDEOLOGIEBILDUNG
in
www.exit-online.org. 24.01.2012.