I. O
sujeito de esquerda radical como empresário de si mesmo ou o extirpar do
conceito de pulsão
A
psicanálise está out; isso é especialmente verdadeiro para o radicalismo de
esquerda. Que noutros tempos a sexualidade tenha sido posta em campo contra a
socialização forçada estabelecida pelo capital, isso pode ser concebido pela
esquerda amplamente pós-modernizada na melhor das hipóteses como relíquia dum
passado distante. O amor livre, outrora eleito como símbolo de “práxis
revolucionária”, há muito foi substituído pelo “trabalho de relacionamento”
poliamoroso, e também a utopia pitoresca da existência pacífica em comunidade
foi completamente substituída por inúmeros workshops e avaliações de todos os
tipos. O conteúdo de experiência deprimente institucionalizado em tais
“autoconcepções” da própria individualidade alimenta-se de um “trabalho no
próprio eu” permanente, a valorização económica do próprio eu, enquanto
flexibilidade resistente e aquisição continuada de competências, que não por
acaso foram criadas pela esquerda (pós-)68 e adaptadas com sucesso do lado
empresarial por razões de eficiência. Se até dentro dos contextos da esquerda
radical os conflitos de dinâmica de grupo devem ser conduzidos pela supervisão
de uma “solução pacífica”, cristaliza-se a viragem da raiva socialmente
produzida contra o próprio eu como racionalização do sofrimento universal em sua
inexorável autocoerção.
O conteúdo
de experiência social desta incapacidade colectiva de lidar com o sofrimento na
sua própria existência fetichizada agudizou-se sem dúvida tanto mais desde os
anos 80 do século XX, quanto mais violentamente a crise fundamental abriu
caminho por fases. Tal como os indivíduos se tornam cada vez mais mão de obra
objectivamente supérflua, assim o “trabalho abstracto” como forma de actividade
se desloca de um espaço empresarial isolado para todo o tempo da vida, situação
em que as pessoas são mantidas a “trabalhar no próprio eu” 24 horas por dia,
“acompanhadas” por regulamentos estatais coercivos.
Esta
internalização da forma de sujeito mais uma vez consumada na pós-modernidade
rompe literalmente qualquer distanciamento em relação à determinação da forma
social, de tal modo que a lógica da valorização eonómica se expande até às
acções quotidianas dos indivíduos e às suas relações interpessoais, na forma de
coerção permanente. Se até mesmo a atenção é transformada em economia, revela-se
a colossal incapacidade de relacionamento pessoal da individualidade
pós-moderna, cujo desejo já não se dirige a pessoas concretas, mas unicamente a
exemplares intercambiáveis: Se para a pessoa o que vale é apenas o valor de
atenção que é capaz de recolher para o seu eu, e sendo preciso para a necessária
valorização da própria “economia da atenção” um cálculo flexível com diversos
sujeitos, a pulsão é em última análise dissociada como “necessidade” na forma da
mercadoria.
Correspondentemente, o sujeito pós-moderno em desintegração regateia sobre o seu
desejo como sobre um carro usado, cujo valor se pode fixar através dum processo
de negociação perene, por assim dizer o linguistic turn da práxis
quotidiana, que se vai moldando de forma cada vez mais insuportável. Se uma
pessoa faz realmente desporto com Martina, desfruta com Hans de discussões
filosóficas e proximidade física, bem como pode “fazer sexo” com Tina, então
saber se a sua própria “necessidade” em implosão pode realmente ser realizada
depende naturalmente das “necessidades” de Martina, Hans e Tina, de modo que o
“trabalho de relacionamento” poliamoroso desemboca num esforço de negociação
verbal persistente, o que amplia os laços infinitos da sua própria identidade
num processo de aprendizagem omnipresente. Aqui, a conversa sobre “fazer sexo”
não consegue esconder que a compulsividade, perseguida pelo conceito favorito de
racionalização, a “autocapacitação” (self empowerment), perdeu a sua
fixação concreta no objectivo, tal como perdeu a escolha do objecto dos seus
interesses não idênticos, que são deixados ao critério do “autotrabalho”
fundador da identidade e assim eliminados como fraquezas e falhas; uma
destrutividade que se vai sedimentando na estrutura do desejo dos indivíduos,
destrutividade para a qual, apesar de todas as “diferenças”, o conceito de
não-identidade só possui relevância como coisa a exorcizar.
Esta
destrutividade de uma crescente “dessexualização do sexo” (Adorno) coloca a
relação dos indivíduos com a sua própria sexualidade numa contradição que a
dilacera, em que os dois extremos estão numa relação dialéctica tal que se mudam
um no outro, na medida em que se condicionam necessariamente: por um lado, a
pulsão parece ser tão amplamente eliminada que violência e sexualidade dão
indícios de se tornar entre si compatíveis (1); na crise da subjectividade
androcêntrica qualquer momento erótico torna-se o momento subordinado à
sexualidade não mais capaz de adiar a pulsão, que na sua imediatidade exprime a
matriz estrutural do abuso androcêntrico. Uma tendência social com raizes num
profundo sentimento de insegurança e impotência do inconsciente androcêntrico.
Por outro lado e simultaneamente, dá para ver no “discurso” do “eu empresarial”
uma constante negação da pulsão que deve renunciar permanentemente ao seu
próprio desejo; uma reorientação da pulsão contra si mesma, que produz aquele
tipo de personagem dos formalistas passivos agressivos, que desprezam qualquer
expressão polémica, mesmo a mais justificada, como “um ataque à personalidade.”
A violência imediatamente sexualizada e a viragem formalizada da pulsão contra
si mesma condicionam-se assim reciprocamente no fundamental.
Quem,
perante uma sociedade assim deslibidinizada, fala de pulsão torna-se logo
suspeito; e, uma vez que o radicalismo de esquerda se esforça por ser ainda mais
pós-moderno do que a sociedade da maioria burguesa, isso é particularmente
verdadeiro para ele. O desenvolvimento histórico real indica que a extirpação do
conceito de pulsão caminha lado a lado com a formação do carácter social
pós-moderno, cuja estrutura do desejo há muito foi coagulada na categoria da
necessidade vazia, e assim neutralizada na interiorização absoluta de sua
própria forma de valor. Justamente porque tanto o debate pós-estruturalista com
a psicanálise como também esta em si promovem na teoria e na práxis aquela
dessexualização das estruturas individuais da pulsão, por isso o conceito de
pulsão constitui oposição aos desaforos da socialização do patriarcado produtor
de mercadorias, na era da sua crise fundamental. Este paradoxo histórico exige
uma versão dialéctica do conceito de pulsão.
II.
Narcisismo e dessexualização. Sobre a mudança do carácter social na
pós-modernidade
Para
compreender esta dialéctica da pulsão exige-se uma reflexão histórica concreta
que tenha consciência da dinâmica processual da forma da dissociação-valor.
Porque, na verdade, a purificação compulsiva do sexo aponta para um
desenvolvimento social através do qual a estrutura da pulsão dos indivíduos
sofreu aquela estranha deformação; uma circunstância que também não escapou os
representantes críticos da psicanálise. Ora, seja a tese de Adorno de uma
“dessexualização do sexo”, as reflexões de Paul Parin sobre a “volatilização do
sexual” ou a crítica de Lili Gast à “perda do sexual no discurso psicanalítico”,
todos apontam para a tendência deslibidinizadora da modernidade tardia. Esta
“dessexualização do sexo”, como ela se exprime na estrutura da pulsão
pós-moderna dos sujeitos da decadência, e também na psicanálise pós-freudiana,
converge agora no fenómeno do narcisismo.
Assim mostra
a teórica feminista Lili Gast, na sua monografia muito interessante
Narzissmus und Libido. Vom Verlust des Sexuellen im psychoanalytischen Diskurs
[Narcisismo e libido. Sobre a perda do sexual no discurso psicanalítico], como a
dessexualização da psicanálise se aplicou em primeiro lugar à formulação teórica
da figura do narcisismo. Seja a tradição da teoria das relações objectais (e da
posterior psicanálise interacionista desenvolvida a partir dela), seja a da
psicologia do ego ou, finalmente, da psicologia do si-mesmo, a que conduzem as
duas vertentes, todas elas rejeitam a teoria da libido freudiana, argumentando
que não é apropriada para a clínica da detecção e tratamento das perturbações
narcisistas da personalidade. (2) Ao entanto, assim também se perde aquele
momento dialéctico das três teorias da pulsão de Freud, como diz Gast, pelo que
o seu exigente conceito de narcisismo sofre um aplanamento no conteúdo e na
reflexão.
Se a
dimensão analítica de Gast ainda permanece bem no quadro de uma investigação por
assim dizer da história das ideias, o narcisismo encontrou a sua expressão desde
os anos 80 do século XX também na realidade. Já em 1958, o sociólogo americano
David Riesman constatava uma mudança no carácter social da classe média
americana, que já não correspondia a uma personalidade dirigida para o interior,
mas agora mais a uma dirigida para o exterior, cuja superficial percepção do
gosto se distinguia por uma certa obsessão pelo reconhecimento, e que se
dedicava apenas à comunicação interpessoal e aos seus ciclos estimulados pelos
média e pela moda, em vez de aos conteúdos e critérios objectivos. Além da
vaterlose Gesellschaft
[sociedade
sem pai] de Mitscherlich, que também pode ser entendida como uma determinação
psicanalítica precisa das mudanças percebidas por Riesman, em 1979 o
psicanalista e teórico social americano Christopher Lasch, com a sua
Zeitalter des Narzissmus
[A Cultura do
Narcisismo], cunhou
a compreensão psicanalítica da subjectividade
pós-moderna na tradição da teoria crítica.
Assim, desde
Lasch a prática clínica deslocou a imagem da doença dos/as pacientes das antigas
histerias e neuroses sexuais para as perturbações narcisistas da personalidade,
em que a sua estrutura do superego pregenital apresenta partes cada vez mais
agressivas, que seriam entrelaçadas com a necessidade sádica de punição, a qual
por sua vez se correlacionaria com uma forte idealização e fantasias de grandeza
arcaicas. Este novo carácter social furta-se muitas vezes à possibilidade de
tratamento, através dum sentimento permanente de vazio interior e duma
incapacidade fundamental de estabelecer ligação bem como relações de
dependência. Se de facto a estrutura da personalidade das pessoas narcisistas
apresenta realmente uma maturidade intelectual, que lhes permite colocar-se
magistralmente no centro das atenções, no entanto isso já não estaria em
qualquer correspondência com as partes inconscientes da vida psíquica, de modo
que, se a auto-identidade incorpora realmente conhecimentos adquiridos no
processo terapêutico, eles no entanto permaneceriam completamente exteriores ao
processo de individuação – um processo de racionalização permanente. O facto de,
desde o final do século XX, o princípio psicológico da forma do narcisismo
produzir indivíduos sociais cujo sentido de socialização é de certo modo ocupado
pelas próprias coerções fixadas no eu através da sua individuação, sendo assim
excomungado, como Lasch expõe, exprime uma faceta não necessariamente optimista
da dialéctica da pulsão na pós-modernidade.
III. A
dissolução do sujeito burguês na crise fundamental – breves reflexões sobre a
metapsicologia
Como se pode
agora identificar psicanaliticamente esta mudança histórica no carácter social
prevalecente? Será que o “envelhecimento da psicanálise” não quer dizer que ela
simplesmente não tem aqui mais nada a dar? Também neste caso se trata de
reconstruir o movimento dialéctico que consiste em que a sociedade, por um lado,
produz de facto um carácter social que já não pode ser descrito imediatamente
com o aparelho freudiano, mas que, por outro lado, apenas pode ser percebido na
base da metapsicologia freudiana. Neste aspecto trata-se de penetrar a forma
psíquica do sujeito na crise fundamental ao longo dos três planos
metapsicológicos (dinâmico, económico e tópico), sem com isso, no entanto, cair
na tentação de derivar a modificação do aparelho psíquico imediatamente da
totalidade social.
Assim, por
um lado, se as estruturas e processos psíquicos estão sujeitos a uma tendência
própria, que não pode ser entendida por meio das mudanças sociológicas, também
existe, por outro lado, um limite da mediação entre totalidade social e assunção
da forma psíquica que, num plano aliás abstracto, mostra um entrelaçamento em si
reconhecidamente quebrado entre forma objectiva da dissociação-valor e
constituição do aparelho psíquico. O próprio Freud fala da “pressão” social para
o “trabalho cultural”, situação em que nem a ontologização aí posta nem a sua
idealização na ideologia do iluminismo (“trabalho cultural”) permitem esconder
que a compulsão ao “trabalho abstracto” (Marx) e, assim, ao adiamento da pulsão
representa um pressuposto genuinamente moderno da individualidade burguesa.
Ora, segundo
Freud, como se relacionam com a “pressão para o trabalho cultural” e com o
princípio psíquico da forma as pessoas neles socializadas? Através da coerção ao
adiamento da pulsão cultural-simbolicamente mediada, é adiada a pulsão que
empurra imediatamente para a satisfação, de modo que no indivíduo se produz uma
tensão que se manifesta como dor. As representações da pulsão assim reprimidas
têm de ser postas de acordo com o mundo exterior através da mediação do eu, para
permitir ao sujeito ex post uma satisfação da tensão e, portanto, a
redução do estado de tensão; no entanto, agora em formas “adequadas à
realidade”. Este não é o lugar para pôr em relação entre si as três diferentes
teorias da pulsão em seu desenvolvimento através obra freudiana, no entanto é
preciso apontar aqui para o aspecto central dessa compulsão cultural do aparelho
psíquico para o plano económico: a coerção que assegura o adiamento da
pulsão, bem como a tensão induzida nesta via pela dor, produz algo como uma
substância psico-social cuja qualidade libidinal se trata de apagar,
em demarcação da tese da psicologia do ego de uma “energia neutra do ego”.
Entende-se que ela seja a condição económica de possibilidade de um aparelho
psíquico de algum modo “funcional” (3).
Se agora
esta substância libidinal se forma sobre a compulsão do adiamento da pulsão, o
que significa isso na era da crise fundamental em que a forma objectiva coerciva
do “trabalho abstracto” continua de facto a existir, embora a sua valorização de
conteúdo esbarre num “limite interno” (Marx)? O que significa a desvalorização
do trabalho no estado da sua obsolescência planetária para a formação desta
substância libidinal pelo adiamento da pulsão? O adiamento da pulsão através do
“trabalho cultural” continua a existir como princípio psíquico formal, enquanto
ao mesmo tempo, devido ao derretimento deste trabalho, ele já não pode ser
prestado, donde resulta a consequência contraditória de que o adiamento da
pulsão, embora seja condição do ego segundo a forma, já não resulta: a
substância libidinal, medida pela diferença entre a tensão da pulsão e a sua
descarga, é continuamente detruída pela incapacidade de adiamento da pulsão.
Esta tendência regressiva repercute-se naquela “dessexualização do sexo” que
alastra em toda a parte. (4) A virtualização peculiar da consciência
pós-moderna tem neste processo de redução da substância libidinal a sua razão,
não porventura no triunfo do estímulo mediático, ainda que ambos se condicionem
mutuamente.
Esta mistura
paradoxal de adiamento da pulsão e descarga da pulsão também leva no plano
topográfico a uma constelação do aparelho psíquico que ainda era impensável
no fim do século XIX / início do século XX: Se Freud, no seu modelo das
instâncias, ainda diferenciava entre o prazer e o mandamento (do trabalho) ou
proibição (do prazer), através do id e do superego, na pós-modernidade ambas as
instâncias se fundem uma na outra até à irreconhecibilidade na cultura de
party. No hedonismo, que floresce particularmente também na esquerda radical, o
momento do prazer é fundamentalmente subordinado à racionalização forçada,
trabalho e prazer buscam um ao outro, são cada vez mais indiferentes. O meio de
esquerda já há muito tempo que pensou estas tendências, naturalmente que de modo
perfeitamente involuntário e manifestamente afirmativo, como se diz na bem
conhecida frase do milieu: “Beber também é trabalho”. O hedonismo da
concorrência com isto apenas individualizou e totalizou o “trabalho no próprio
eu” na compulsão ao “trabalho abstracto” outrora espacial e temporalmente
limitada.
No plano
dinâmico esta dissolução do aparelho psíquico corresponde ao carácter social
narcisista. Uma vez que o eu, no processo regressivo de o superego e o id
buscarem um ao outro, é quase esmagado e perde suas funções sintéticas, que já
se baseiam sempre num conflito perdido com uma realidade fetichista, o ego
freudiano desaparece progressivamente, sem que tenha sido suplantado como
instância necessária. O resultado é um “ego pré-edipiano”, que só pode construir
a sua referência objectal mais por meio das suas “necessidades” narcisistas e
que se faz valer tanto mais fortemente como mera capa formal, quanto mais ele é
triturado no processo de mistura do id e do superego. A descarga da pulsão
sem filtros, literalmente desenfreada, como externalização violenta, e a mudança
permanente da pulsão contra o próprio ego que põe a ridículo qualquer mediação
são as duas faces da mesma moeda. Neste sentido, as técnicas do “eu
empresarial” tal como o “trabalho de relacionamento” poliamoroso reflectem a
tendência de dessexualização social geral.
Os processos
de regressão, aqui apenas rapidamente esboçados no plano económico, topográfico
e dinâmico, desembocam finalmente numa estrutura de pulsão dos indivíduos que
vem a ser concretizada nas três teorias da pulsão de Freud, muitas vezes postas
de lado como demasiado marciais ou então viradas afirmativamente. A
inexorável redução da substância libidinal, a mistura regressiva do superego e
do id, bem como a viragem não filtrada da pulsão para fora e contra o eu
narcisista convergem na pulsão de morte constituída no capitalismo que
caracteriza a deslibidinização da libido. O que se reflecte no fenómeno dos
atentados suicidas ou dos amoques não é de modo nenhum o ser desorientado de
indivíduos fanáticos, como se poderá registrar periodicamente na história da
humanidade ao longo dos tempos, pelo contrário, a sua falta de sentido, zombando
de qualquer motivação com conteúdo, aponta para o vazio já dificilmente
suportável do eu em desaparecimento, cuja hostilidade ao sentimento e à pulsão
antecipa a auto-aniquilação da humanidade que está na ideia.
IV. A
crise fundamental do “patriarcado produtor de mercadorias” (Roswitha Scholz), o
“limite interno” da subjectividade androcêntrica e o asselvajamento da
masculinidade
A regressão
social geral da pulsão de morte pós-moderna manifesta-se na sua destrutividade
em primeira linha na crise da subjectividade androcêntrica que a liberta numa
contradição insolúvel na sua própria base. Fenomenologicamente, esta crise do
androcentrismo pode ser lida na “transformação do homem em dona de casa”. A
ideia de poder autónomo constitutiva do auto-entendimento masculino fracassa no
conteúdo objectivo da crise que, como crise fundamental, exprime também a crise
final do androcentrismo. No entanto, a impotência social dos sujeitos tem de
colidir com a ênfase de soberania androcêntrica, sendo que justamente esse
fracasso constante da própria sexualidade liberta sucessivamente as suas
potências de aniquilação.
A crise da
masculinidade encontra a sua expressão representativa, entre outros, nas imagens
de masculinidade simbolizadas pelos empreendimentos da indústria cultural, que
indicam o fio condutor da deslocação do auto-entendimento androcêntrico: é o
homem de classe média branco, “normal”, que renuncia à sua família no decorrer
das várias actividades numa escalada em espiral, segue por vias mais ou menos
criminosas, para em seguida consumar uma espécie de amoque caracterizado por
violência inespecífica e irresponsibilidade auto-referenciada. O contexto
condicional desta motivação encontra-se aqui na estrutura da pulsão dos
protagonistas, tratando-se portanto principalmente de
Präödipale Helden
[heróis pré-edipianos]. Se Hans-Christian Mennenga, no livro com o mesmo nome,
diagnosticou nestes heróis em primeiro lugar uma disposição narcisista,
hedonista e masoquista, ele atinge a coisa no plano descritivo, coisa que, no
entanto, lhe escapa teoricamente por entre os dedos, por falta de um conceito de
pulsão. Ele acredita ter descoberto nos “tipos de heróis pré-edipianos” “formas
emancipadas de subjectividade masculina” que seria preciso ocupar positivamente,
mas essa crença falha logo no material cinematográfico apresentado no livro que,
para dizer o mínimo, deixa adivinhar pouco dessa positividade.
Portanto,
não surpreende que Mennenga trace, por exemplo, o rasto sangrento dos seus
heróis em várias páginas sobre A Clockwork Orange [Laranja Mecânica], sem
que estas tenham feito vacilar a sua “masculinidade emancipada”. O que o autor
aqui afirma à maneira pós-moderna – justamente passando ao lado de qualquer
contradição – é o narcisismo androcêntrico, cuja mentalidade concorrencial
hedonista testemunha tanto da sua forma violenta como da sua disposição
masoquista, acompanhadas no próprio material cinematográfico por uma repentina
erupção de sadismo, dirigido em primeiro lugar contra as mulheres. Não é por
acaso que a encenação cinematográfica apresenta os seus heróis como perdedores,
por assim dizer como vítimas que só poderiam “erguer-se” através da apoteose do
amoque masculino.
O topos aqui
explicitado da “pré-edipianidade” é geralmente bem associado por Mitscherlich à
vaterlose Gesellschaft
[sociedade
sem pai]. Mitscherlich desenvolve no seu escrito a tese de que o processo de
dissolução da família e, portanto, a sociedade estruturalmente órfã de pai
abandona os indivíduos ainda mais cedo do que o domínio mediado pelo Estado ou
pelos média, situação em que o desenvolvimento infantil e, finalmente, o
“desaparecimento do complexo de Édipo”, teleologicamente antecipado por Freud,
seria contrariado no sentido da sua suplantação. Com isto, os indivíduos acabam
por perder a capacidade de distanciamento reflexivo em relação à sua própria
socialização: se a constelação do conflito familiar, pelo menos potencialmente,
ainda dava a possibilidade de formação de um carácter social maduro, na
“sociedade sem pai” o indivíduo vê reduzidas as suas capacidades de
desenvolvimento. A “dessublimação repressiva” (Marcuse) que daí decorre liberta
assim formas de violência que a família burguesa nunca tinha conhecido.
Se
compararmos a classificação analítica do carácter social pós-moderno, tal como
ele é percebido pela teoria cultural pós-moderna (Mennenga), por um lado, e pela
teoria crítica (Mitscherlich), por outro, evidencia-se uma interpretação
contraditória, mas que ainda assim apresenta carácter prototípico: enquanto o
positivismo pós-moderno não é tão estúpido que ainda atribua uma “masculinidade
emancipada” à subjectividade de crise androcêntrica forçosamente sem limites, a
teoria crítica refere-se de facto às tendências de barbarização do narcisismo
pós-moderno, a maior parte das vezes, no entanto, no terreno do sujeito fordista
há muito ultrapassado, cuja imagem anacrónica da família é posta em campo como
talvez a melhor alternativa. Enquanto uns afirmam o historicamente surgido, em
toda a sua destrutividade, outros procuram depois resistir a este que veio a
ser, em nome de um passado.
V. Pré-edipianidade versus
pós-edipianidade: Para a crítica de uma oposição na lógica da identidade
Nestes padrões opostos de
interpretação, o estado de crise do sujeito pós-moderno contrai-se de facto na
dicotomia “pós-edipianidade capaz de lidar com os conflitos” versus
“pré-edipianidade emancipatória”. O que aqui está caindo aos pedaços em
polaridades opostas é a simultaneidade histórica contraditória da forma do
complexo de Édipo, que numa “sociedade sem pai”, no entanto, já não pode ser
atravessada em termos de conteúdo, ou seja, em termos determinados pela pulsão
e, portanto, regride à pré-edipianidade. A mistura da pulsão e da proibição, ou
da pulsão e da “coerção ao trabalho cultural” (Freud), o verdadeiro aniquilar da
substância libidinosa da pulsão, a falta de limites narcisista em sua negação do
inconsciente, em suma, a dissolução dos limites do sujeito burguês aponta no
plano tópico, económico e dinâmico para uma dinâmica destrutiva que não consegue
deixar as mónadas impotentes da concorrência nem em si nem com os outros,
surgindo à escala social total uma sucção em que os indivíduos se consomem
constantemente uns aos outros – uma dinâmica de pulsão de morte induzida pela
crise, a cuja autodestrutividade apenas se associa muitas vezes a destrutividade
do estranho.
Se não há dúvida que aqui
também se tem de declarar luta à negação culturalista da pulsão de proveniência
pós-moderna, tão pouco se pode contrapor no decurso dela o antiquado romantismo
familiar ao “asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias” (Roswitha
Scholz). A pulsão não pode ser lançada borda fora ingenuamente nem pode ser
apostrofada também ingenuamente como uma abstracta “lembrança da natureza no
sujeito”, situação em que justamente a sua hipostasiação a-histórica e
aparentemente assexuada aponta para a infraestrutura androcêntrica possuída pela
teoria crítica até hoje. Resta um domínio temático da elaboração teórica da
crítica da dissociação-valor que é preciso penetrar, despindo as categorias
psicanalíticas da unilateralidade contraditória que elas experimentam na
referência mútua de positivismo pós-moderno e teoria crítica no sentido mais
amplo, para serem mediadas com o seu contexto condicional historicamente
específico, o qual apenas ele constitui essencialmente a respectiva formação
concreta. Neste contexto, a questão de saber se será de aprovar o
desaparecimento do ego freudiano ou se, pelo contrário, será de fortalecê-lo
como instância civilizadora evidencia-se como supérflua; nem a mistura forçada
do superego e do id, com o desaparecimento assim induzido do ego, podem
permanecer por muito tempo, nem pode regressar o velho eu do fordismo ou mesmo
do século XIX.
De uma maneira ou de outra,
ambas as grelhas de interpretação do carácter social pós-moderno, partindo das
suas premissas, acabam por desembocar na afirmação do “patriarcado produtor de
mercadorias”; umas vezes a partir do ponto de vista do presente, outras vezes a
partir do ponto de vista do passado. Por isso ambas têm de estar longe de
entender o narcisismo pós-moderno como princípio psíquico formal dos sujeitos de
crise, que se prepara para desmontar cada vez mais qualquer barreira
psico-social inibidora na luta da concorrência universal coercivamente
individualizada. O momento dialéctico de verdade do “envelhecimento da
psicanálise” só pode ser preservado tendo como pano de fundo a base teórica de
uma teoria radical da crise.
Uma reformulação da psicanálise
crítica do androcentrismo à altura dos tempos ver-se-á assim, apenas à primeira
vista paradoxalmente, perante a tarefa de fazer frente à terapeutização da
sociedade com base nas técnicas do “eu empresarial”, que também para o
radicalismo de esquerda degeneraram num Existencial arreigado. A persistência
com que ele se lança em adequadas “mímicas e gestos”, “técnicas suaves” e
maneiras elegantes, quais códigos de milieu, ilustra a negação
pós-moderna da pulsão em sua agressividade já mal disfarçada. A exigência
latente, que paira em todos os campos, da resolução dos conflitos o mais limpa
possível corresponde à coerção autoritária da harmonia de uma classe média cujas
diversas facções gostariam de se reconhecer mutuamente na sua degradação
ideológica com um beija-mão, desde que permanecessem apenas entre si. O tipo de
carácter aqui corrente, que põe fim a qualquer discussão, por mais controversa,
com um “estamos de algum modo todos do mesmo lado”, ou executa as suas reservas
imaturas pela via organizacional formal, porque foge do debate pessoal como o
diabo da cruz, ou então, no decorrer de uma discussão, perante uma gargalhada do
parceiro de conversa sobre as suas observações, sente-se de tal modo ofendido
que já não quer continuar a discutir, tal tipo representa o verdadeiro flagelo
do radicalismo de esquerda e o coveiro de qualquer contexto de crítica radical.
Que tantos fanáticos do
computador pessoal também possam no futuro enganar-se no caminho e ir parar ao
contexto da crítica da dissociação-valor, deriva não só da omnipresença deste
carácter social, mas além disso também da completa falta de interesse que essas
pessoas mostram pelo conteúdo em si e por si, razão pela qual a crítica teórica
no seu contexto interno constitui na melhor das hipóteses um motivo de
“interesse” secundário. Uma vez que para eles cada ligação vinculativa a um
objecto específico permanece à partida um anátema, eles usam o respectivo
contexto de grupo em primeira linha para realizar os seus próprios pensamentos
para eles mesmos pouco claros, apesar de sobre o seu conteúdo fundamental
secretamente não saberem nada desde o início. Justamente aqueles contextos que
não foram dizimados totalmente pela corrente da indiferença pós-moderna,
poderiam agora tornar-se o objecto preferido destas pragas, por ser preciso
injectar o nivelamento narcisista de qualquer conteúdo principalmente na crítica
radical, cujas barreiras com base na crítica da ideologia à sua fantasia de
omnipotência com absoluta ausência de limites e total corte das inibições só
poderiam estorvar e correspondentemente têm de ser cilindradas em conformidade.
Por isso, só pode ser mais uma
tarefa da teoria crítica da dissociação-valor confrontar o sujeito de crise (da
esquerda radical), na sua impotência negada, com a etiologia sócio-histórica
precisamente dessa impotência. Em tempos em que o corpo, como recipiente da
força de trabalho, se tornou objectivamente supérfluo e os indivíduos transferem
imediatamente os seus ímpetos pulsionais para o “trabalho no próprio eu”
coercivamente racionalizador, a insistência no conceito de pulsão significa
tomar a impotência socialmente construída como ponto de partida da crítica
radical. Insistir na pulsão, portanto, é não desistir da corporalidade dos
indivíduos tornada objectivamente supérflua. É justamente nisto que consiste a
dialéctica da pulsão na pós-modernidade.
Bibliografia:
Lilli Gast,
Narzissmus und Libido. Vom Verlust des Sexuellen im psychoanalytischen Diskurs
[Narcisismo e libido.
Sobre a perda do sexual no discurso psicanalítico],
Tübingen, 1992.
David
Riesman, Die einsame Masse, Hamburg, 1958
[A Multidão Solitária,
1971; orig.:The Lonely Crowd,
1950].
Christopher Lasch,
Das Zeitalter des Narzissmus, München, 1982
[A Cultura do
Narcisismo, 1983: Orig.: The culture of narcissism,
1979].
Alexander Mitscherlich,
Auf dem Weg in die vaterlose Gesellschaft
[A caminho da sociedade sem pai],
Stuttgart, 1964.
Hans-Christian Mennenga, Präödipale Helden. Neuere Männlichkeitsentwürfe
im Hollywoodfilm [Heróis
pré-edipianos. Novos esboços de masculinidade no cinema de Hollywood],
2011, Bielefeld.
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(1) Com isto de modo nenhum se
diz que a pulsão formada androcentricamente não tenha exigido sempre uma
renúncia forçada, mesmo em épocas anteriores do capital. Esta relação, no
entanto, agrava-se na pós-modernidade.
(2) Por muito diferentes que
possam ser neste caso os fundamentos epistemológicos destas três correntes
dentro da (pós-)psicanálise, também se pode ver nos escritos de seus teóricos
marcantes – Lacan, Hartmann e Kohut – que todos eles – em nome da racionalização
do inconsciente da teoria linguística, da insistência na adaptação e da energia
neutra do ego ou mesmo de um si-mesmo essencial em desenvolvimento
independentemente da estrutura da pulsão – rejeitam o conceito freudiano de
pulsão ou modificam-no até à irreconhecibilidade.
(3) As reflexões que se seguem
referem-se à forma androcêntrica de sujeito. Até que ponto as categorias de
Freud em geral são capazes de reclamar validade para a forma feminina é questão
que não pode ser derivada das considerações seguintes, mas requer uma análise
separada, impossível de ser feita aqui.
(4) Esta redução da substância
libidinal tem pouco a ver com o processo de desvalorização da substância
económica. A identidade conceptual não deve fazer esquecer que o aparelho
psíquico está sujeito a mecanismos completamente diferentes. Logo que o
resultado abstracto de uma redução da substância económica e libidinal é
registado sem ter em conta o contexto condicional de cada uma, a dinâmica
interna da forma psíquica só pode ser derivada da objectividade social, com o
que a sua peculiaridade genuína tem de se perder.
Original
Die Dialektik des Triebs in der Postmoderne
in
www.exit-online.org
06/08/2014. Tradução de Boaventura Antunes