Sobre
os desvios do tema, a importância da distinção entre fetiche e ideologia e a
“dialéctica da política”
O texto
dá uma visão (selectiva) do andamento desse evento que teve lugar em Berlim de
20 a 22.05.2011 e apresenta alguns tópicos de conteúdos. O campo temático
“crítica da ideologia”, que teve uma forte presença, com representantes da “Nova
Escola de Frankfurt” ligada a Jürgen Habermas, recebe um tratamento mais
abrangente. Numa curta discussão teórica do tema, chama-se a atenção para as
armadilhas de uma posição que, apesar de assumir alguns momentos avançados do
“Marx esotérico”, acaba por se manter afirmativa quanto à sua solução da teoria
da negociação. Demonstra-se que um elemento essencial desta solução consiste na
identificação do fetichismo com a ideologia e insiste-se coerentemente na
importância de uma clara separação entre a crítica da ideologia e a crítica do
fetiche: a ambas devem ser atribuídas funções diferentes na teoria do
conhecimento e na teoria social. (Síntese da Revista EXIT!)
Entre
conferência académica e evento * Introdução e desvios do tema * (Sem) surpresas
com e sem género * O problema central da conferência: A determinação da relação
entre crítica do fetiche e crítica da ideologia * Para concluir: sobre a
(crítica da) política
Entre conferência
académica e evento
De 20 a 22 de Maio de 2011
realizou-se em Berlim a conferência “Re-Thinking Marx” que surgiu com a
pretensão não só de voltar a trazer Marx para a ribalta, mas também de
repensá-lo. Da perspectiva do quadro teórico da crítica da dissociação e do
valor tudo isso parece desde logo muito promissor (daí que eu tenha participado
na conferência). Ao mesmo tempo, perante as muitas promessas quebradas da
elaboração teórica de esquerda, especialmente na sua variedade académica, é
preciso afinal dar uma boa margem para dúvidas. Gostaria de apresentar não só um
breve relatório (sem dúvida selectivo) da minha percepção dos acontecimentos,
mas também uma breve discussão sobre alguns dos problemas teóricos centrais.
Em primeiro lugar sobre a
organização: A conferência foi obviamente planeada a longo prazo e
profissionalmente. Isto ficou expresso não só na organização relativamente sem
atritos, mas também já no alinhamento. Estiveram presentes muitas celebridades
da recepção académica de Marx, como Wendy Brown, Etienne Balibar, Michael
Heinrich, Alex Demirovic, Axel Honneth, Oliver Marchart e, finalmente, Moishe
Postone; além disso, também algumas intelectuais próximas do marxismo, como a
geógrafa humana Saskia Sassen e a teórica pós-colonial Christine Löw. Portanto
não só esteve presente um espectro amplo da esquerda académica alemã, mas a
política de convites foi muito além das fronteiras linguísticas. Marcaram
presença especialmente o debate em inglês e também algumas posições francesas, o
que contribuiu muito para a aquisição de conhecimentos.
A filósofa de Berlim Rahel
Jaeggi apareceu como “eminência parda” da conferência e também terá tido
evidentemente muito a dizer sobre a configuração do conteúdo da conferência.
Isso apenas em retrospectiva ressalta claramente do programa, pois naturalmente
muitos nomes e posições não eram conhecidos antecipadamente. A orientação era no
sentido da teoria e da crítica da ideologia, sendo que temas como a alienação e
a questão de uma leitura “humanista” de Marx constituíram um foco claro e, não
menos importante, a fracção com posições mais ou menos inspiradas por Hegel
esteve também presente mais do que é habitual.
Para apanhar um pouco da
atmosfera: esteve presente um público muito grande e de composição muito
variada, incluindo gente muitos jovem e “multicor”. Isso contribuiu para uma
atmosfera agradável, entre o intercâmbio intelectual, reuniões em mini-cafés em
autogestão e programas culturais alternativos entre os eventos, tendo sido no
conjunto bastante variada. A impressão era por vezes mais a de um grande
encontro de jovens de esquerda interessados em teoria, sem o deleite coercivo da
agitação política nem fracionamento claro. É claro que também se juntaram
ocasionalmente as habituais velhas esquerdas, por exemplo quando apareceram
honoráveis marxistas da RDA (sic) e as suas “comunicações faladas” (vulgarmente
conhecidas por co-apresentações) tiveram de ser aplaudidas vigorosamente até ao
fim.
Apesar dessa impressão
positiva em geral uma coisa era clara (e nisto se expressou talvez mesmo uma
secreta reminiscência da esquerda da RDA): foi traçada muito claramente uma
fronteira entre a “massa engajada” e a “elite académica”. Manter de pé a
hierarquia entre os simples participantes e o círculo dos conferencistas
constituiu aparentemente um desiderato da organização: os bancos da frente
estavam reservados para os/as (re)presentantes, eles entraram no período –
excepcionalmente conciso – de debate com o público com o microfone quase que
exclusivamente na mão, sendo que a necessidade de distinção individual também
foi servida com bonitas placas de identificação e, não menos importante, por uma
“área VIP” para os/as “verdadeiros/as” participantes.
De qualquer maneira eram
sobretudo os apresentantes que podiam distinguir-se dos outros pela aparência
reservada e formal (inadequada às temperaturas exteriores). Neste contexto se
encaixa naturalmente a marca estruturalmente masculina desta forma académica –
havia claramente mais homens nos diversos painéis de discussão (excepto, claro,
nos momentos teóricos “dissociados” de género & Cª) e o “pendor masculino”
articulou-se muito mais claramente no clima das discussões, aparentemente não
muito acolhedor para as mulheres – durante todo o Congresso (para além da sessão
sobre o género) apenas consegui ver um pedido de palavra de uma mulher. Isso não
parecia incomodar ninguém, nem as conferencistas mulheres, nem as mulheres
presentes paritariamente na plateia. A maioria dos homens parecia já estar
integrada em círculos distintos, o que provavelmente está relacionado não só com
a segmentação temática dos focos de interesse, mas sobretudo reflecte muito bem
a estrutura de associações masculinas informais académicas. Mas isso
provavelmente não é de admirar, afinal o mesmo se passa também na elaboração da
teoria crítica não académica.
Introdução e desvios do
tema
A introdução ao tema da
conferência foi feita com um discurso de abertura de Rahel Jaeggi. Embora ela
salientasse a relevância da discussão (filosófica) de Marx independentemente das
conjunturas sociais, não se podia evitar a impressão de que ela não via o
optimismo reinante justificado por si só – a relevância de Marx redescoberta em
face da crise foi por ela tão destacada como foi elogiada a nova descontracção
(que a acompanha). “Re-Pensar Marx” é, portanto, algo que tem a ver com as
conjunturas históricas. Esta importante avaliação é significativa não só para o
evento específico – ela deve incentivar toda a teorização crítica a um maior
esforço e a novas tentativas de cooperação. Mas também se fez notar
inequivocamente o foco central teórico desta conferência, que não em último
lugar tem a ver com a ruptura habermasiana com a teoria crítica (ver mais
abaixo): a questão da relação entre uma crítica “social” e uma crítica
“normativa” da sociedade, em última análise o escândalo da alternativa entre
exploração e alienação. Isso certamente representa um modelo interessante e
consistente apontado para uma conferência sobre Marx, que não em último lugar
sabe também da contraditoriedade das actuais linhas de recepção. A fasquia foi
portanto colocada alta.
Ainda que se tenha dado valor
a um debate exigente quanto ao conteúdo, houve obviamente alguns desvios do
tema, que gostaria de começar por abordar. O caso mais flagrante foi o de Saskia
Sassen que não apenas acentuou desde o início a superficialidade da própria
posição no seu “diálogo com Marx”, mas também provou que estava realmente bem
fora dos debates – a sua crítica de Marx visava o “entendimento da política” e o
“internacionalismo” de Marx. Numa singular leitura unilateral de Marx – a base
do debate seria nas suas próprias palavras o Manifesto Comunista – passou
na realidade completamente ao lado do que poderia ser uma recepção produtiva de
Marx e limitou-se no essencial à constatação puramente fenomenológica e estática
de que o Marx do Manifesto não entendeu o político, designadamente o
Estado-nação e os seus critérios, tão bem como Sassen, que está a ver
desaparecer as fronteiras do que é nacional no mundo actual. Independentemente
do resultado da análise de Sassen o seu discurso teve pouco a ver com Marx e
ainda menos com a teoria inspirada por Marx.
Igualmente decepcionante para
mim foi também a intervenção de Étienne Balibar. A sua palestra foi certamente
inspirada em Marx e nessa medida não falhou (talvez) o tema. Mas – apesar da
grande atenção e dos apontamentos esforçados – não consegui apanhar o fio da
meada nem penetrar a quintessência do que foi dito. Isto pode ser devido à minha
falta de capacidade de entender (só pude acompanhar de ouvido); em todo o caso
fiquei com a impressão de um conglomerado bastante confuso de todos os aspectos
que é possível abordar em torno do campo “Estado-mercado-classe”. Para mim
restou apenas o claro reconhecimento da actualidade do tema classe. Na deriva
através de diversos aspectos pós-políticos, da teoria do Estado e até mesmo da
fenomenologia da crise, Balibar pretendeu salvar de qualquer modo o papel
especial da luta de classes. Apesar da máxima capacidade performativa da
apresentação, com um comportamento tipo “teórico velho, teimoso e amigo” que
conseguiu muito bem trazer alguns pontos de simpatia – Balibar mostrou a sua
solidariedade com a “juventude em luta” em Espanha e gostaria de ver a sua
palestra transmitida para lá – o resultado em temos de conteúdo foi para mim
bastante escasso.
(Sem) surpresas com e sem
género
Uma surpresa foi a
apresentação de Wendy Brown. Ela convenceu com uma referência profunda ao Marx
“esotérico” e procurou fazer paralelos entre a crítica da religião como projeção
das relações sociais e a dimensão projetiva do fetichismo da mercadoria. Ao
contrário de muitos outros oradores, ela estabeleceu marcadamente a diferença
entre a crítica do fetiche e o meramente ideológico – enquanto as ideologias são
ideias falsas, as relações fetichistas baseiam-se numa lógica própria, bem
fundamentada nas condições naturais, que produz projeções semelhantes às
religiosas e impõe a distinção entre as dimensões analítica e crítica, física e
teológica. Brown antepõe assim desde o início a um entendimento positivista da
“tangibilidade” da mercadoria a dimensão reificada das relações sociais que
levam à mercadoria. Para ela, portanto, a conceptualidade religiosa na descrição
do fetichismo de Marx não é uma mera metáfora, mas representa uma necessidade
heurística para poder compreender as relações sociais. Sem dúvida, esta ênfase
excessiva no caráter religioso da socialização capitalista é questionável. No
entanto, o impulso parece-me ir numa direção interessante e ser bastante
relevante por exemplo para o debate iniciado na EXIT sobre “relações de fetiche
pré-modernas (= baseadas na religião)” e a relação entre capitalismo e religião.
Brown também foi interessante na abordagem específica da teoria do Estado que
pretende fundada na crítica do fetichismo. O Estado foi por ela revelado
essencialmente como uma mistificação de soberania humana e, portanto, criticado
como forma de comunidade “de outro mundo” e imaginária, afinal alienada. Seria,
portanto, de criticar desde logo a ideia normativa de uma de centralização ideal
da soberania num centro. Brown continua, sem dúvida, próxima de uma definição de
Estado bastante associativa, derivada, que acaba por ser em última análise ainda
“economicista”, na medida em que transfere bastante ingenuamente momentos do
fetiche da mercadoria para o político. No entanto, mesmo aqui, valeria
certamente a pena um olhar mais detalhado à obra de Brown.
Também a questão do género em
si foi, naturalmente, tratada num painel próprio (tanto menos ela atravessou a
discussão geral). A sessão revelou-se menos nova e interessante do que eu
esperava inicialmente – em todo o caso de modo nenhum atingiu o nível da
elaboração teórica do marxo-feminismo anterior à “viragem pós-moderna”.
A abertura foi feita pela
professora inglesa Stevi Jackson. Ela disse representar um “feminismo
materialista” que nas suas próprias palavras se coloca em oposição aos
“feminismos psicanalíticos da diferença” e que Jackson vê hoje em ascensão. A
palestra foi, então, essencialmente uma recapitulação da via evolutiva do
“feminismo materialista”, que de certo modo se posiciona entre os feminismos
marxistas e os feminismos da diferença. Os figurantes são aqui, ao lado de
Simone de Beauvoir, entre outras a escola francesa em torno de Monique Wittig e
Christine Delphy. A posição poderia ser resumida assim: A teoria do valor de
Marx (por exemplo, o debate sobre o valor do trabalho doméstico) não interessa
nada porque é muito “técnica”; há, portanto, um distanciamento dos feminismos
explicitamente marxistas; questões do social geral interessam pouco, mas já
interessam momentos dos eixos (políticos) de dominação e desigualdade;
procura-se a demarcação do feminismo pós-moderno/pós-estruturalista, mas também
surgem alguns pontos de contacto; são especialmente de relevância questões da
(construção de) sentido e da subjectividade. Esta posição de uma dupla
demarcação face às posições do feminismo marxista e do feminismo da diferença
para mim não era conhecida e é de certo modo instrutiva, por exemplo perante a
observação sarcástica de Jackson de que muitas das representantes mais
convencidas de uma posição “técnica” marxista mudaram rapidamente para o
pós-estruturalismo após os debates da década de 1970. Interessantes são aqui
entre outros os momentos da teoria do sujeito do “feminismo materialista”
apresentado. Ele salienta de modo radical a construção social da binariedade
sexual, bem como a relatividade histórica da distinção entre homossexualidade e
heterossexualidade. Mas também se apaga de igual modo a materialidade das
relações sociais que – tal como as relações de classe – mostram uma forte
tendência para persistir. Sobre a fundamentação desta persistência na teoria
social Jackson não disse nada do que se esperava, sendo no entanto bem
reveladora a insistência na estrutura hierárquica e material da construção
social do género, bem como a ligação deste com a dimensão da heterossexualidade.
Ao contrário das abordagens pós-estruturalistas, que caprichavam no facto da
diferença em si e na mera “heteronormatividade”, torna-se assim possível uma
perspectiva realista sobre a sociedade, que não reduz o significado, a
subjectividade e a “vida quotidiana” ao puro performativo imediato. Mesmo se
maiores esboços de crítica da ideologia, como por exemplo a crítica de Wittig de
um “contrato heterossexual”, representam em última análise heurísticas limitadas
e precisam de ser de novo ligados à terra com a teoria social, eles apresentam
sem dúvida uma boa base para o desenvolvimento não só da dialéctica crítica, mas
também de uma crítica das posições pós-estruturalistas: pois, como Jackson pôde
fazer crer, a questão não é só que o construtivismo do género de Judith Butler
se baseia fortemente numa recepção de Wittig e do feminismo materialista
francês; a leitura de Butler é ela própria muito unilateral e
descontextualizada, o que pode ser censurado novamente a toda a elaboração
teórica construída na base dela. A moral da história, no entanto, foi um pouco
morna: com toda a sua crítica materialista Stevi Jackson chegou afinal mais uma
vez ao “senso comum” dos debates feministas mais recentes (mais ou menos locais)
– seria necessária uma “análise interseccional”, que não se limitasse às
identidades, mas tivesse em vista também os eixos materiais da dominação; e,
finalmente, que ficasse feliz por não mais poder ser feito jus à pretensão de
grandes teorias “totalizantes”. Paradoxalmente, então, os entrelaçamentos dos
momentos de dominação devem ser examinados de modo materialista, não sendo no
entanto esclarecidos no “todo”. O resultado – o orgulho no ecletismo e na
elaboração teórica “pragmática”, como mandam as regras – também consegue afinal
ser pouco convincente.
Com Terrell Carver – o único
homem no painel – a coisa não era necessariamente mais promissora. Carver é
obviamente um cómico apaixonado, que adora dar um toque cool de
aventureiro ordinário – o estilo da sua apresentação estava de acordo com isso e
tal comportamento era um pouco embaraçoso perante um auditório predominantemente
feminino. Também os resultados apresentados de uma “gendered critique of
political economy” foram pouco mais que anedotas divertidas. O professor de
Bristol especializado em hermenêutica tentou retratar Marx como ele “realmente
era” “como pessoa”. Abstraindo da tese um tanto ousada de que Marx não era
nenhum filósofo ou teórico da economia, mas apenas e só “jornalista
politicamente motivado”, a conversa pouco foi além de regurgitar o ultrapassado
(a perspectiva da reprodução não aparece em Marx) e o absurdo (“Aspectos como a
escravidão na família e a opressão da mulher foram mencionados por Marx, num
ponto na página tal de O Capital – pelo menos assim poderia ser
interpretado...”). No conjunto Carver não conseguiu decidir se queria defender
Marx ou acusá-lo. Apenas observações esporádicas para lá do seu verdadeiro tema
e aparentemente retiradas dos seus trabalhos sobre a “masculinidade da economia”
e os efeitos daí derivados pareceram potencialmente interessantes – para uma
avaliação mais precisa, no entanto, eles foram realmente muito escassos.
Realmente horrível (ou
incrivelmente ridícula) foi a última exposição do painel, apresentada em
conjunto por duas “economistas feministas”, Esra Erdem e Ceren Özselçuk –
personalidades-autoras divididas tornaram-se aparentemente chiques desde JK
Gibson-Graham (1). Ambas estiveram muito próximas no conteúdo da “economia
crítica pós-estruturalista” das autoras colectivas australianas. Numa mistura
colorida de momentos de crítica da ciência, políticos, económicos e de teoria do
sujeito, elas pugnaram por uma reorientação epistemológica da crítica da
economia, que rompa finalmente com a posição “reflectida, realista”. A palavra
mágica, portanto, foi a contingência, que deveria ser encontrada em toda a
parte. Da teoria de Marx simplesmente terá de se retirar aos trambolhões o
programa de uma “política pós-capitalista”, desde que ele seja lido na
“diferença e contingência” (até rima!). Numa passagem superficial através de
O Capital, cuja profundidade seria provavelmente ultrapassada por qualquer
participante de um círculo leitura de Marx após duas ou três sessões, elas
chegaram a uma conclusão revolucionária sobre a teoria das classes: a “classe”
não devia continuar a ser vista apenas através dos olhos do capitalismo. Porque
na verdade a classe foi construída apenas pelo pensamento marxista como
tal. Efectivamente nunca pode ser dada forma final à classe, a
“cartografia da classe” serve apenas como “guia” para algo completamente
diferente – ou seja, para articular a diferença de classe. Assim, classe
é apenas a “tecnologia” para procurar diferentes organizações de classe (sic!).
Segue-se que há também “muitas economias”, a diversidade económica é um facto e
falar de “totalidade capitalista” já não passa de um disparate, teria mesmo de
ser entendido como “violência epistémica” – e com isto poderíamos também
considerá-las ligadas a outras abordagens pós-estruturalistas. Violento, pelo
menos em comparação com uma leitura “contingente, não-determinista” de O
Capital. Ousadamente Özselçuk/Erdem apresentaram de seguida uma “leitura
determinista” em demasia, pela qual pediram desculpas de imediato, ou seja, a
seguinte fórmula congenial:
M – C ...P ... C'- M'
M representa aqui o mercado,
C o capital e P a produção. As conferencistas não conseguiram transmitir muito
bem o que esta fórmula havia de trazer exactamente além de uma reinterpretação
“contingente” de Marx. O que ela representa (se se pensar que tudo,
provavelmente, tem de ser reinterpretado contingentemente pelo menos mais uma
vez), poderia no entanto ser assim enunciado: o circuito do capital não é uma
lógica invariante não mediada – ele formula uma “metamorfose do capital” (sic),
na qual a criação de valor nunca ocorre fluente, mas constrói “contingentemente
sobre tecnologias sociais”. Portanto, não há uma lógica essencialista da
reprodução capitalista; apenas contingência. E o melhor vem no fim: há outras
formas de organização económica. Porque os “fluxos de mais-valia” também podem
ser comandados de modo diferente, desde que a “binariedade entre o capitalismo e
a sua aparência” seja desestabilizada. Significativamente a palestra encerrou
com uma referência a Louis Althusser, cuja inovação teórica foi lançada contra o
“feminismo marxista” e a sua perspectiva sobre o trabalho doméstico que é
importante (porque cria uma esfera “autónoma e diferente”), mas depois de algum
modo chata: A partir da “re-reprodução” (sic) capitalista, a perspectiva vira-se
para a “reprodução social”. Através desta mesma perspectiva seria também desde
logo estabelecido o “acto performativo” de mudar o foco para o “mundo
imaginário”, a utopia que se quiser – fazer política à maneira
pós-estruturalista, quase! Como isso poderia funcionar foi depois esclarecido em
resposta a uma pergunta da plateia com base num exemplo entusiástico: Há
realmente nos EUA algumas empresas que decidiram em conjunto aplicar uma parte
dos seus lucros com o propósito de criar cooperativas independentes. Ora quem
está inclinado a considerar isto como forma bastante comum de “caridade” nos
Estados Unidos não apanhou nada do potencial utópico da coisa: porque essas
empresas fazem assim algo que em si já contradiz o “imaginário capitalocêntrico”
– elas assim simplesmente põem uma parte da mais-valia fora da “metamorfose do
capitalismo”! Isso é algo inteiramente novo e deveria definitivamente constituir
uma lição para todos os que ainda continuam a “construir de modo determinista” a
reprodução capitalista. Sem comentários...
O problema central da
conferência: A determinação da relação entre crítica do fetiche e crítica da
ideologia
O núcleo verdadeiramente
substancial desta conferência não se conseguiu assim encontrar no
desenvolvimento feminista da teoria de Marx. Uma aproximação a ele pode, pelo
contrário, ser desenvolvida pela intervenção certamente mais simpática, a de
Moishe Postone. De destacar Postone não só pelo conteúdo da sua comunicação – os
preliminares de uma perspectiva crítica do fetichismo sobre a totalidade
capitalista (que eu conhecia, é claro, e certamente não tenho aqui de
desenvolver mais); mas também porque ele, apesar do conhecimento fundamental do
conteúdo, conseguiu ainda cativar e, não em último lugar, arranjou maneira de
fazer uma oportuna intervenção discursiva fundadora do desassossego no “senso
comum” da conferência. Para além da crítica clara do marxismo do movimento
operário, impressionou particularmente a declaração límpida sobre a crítica do
fetiche e o postulado de que esta não é redutível à crítica da ideologia.
A ênfase numa dialéctica negativa distintiva, que implica o foco sobre o
processo, foi um importante contraponto teórico-científico a outras abordagens,
que representaram entendimentos mais ou menos estáticos (incluindo dos muito
presentes filósofos de inspiração directamente hegeliana, que não vou mencionar
aqui). Através de Postone o “outro” já foi sempre implicitamente abordado –
ainda que naturalmente não de forma explícita; uma certa inclinação economicista
também já lhe foi afinal censurada pela parte da EXIT. Em todo o caso isto
fornece abordagens para uma revisão crítica da dissociação. De qualquer modo
interessante e ainda muito pouco elaborada é a tese dos dois tempos do
capitalismo (concreto e abstracto), que por sua vez esperará ainda uma
interpretação crítica da dissociação. Sem dúvida que para o projecto da teoria
crítico-dialéctica também vale a pena reforçar os laços com Chicago – o que eu
infelizmente descuidei, dada a aparência muito respeitavelmente professoral de
Postone.
O papão declarado do
Congresso, Axel Honneth, demarcou-se claramente do seu colega de painel Postone,
não só teoricamente, mas também na forma de ataques bastante directos. No
entanto, ele em certa medida também é responsável pelo “consenso secreto” da
conferência que à primeira vista estabeleceu alegremente um contraponto aos
debates académicos hegemónicos, que estão muito longe de temas como “ideologia”,
“alienação”, “reificação”, “dialéctica” e das questões da herança hegeliana de
Marx. A apresentação de Honneth intitulava-se significativamente “A moral no
capital” (o que também rima) e deveria realmente chamar-se antes “A moral contra
o ‘capital’”, ou talvez até mesmo “Com moral pelo capital “. A questão para ele
era uma ruptura bem determinada, não epistemológica, na obra de Marx, ruptura
que o “marxismo ocidental” supostamente teria trazido à luz do dia – a distinção
entre o propósito moral dos actores colectivos e os “imperativos da função
económica”. Para Honneth por trás desta distinção não está apenas o contraste
entre duas lógicas de acção, ele admite também pressupostos teóricos
completamente diferentes dos de “Marx crítico da economia”. Estes por sua vez
são justificados na “conflitualidade normativa de todo o social” e expressos em
eventos históricos específicos. Por trás estaria a temporalidade diferente do
económico e do moral, uma temporalidade processual por um lado e uma
temporalidade de eventos por outro lado, uma temporalidade afinal síncrona
contra outra em si diacrónica. No 18 Brumário de Louis Bonaparte e nos
escritos sobre a Guerra Civil em França Honneth pretende ter descoberto também
em Marx traços do não económico – de repente aqui se agitariam em “batalhas
políticas” não só máscaras de caráter, mas também “actores/actrizes
normativos/as”. Através da conflitualidade política para a definição de normas
aceitáveis a própria história do movimento operário provaria o lado eventual dos
processos históricos, em que os significados em dependência recíproca também
poderiam mudar. Em contraste, os capítulos históricos e políticos d’ O
capital estariam construídos de modo linear e desde o início marcados por
interesses uniformes essencialmente limitados aos dois sujeitos colectivos
“capital” e “proletariado”.
Na segunda parte da sua
apresentação Honneth sonha com o que aconteceria se Marx tivesse seguido também
n’ O capital “as conclusões de seus escritos histórico-políticos”. Ele vê
O capital como uma mera exposição crítica da economia política dominante
e do seu “cálculo do proveito”, que teria de ser completado por uma politização
e sociologização. Trata-se portanto – e aqui Honneth começou definitivamente a
repetir-se mais e mais – da “conflitualidade normativa” que permeia até mesmo a
relação de capital. O “conceito utilitarista do actor económico” teria que ser
reinterpretado de modo que ele mesmo pudesse estabelecer o seu próprio interesse
apenas na forma de normas e por consequência não pudesse finalmente prevalecer
aqui mais qualquer uniformização. Bastante incoerentemente isto é de seguida
fundamentado recorrendo a um paradigma por sua vez realmente bastante
“económico”, a perspectiva institucionalista das “variedades de capitalismo”
(vulgarmente “capitalismo renano vs. anglo-saxónico). Não existe portanto o
capitalismo, para isso seria necessária uma “conclusão na plasticidade normativa
dos interesses económicos” (sic). Naturalmente, segundo Honneth, a
“temporalidade sincrónica” da valorização forçada não poderia ser totalmente
esquecida. No entanto, permanece em aberto a questão de saber que papel ela deve
desempenhar numa “análise sociologizada do capitalismo” se há “tantos grupos de
actores como atitudes normativas”. As consequentes referências quase
revolucionárias às possibilidades de manifestações marginais se poderem tornar
eventos históricos tiveram certamente de ser afastadas. Será incerto se as
chamadas “cooperativas de consumo” são o melhor exemplo da variabilidade das
estruturas (como austríaco devo pensar instintivamente na “Raiffeisen”). Muito
mais interessante, porém, foi a subsequente argumentação na cruzada contra a
ideia de uma “racionalidade” capitalista. Pois o bom director do Instituto de
Pesquisa Social de Frankfurt tinha obviamente feito os trabalhos de casa e
desfraldou a bandeira ao vento, pois ele – surpresa, surpresa – chegou a falar
de “constelações de poder”, que aqui iriam continuar a desempenhar um papel. As
relações de forças dos grupos, portanto, mudariam constantemente e por isso
seria necessária uma “análise da situação”, em que o “sentimento moral e
cultural global” teria de ser incluído. O que isso possa dar não deve
surpreender – também Antonio Gramsci foi chamado a partir de Frankfurt e com ele
foi reclamada a necessidade de “análises sociológicas” do “evento histórico
específico”. Naturalmente que então todos os argumentos são complexos e muitas
coisas falam contra a “subsunção sob o capital”. A moral seria o que fosse
necessário para possibilitar a luta pelo capitalismo (sic). Quem reconhece isso
também pode tornar visíveis as tensões no mercado e ver que não há normas
fechadas – nem mesmo na batalha em torno da duração da jornada de trabalho.
Portanto – fora com a
“filosofia hegeliana da história”, com o “desenvolvimento linear”, porque isso
são meras “práticas de auto-intimidação”. O que precisamos é de um “despedimento
teórico da Crítica da Economia Política” (sic). Em vez disso, tem de vir a
“objeção normativa” que branqueia a racionalidade económica. Naturalmente que
será claro para todos que ao lado dos movimentos há sempre também “movimentos
contrários”... Mas, no gabinete do director do instituto isso só interessa na
medida em que ele dá o bom conselho final no sentido de que, considerando a
complexidade, o melhor é ligar-se aos escritos políticos e históricos. Bem de
acordo estava ele também com o orador que se seguiu, o professor inglês de
teoria política, Russell Keith, que – na mesma base normativa – falou da
impossibilidade de uma sociedade que não de mercado (pelo que ele defendeu a
“economia social de mercado” contra “o capitalismo”), mas poderia muito bem
imaginar um “socialismo de mercado normativo” sem “alienação nem trabalho
abstrato”.
Axel Honneth com a sua
comunicação ela própria na forma de um programa político tecido de modo bastante
simples e que se esconde por trás da suposta referência teórica a Marx
(comunicação que, aliás, também no painel de discussão subsequente – de acordo
com as normas da etiqueta académica – levou a objecções em parte mordazes contra
Moishe Postone) oferece uma boa visão do conflito básico que me parece
atravessar não só Congresso Re-pensar Marx, mas também uma boa parte do debate
teórico da esquerda que se relaciona com Marx. Trata-se da questão da galinha e
do ovo, da prioridade do “político” ou do “económico”. A razão obviamente
reformista/social-democrata e geralmente bastante repugnante que resulta das
observações de Honneth é aqui no entanto apenas a ponta do iceberg, e o bloco
inteiro não pode simplesmente ser arrumado com a mera referência a essa ponta.
Isso explicaria a argumentação por vezes muito mais ambivalente da “terceira
geração” da tradição da Escola de Frankfurt ultimamente de volta a Habermas.
Esta geração, com a qual não em último lugar também Rahel Jaeggi deverá ter
manifestado ligação teórica, esteve representada por exemplo no painel
“Ideologia, alienação e reificação”. Aqui riscava predominantemente um tipo de
académico linear, sóbrio e hipercientífico (fetischista da precisão), que também
argumenta “complexamente” pelo menos em teoria – mais complexamente que o
agitador bastante óbvio Honneth. A “esquerda política” académica, pelo
contrário, trabalha em torno de Gramsci, muito mais simpático e previsível. A
apresentação de Titus Stahl, que eu gostaria agora de abordar mais
detalhadamente e que fala muito significativamente no título de “Crítica da
ideologia como crítica da práxis social”, oferece para o efeito um guia de
conteúdo.
A densa apresentação de Stahl
trata essencialmente de um problema fundamental do estudo da ideologia, que já
pode ser identificado na definição da palavra. Por ideologia entende-se no
debate crítico habitualmente a noção de “consciência necessariamente falsa”.
Isso implica dois momentos: por um lado, a consciência falsa, o que permite o
duplo significado de uma negação da verdade (dimensão analítica) e uma negação
da moral (dimensão normativa). Geralmente no debate marxista a distinção não é
tão precisa, no entanto predomina claramente a ideia de falsidade no sentido de
representação inadequada da realidade. O exemplo típico da “mentira dos padres”
demonstra isso: Na verdade, diz-se que os dominantes dissimulam a “situação
real”; trata-se portanto em primeira linha de expulsar a falsidade da
argumentação incriminada. Aqui transparece no entanto implicitamente, de certo
modo em sentido performativo, também já sempre a acusação moral de que a
“falsidade” também consiste no facto de que os dominantes, produzindo estas
ilusões, ainda podem explorar melhor, ou coisa que o valha. Esta falta de
precisão na definição de falsidade apresenta ela própria também um problema. A
consciência por outro lado também é necessária, ou seja, ela procede directa e
de certo modo necessariamente das relações sociais (dimensão da teoria social).
Tal perspectiva explicativa é verdadeiramente ela que faz com que o escândalo da
“mentira dos padres” seja realmente significativo, porque sem a sedimentação de
uma mais ampla explicação do contexto em que a mentira tem lugar, nem esta seria
inteligível nem a dimensão (normativa) escandalosa poderia ser registada.
Embora estas dimensões na
prática sejam de facto pensadas em conjunto, teoricamente contudo são
consideradas separáveis, pelo menos potencialmente. Crítica da ideologia
e teoria da ideologia são consideradas como aspectos distinguíveis. Mas
isso leva a uma dificuldade que em certa medida produz uma auto-contradição
performativa, impedindo o próprio conceito de ideologia: se se parte do
princípio de que a consciência é falsa, então deveria ser realmente suficiente
demonstrar essa falsidade e contrapor-lhe o que é certo (seja na dimensão
normativa ou na analítica). A falsidade teria de ser justificada em si mesma. Se
uma consciência é falsa, então está simplesmente errada, independentemente de
onde ou como isso ocorre. A consequência seria então que o conceito de ideologia
se tornaria obsoleto e poderia ser simplesmente substituído por “afirmação
falsa”. Em termos puramente cognitivos não se poderia decidir entre esta ou
aquela “falsa consciência”, não se poderia portanto argumentar por que “1+1=3”
deveria apresentar uma “falsidade” qualitativamente diferente da afirmação de
que “a mercadoria força de trabalho é o mesmo que trabalho”. Por outro lado,
todavia, também o tema da justificação teórico-social da ideologia é igualmente
traiçoeiro. Devendo ser assumido que a ideologia pode ser explicada a partir das
circunstâncias históricas fica a questão: o que distingue então a ideologia de
outras formas de consciência que, pensadas em termos materialistas, já procedem
sempre das condições sociais? Como se pode aqui justificar como “falsa” uma
(des)qualificação que distingue a ideologia de outras emanações conceptuais
socialmente condicionadas? Afinal nada.
Com o primeiro problema
confrontaram-se classicamente tipos de teoria da ideologia que se referem
principalmente aos momentos cognitivo-epistémicos do ideológico. A mais
proeminente é aqui, certamente, a escola althusseriana. O segundo problema
atinge sobretudo representantes de uma crítica da ideologia que enfatizam as
“ideologias materiais”, como reificação e alienação, mas também muitas vezes um
certo entendimento do fetichismo.
Titus Stahl pertence sem
dúvida ao segundo grupo, mas a coisa não é assim tão simples. Pois Stahl vê
perfeitamente a problemática acima, o que também já se encontrava na sua
exposição. Ele coloca-se a questão de saber como é possível a crítica da
ideologia como crítica não-epistémica, ou seja, como é possível o estatuto não
puramente científico da ideologia apenas inteligível no contexto da realidade
social, e também como é possível a instância que implica momentos
cognitivistas-científicos de falsidade. Ele critica também a ilusão de uma
autarquia explicativa do intelectual, como se pode encontrar por exemplo em Marx
e Engels ainda em A ideologia alemã. Ao mesmo tempo, ele também reconhece
que se trata em certa medida de uma questão de “convicções de segunda ordem”
sobre o estatuto do que é intelectual, no entanto estamos lidando ainda em certa
medida com uma “estrutura de nossas ideias cognitivas”. Deste modo ele explica a
sua tese sobre o caráter não-epistémico da crítica de ideologia como segue:
“Crítica da ideologia é uma
crítica da estrutura reflexiva da relação cognitiva dos indivíduos para com a
realidade (social) que não se baseia primeiramente em normas epistémicas”.
Assim, ele opta pela crítica
da ideologia à maneira supostamente materialista e contra uma teoria meramente
epistémica da ideologia, mas introduz o “passo de intervenção” da relação
cognitiva dos indivíduos nessa realidade. Ora tudo isso parece bastante
plausível, pois efectivamente no caso da “falsa consciência” trata-se de “formas
reflexivas” (o peso dos termos não deve obscurecer o carácter fundamental da
problemática, aqui se revelando o problema do fim em si académico das
formulações clausuladas); também faz sentido, obviamente, não reduzir estas a
normas epistémicas, se se quiser evitar a constelação contraditória descrita
acima. Isto leva-nos ao facto de que Stahl também tem de se expressar sobre a
questão da forma material da realidade em si, e ele formula aqui a tese de que a
ideologia não seria falsa apenas “de modo puramente cognitivo”, mas seria sim a
“expressão adequada de uma falsa realidade”. Mas o que se entende
com isto – e é também o que diz o orador – é o carácter fetichista específico
das relações sociais. Não é só que o dinheiro pareça uma instância material, ele
é-o realmente nesta sociedade. A crítica do dinheiro baseada em noções
ideológicas (por exemplo, a crítica estruturalmente anti-semita dos juros) já se
refere sempre automaticamente a esta dimensão de crítica social. Mas a questão
fundamental é se a crítica da ideologia é o mesmo que crítica do fetiche
ou crítica social. Stahl defende que sim e liga essa noção de crítica
materialista com um entendimento “não-expressivista” da relação
realidade-consciência (a “adequação do termo”) e com uma localização do
ideológico não no “conteúdo (adequado à verdade), mas na forma do
estado cognitivo”. Também isto pode à primeira vista parecer interessante, pois
trata-se também da crítica do fetiche em torno das formas reais e abstratas em
que se baseiam as actividades e o pensamento. Mas a dificuldade está no detalhe,
ou seja, como essa crítica das formas é entendida. Aqui reside também o ponto
decisivo da rejeição da argumentação de Stahl pela crítica da dissociação e do
valor e que diz respeito à totalidade. Pois no decorrer da palestra o problema
da mediação entre conteúdo e forma é manejado de duas maneiras: por um lado, a
determinação da realidade substantiva como “problema científico”, ou seja, como
problema de correspondência afinal adequada com a realidade; por outro lado, é
introduzido simplesmente um conceito de prática social que a define como
“contexto da actividade humana que está estruturado internamente por padrões
normativos de correcção”. O foco sobre a forma que abstrai do conteúdo e uma
ideia geral de práxis na ontologia social enquanto “normativamente orientada”
possibilitam agora um desenvolvimento totalmente diferente baseado nas premissas
anteriores que gostaria de dar uma impressão ainda muito progressista. A
falsidade das relações já não pode ser agora explicada em termos de conteúdo;
também não é uma questão de incoerência (o momento cognitivo da teoria da
ideologia é assim, na verdade, completamente amputado). A falsidade das relações
já só pode ser colocada em relação aos “standards internos de práticas” em geral
(tacitamente introduzidos como constante ontológica). Longe da “primeira e
segunda natureza”, as relações sociais em ligação com uma crítica do fetiche
tornam-se então a “primeira e segunda ordem de distinções constitutivas de
práxis” da acção social, que por sua vez estão intrinsecamente ligadas com um
conceito de ideologia específico da teoria da práxis, designadamente o seguinte:
“Um fenómeno cognitivo é então justamente ideológico se ele apenas pode ser
reconstruído num vocabulário que explicita as distinções constitutivas de uma
práxis cujas regras não permitem tratar essas distinções como praticamente
constituídas”. Isto agora pode parecer um pouco pesado, mas basicamente visa que
tem de haver certas formas de acção em si falsas que devem ser substituídas por
certas. Aqui aparece de novo muito claramente a noção habermasiana de uma acção
comunicativa “certa” que apenas teria de completar a “racionalidade teleológica”
das relações capitalistas. Ora a perfídia da abordagem apresentada da crítica da
ideologia está em que esta racionalidade teleológica é de facto apresentada como
falsa, mas não se declara que aqui não se ambiciona realmente nenhuma crítica
categorial, mas apenas uma crítica imanente. As relações dominantes não são
criticadas como tal, mas apenas pela sua não cumprida “pretensão constitutiva de
transparência e autonomia”. Ora assim a racionalização já não é realmente
problemática em função da forma, sendo apenas problemática a falta de
completamento dessa forma (na comunicação). Esse passo não é em geral
suficientemente claro, por isso o discurso sobre fetiche, alienação e reificação
também pode confundir. Com recurso à “base” da anterior Escola de Frankfurt a
questão poderia ser entendida no sentido de que não é a lógica da identidade da
troca que constitui o problema em si, mas sim a sua falta de negociabilidade
político-comunicativa.
“Horkheimer e Adorno, pelo
contrário, consideram fundamentais estas estruturas da consciência, ou seja, o
que eles chamam de razão subjectiva e pensamento identificador; a abstracção da
troca é simplesmente a forma histórica em que o pensamento identificador
desenvolve o seu efeito na história mundial e determina as formas de circulação
da sociedade capitalista. As referências ocasionais à abstracção real tornada
objectiva nas relações de troca não pode esconder o facto de que Horkheimer e
Adorno de modo nenhum derivam como Lukács (e Sohn-Rethel) a forma do pensamento
da forma da mercadoria”. (Habermas 1982, 506)
Após esta “retradução
idealista”, como diz o próprio Habermas (Habermas 1982, 507), já não admira que
ideologia e constituição fetichista sejam apresentadas como uma só. Pois já só
existe simplesmente o momento idealista, qualquer base materialista ou é anexada
à “ciência positiva” ou simplesmente reduzida à “racionalidade instrumental”.
Dada esta construção, parece absolutamente necessário que o problema da
ideologia deixe de ser um problema da relação entre o ideal e o material – fica
estabelecido desde o início que no conjunto apenas o ideal é relevante! Assim as
práticas ideológicas são falsas porque constituem a “infracção de padrões
internos de práticas (em geral)”. Deste modo se pode voltar a conceder bastante
confortavelmente que a ideologia “nunca é falsa supra-historicamente”, mas
constitui na verdade um “problema político para os seres racionais”. O que nos
traz novamente de volta a Gramsci & Cª (2)... Mas esta argumentação é também
cheia de buracos em si mesma, pois o que não é realmente explicado – mas é como
tal de primeira ordem na determinação e justificação da ideologia – é justamente
a relação entre consciência e acção. Habermas, em seu conceito de “acção
comunicativa”, confunde isso toscamente. Com igual consequência lógica também
devem coincidir então crítica da ideologia e crítica do fetiche. Neste passo, no
entanto, não apenas se fundamenta um deslocamento idealista para longe do
objecto sociedade (que é deixada ao cuidado de uma análise científica “neutra”);
também é contornado o problema da determinação contraditória da ideologia,
porque se recorre a uma instância ontológica (já não fundamentada) – a acção
comunicativa “correcta”. O conceito de ideologia, portanto, não só é realmente
suavizado (porque reduzido a uma problemática perfeitamente determinada,
tendencialmente da teoria da linguagem e da teoria da acção da linguagem); ele é
também despojado da sua determinação contraditória. Para verificar isso e
desacreditar como acrítica a comunicação apresentada como uma crítica da
ideologia nem será necessário, portanto, provar a completa falsidade da hipótese
socialmente ontológica de Habermas; basta mostrar que estas regras apenas
desempenham um papel num certo nível da argumentação, que no entanto passa
completamente para segundo plano perante a teorização específica da teoria
social das contradições históricas específicas do “sujeito automático” do
patriarcado produtor de mercadorias. Poder-se-ia mesmo dizer que, justamente
porque as ideologias como formas materializadas de “falsa consciência” são mais
do que incongruências num simples plano de acção abstracto individual – porque
são marcadas por uma tendência de racionalização não meramente cognitiva, mas da
“racionalidade irracional” fáctica da valorização do valor e da sua permanente
dissociação – por isso esta perspectiva de teoria da comunicação não pode ser
considerada como problemática subordinada.
Pelo contrário, uma abordagem
verdadeiramente dialéctica e negativa da questão da ideologia (que eu deixaria
até certo ponto também ao cuidado de uma “retradução materialista” de Adorno e
Horkheimer) não só teria de tomar a sério a contradição imanente inicialmente
apresentada por Stahl, mas considerá-la como momento determinante da própria
definição de ideologia. Determinante, no entanto, não significa “já determinada
desde o início”. O cerne da ideologia é a sua posição contraditória entre a
dimensão cognitiva e a dimensão de teoria social, para usar as palavras da
escola de Habermas. Esta contraditoriedade, contudo, não é puramente
supra-histórica nem meramente ideal, pelo contrário, é uma contraditoriedade já
sempre socialmente induzida, apontando para uma “lógica de acção” material, que
por sua vez não pode ser definida como meramente individual e abstracta, mas
apenas em relação a um plano sócio-estrutural, como sugere o conceito de
abstração real. A constelação fetichista socialmente determinante encontra-se
então na contraditoriedade do ideológico, cujas qualidades também não podem ser
simplesmente reduzidas à determinação pelo fetichismo. A ideologia também não é
redutível apenas ao fetiche a partir do outro lado “materialista”, como era
tendencialmente o caso de Lukács. Isto significaria de facto uma redução
“economicista” da ideologia que, não menos importante, desde o início seria cega
para os aspectos da dissociação e para a ideia de ideológico daí resultante,
ideia essa quebrada e em última instância irredutível a uma “estrutura
nuclear” (monovalente). Ideologia e fetiche constituem, portanto, momentos
distintos com eficácia causal diferente em termos de constituição social. O
ideológico não pode ser simplesmente “derivado” das relações fetichistas
constitutivas; mas é determinado por elas e ele próprio atravessado por elas
como lógica formal geradora de contradições (3). Este tipo de pensamento
dialéctico é difícil porque quebra os limites das relações causais formais. A
contradição inerente ao conceito de ideologia é precisamente a sua qualidade
mais produtiva e geradora de conhecimento específico. É também ela que em última
análise torna possível uma definição realmente distinta da ideologia. Sendo que
aquilo que se entende por fetichismo obviamente não passa sem aspectos de
consciência cognitiva, ele representa um handicap material, de facto
historicamente emanado, mas no entanto absolutamente rígido de toda a interacção
social. Ideologia, pelo contrário, não é mera “consciência”, porque senão a
problemática poderia de facto ser tratada em termos de lógica formal cognitiva,
no sentido de uma “falsidade” científica. Ela representa, sim, as matrizes da
acção discursivamente constituídas, mais variáveis e principalmente também
transformando-se em sistema dominante – se se quiser usar a terminologia de
Foucault: “dispositivos” – que estão mais próximas da determinação consciente.
Estes são, obviamente, apenas
fragmentos de uma crítica da ideologia em termos de crítica da dissociação e do
valor. Com os quais se pretendeu demonstrar, especialmente, quão importante é
insistir na necessidade de separação entre fetichismo e ideologia. Também Moishe
Postone chamou explicitamente a atenção para isso com sabedoria na sua
apresentação. A mistura dos dois parece-me estar espalhada não só nesta
negociação especificamente habermasiana do (auto-proclamado) complexo temático
“ideologia, alienação, reificação” – o fetichismo surge apenas marginalmente –
pelo contrário, parece-me que se poderá encontrar de uma maneira ou de outra em
grande parte da esquerda próxima de teorias inspiradas num pensamento mais ou
menos dialéctico. Até que ponto é que isto tem a ver com a influência de uma
“retradução idealista” da nova Escola de Frankfurt, que também influenciou
fortemente o Congresso Re-pensar Marx, não posso aqui julgar. Isto consegue no
entanto ser considerado como modelo crítico mesmo a alto nível. Não em último
lugar, a teoria crítica da dissociação e do valor poderá certamente convencer
caras novas sobretudo neste meio, pois há uma certa proximidade de conteúdos no
que diz respeito a um primeiro acesso superficial a Marx: a herança dialéctica
não é per se rejeitada, mas tomada a sério; aspectos como reificação e
fetichismo são pelo menos debatidos; um entendimento não puramente analítico mas
visando a totalidade é inteiramente defendido. O problema aqui parece-me ser
mais pouco Hegel do que muito. Isso manifestou-se no já mencionado convite a
alguns dos mais notáveis hegelianos (marxistas) que defenderam teses bem
francamente idealistas, tentando justificá-las com todo o tipo de coisas. A
teoria dialéctica que pretende assumir-se com seriedade tem de ter cuidado com
esta tendência, pois os padrões de argumentação hegelianos podem facilmente
virar dogmáticos, apresentando então em si as convincentes matrizes ideais que
na verdade servem apenas um fim em si – a confirmação dos pressupostos
implicitamente ontológicos da retórica hegeliana. Às vezes é difícil demonstrar
estes pressupostos ocultamente ontológicos, o que não em último lugar abre uma
cova à recepção crítico-dialéctica de Marx, a partir da qual esta, repelindo
tais estratégias puramente argumentativas, tem de escavar para fora sempre de
novo.
Para concluir: sobre a
(crítica da) política
Em contraste, no entanto,
mantém-se um problema que não se resolve, apesar da crítica das armadilhas e
falsas vias da tradição teórica mencionada, problema que se estendeu por toda a
conferência como importante tendência de conteúdo. É a questão da relação entre
o económico e o político, ou talvez ainda mais entre determinação e contingência
(pois ambas estão apenas polarmente condensadas nas respectivas “esferas”, mas
não actuam unilocalmente). Aqui se fala também da forma de tempo “síncrona” e
“diacrónica” que Axel Honneth arranjou maneira de não negar completamente. Sem
dúvida que uma perspectiva crítica dialéctica negativa não pode pensar estes
momentos distintos uns dos outros, mas tem de pensá-los tendo em conta a
universal lógica contraditória moderna da dissociação-valor. Mas isto
naturalmente não basta para conseguir apresentar, mesmo rudimentarmente, uma
teoria do político. O modelo dos habermasianos e dos habituais suspeitos
treinados em Gramsci, Poulantzas e Althusser também adianta pouco, porque
geralmente não questiona a própria forma da política.
Tanto mais surpreendente foi
por isso a apresentação de Alex Demirovic, significativamente intitulada “A
dialéctica do político. Para a crítica da política e das suas consequências”.
Demirovic é de facto da Escola de Frankfurt e ainda estudou com Adorno & Cª; no
entanto, nos últimos anos fez sensação com a sua viragem para um entendimento
voluntarista da “teoria crítica” e tornou-se conhecido não em último lugar
através da sua discussão detalhada de Poulantzas e da nova interpretação deste
(4). Apesar disso ele parece não ter abandonado pelo menos totalmente as margens
de uma elaboração teórica dialéctica, do que eu também me pude convencer uma vez
numa palestra consistentemente empolgante na Universidade de Viena.
Ora Demirovic pegou numa
questão que passou por toda a conferência de modo invulgarmente claro (embora
não explicitamente crítico da forma): como se pode tematizar e contextualizar
historicamente a própria política, quais são os seus limites e alcance e, não
menos importante, como deve ela ser colocada em relação com a economia? Foi
muito referido o escrito de Marx Sobre a Questão Judaica e discutida a
crítica radical da política aí construída. Embora a crítica da lógica da forma
tenha sido contida, para mim o debate representa uma certa novidade – pelo menos
relativamente à muito pouco questionada concepção de política duma esquerda
académica de cunho mais gramsciano. Se este é um movimento novo, ou se foi
simplesmente engano meu, não posso dizer imediatamente. Em qualquer caso, esta
tendência – não em último lugar tendo em vista as gritantes omissões quanto a
isto também ainda na teoria crítica da dissociação e do valor – é um
desenvolvimento interessante e há que aproveitá-lo. Demirovic também se debate
com os primeiros escritos de Marx sobre a política, mas de maneira visivelmente
aplicada e menos filológica. Ele começou por criticar a ideia de Zizek de que
seria necessária uma forma “rica em eventos” e subversiva de “política boa” e
nova, que colocasse em questão o efeito constitutivo dos dominantes. Esta
oposição entre política “melhor” (porque, por exemplo, “próxima das bases”) e
“pior” (porque representativa) é no fundo um evergreen do debate da
esquerda e leva sempre de novo a oposições aporéticas. Demirovic diz agora que a
própria oposição teria de ser tematizada devendo assim visar-se uma “dialéctica
da política”. Nestes termos, a política nunca deve ser tida como só subversiva
ou puramente constituinte, ela é a “média ideal” de ambos os momentos.
Significativamente, ambos também criticados por Marx, designadamente na base da
natureza imanente da própria contradição – a política como um todo não tem o
poder nem os meios para produzir a comunidade desejada. Pelo menos se por
emancipação se entende uma ruptura radical que sobretudo coloque um ponto final
à produção capitalista e à sua alocação ao mercado. Em vez de governos teria de
ocorrer a “administração das coisas”, o Estado desapareceria. Indo mais longe
isso significaria também o fim da política, porque desapareceria a tensão entre
a pretensão à universalidade e o particular. Se deixar de haver esses
antagonismos, cujo objectivo final é sempre a disponibilidade dos recursos,
então não seria necessária mais nenhuma discussão política, mas apenas uma
discussão puramente técnica.
Demirovic continua com uma
apresentação da crítica desta posição que parte do filósofo berlinense Frieder
Otto Wolf. Este diz que a tese do desaparecimento do Estado (até agora) sempre
levou ao oposto, ou seja, a um Estado autoritário, que explodiu em tecnocracia e
assim na utopia negativa de uma “universalidade não-política”. Essa linha de
crítica da crítica marxiana da política intensifica-se na filosofia política de
Laclau e Mouffe que, como é sabido, partem de um conflito constante sobre o
universal como constante ontológica e consequentemente vêem criticamente
qualquer monopólio do poder de definição do universal. Os indivíduos, pelo
contrário, devem estar disponíveis para o conflito, não porém em antagonismo
violento, mas em formas de gestão agonística do conflito, que parecem existir da
melhor maneira sobretudo na república democrática. Demirovic interpreta esta
dupla autor/autora no sentido de que eles querem em última análise suspender a
luta de classes, pois considera implícito em Marx que um grupo particular (o
proletariado) reivindica universalidade política. Este representaria portanto
uma espécie de figura deliberativa da sociedade, na qual deve ser questionada
sobretudo a encenação universalista do particular.
Independentemente de saber se
esta recepção de Laclau/Mouffe lhes faz completa justiça, a resposta de
Demirovic é simpática (se eu o entendi bem): ele critica aquela recepção de Marx
que assume que o proletariado pretende universalizar-se como particular (5) e
diz que Marx quando muito tinha ideia de uma universalidade negativa do
proletariado cujo objectivo era a abolição de todas as classes e distinções de
classe. Assim não seria mais necessário “impor aos outros a própria
particularidade como universal” nem, portanto, uma “emancipação da lógica da
injustiça em si”. Esta pode ser considerada uma apresentação utópica dos
primeiros escritos, mas também remete para o critério de crítica da política –
Marx está contra o igualitarismo da Revolução Francesa; e a avaliação positiva
da Comuna de Paris como uma “revolução social contra o próprio Estado” sugere
que ele se manteve leal a essa atitude em seus últimos anos, pelo menos em
parte. Também a Comuna, segundo Demirovic, deve ser avaliada criticamente, dado
que ela se limitou a ambicionar a simples generalização do direito de voto, mas
ainda continuou política, o que está intimamente relacionado com o facto de o
aparelho produtivo da sociedade ter permanecido intacto. Aqui terminou a
apresentação com a “insuficiência da crítica marxiana da política” que o
apresentante também apenas soube completar com referências vagas ao sistema de
conselhos e a uma “nova forma de diferenciação social em que as decisões
colectivas sejam efectivadas”. Apesar desta abertura – ou talvez por causa dela
– no final achei a apresentação no seu conjunto convincente. É verdade que em
geral não passou da tentativa e se limitou a um debate explicativo das posições
da crítica da política de Marx e dos/as seus/suas adversários/as; no entanto
ainda não está claro para mim como o próprio posicionamento de Demirovic, que
aqui me parece estar de facto implicitamente estruturado, se pode conciliar com
a sua outra exigência no contexto da “esquerda política” académica. Ele de facto
não rejeitou explicitamente o papel imanente da luta política (o que não
constituiria de facto uma posição séria), mas em contrapartida a ideia de
crítica da política em si está geralmente muito longe da teoria de esquerda que
remete ao estrategismo político gramsciano. É certo que não conheço o texto base
da palestra e de resto nem toda a exposição de Demirovic; talvez eu tenha
entendido algo mal. Mas avaliaria a orientação geral como merecedora de ser
continuada.
Isto é especialmente verdade
para a preponderância de “falsas ilusões” sobre a função deliberativa do
político como “forma de negociação” supra-histórica e neutra. Também aqui vale
que: os momentos duma ontologia social deliberativa, ainda que possam estar bem,
estão sobrepostos de tal modo aos “constrangimentos” da forma política
genuinamente moderna que as ideias sobre eles não podem ser muito mais do que
jogos mentais. Jogos mentais perigosos, no entanto, porque eles não só podem
distrair das ideologias dominantes e das coerções formais fetichistas, mas
também frustram secretamente a ideia de uma emancipação que vá “ao todo”. Porque
se economia e política são vistas como intrinsecamente interligadas não pode
haver uma suplantação unilateral. Por outro lado isso significa, naturalmente,
que tem de se defender uma tese “forte” sobre a possibilidade de uma sociedade
libertada. O comunismo só pode significar o mais extenso encerramento das
dimensões de deliberação, na medida em que o princípio do antagonismo, de
facto, já desde o início é totalmente suspenso ao nível da constituição
fundamental socialmente ontológica do todo social (evitei aqui deliberadamente
tanto o termo “comunidade” como o termo “sociedade” que são julgados como
opostos desde Ferdinand Tönnies). Esta ideia de uma “totalidade orgânica” que
combina a maior transparência possível com a maior solidariedade possível pode
parecer utópica. Mas não é a existência real de uma “totalidade automática” de
dissociação-valor, como nós temos que suportá-la hoje, vista de fora, um
paradoxo pelo menos igualmente absurdo? Vivemos neste paradoxo e em primeiro
lugar temos de aprender a lidar com as suas consequências contraditórias. Isto
requer um discurso produtivo de teorias críticas que torne a falsidade do falso
(citação livre de Titus Stahl) finalmente inteligível. Apesar das ambivalências,
vejo na possibilidade e também no decurso efectivo de um debate alargado e agora
de novo “socialmente aceitável” sobre (e para além de) Marx um passo importante
nessa direção. Conjunturas históricas de natureza “política” bastante
dificilmente previsíveis podem ter contribuído para isso. Em todo o caso, penso
eu, é tempo de estes impulsos positivos serem também agarrados pela teoria
crítica e sobretudo levarem novamente à estabilização organizacional e a um
reforço da discussão com outros, discussão essa aberta quanto ao resultado, mas
apesar disso orientada para o resultado. Nisto ninguém conseguirá contornar a
política, no entanto, perante o estado do debate da crítica (da ideologia), a
meu ver há uma boa chance de que a política teórica não seja absorvida no
político nem continue, portanto, imanente. Isto requer naturalmente “luta” tanto
pelos conteúdos como pela prática e grandes eventos como o Congresso sobre Marx
podem contribuir para isso, bem como a organização em pequena escala. Em
qualquer caso – especialmente perante a situação de crise crescente – é preciso
repensar o velho e ensaiar o novo.
Notas
(1) Para
quem ainda não está familiarizado com as últimas vestes da desconstrução
pós-estruturalista: Julie Graham e Katherine Gibson apareceram juntas como
colectivo de autores/as e publicaram até à morte de Graham sempre em conjunto e
ao abrigo deste alter-ego. A sua posição encontra-se já na obra publicada em
1996 The end of capitalism (as we knew it). A feminist critique of political
economy [O Fim do Capitalismo (tal como o conhecíamos). Crítica Feminista da
Economia Política] (Graham & Gibson, 2006), mas parece ter sido recebida no
debate local apenas recentemente.
(2) Isto
também aponta para o secreto parentesco entre uma teoria – idealista – da
ideologia ligada à herança de Althusser e uma igualmente idealista
auto-proclamada crítica da ideologia com referência à “retradução
idealista” habermasiana da Teoria Crítica. O denominador comum é a referência
homóloga ao político como forma de acção mais ou menos contingente. Embora a
política seja interpretada de modo muito mais conflitual pela interpretação
voluntarista inspirada em Gramsci do que pelo reformismo repressivo da nova
Escola de Frankfurt, ambos se referem à mesma lógica da forma política como
“ultima ratio” da contingência, sucumbindo igualmente a uma falsa ideia sobre a
determinação histórica da forma do político em si. Isso não significa,
naturalmente, que todos os aspectos das correspondentes teorias políticas e
ideológicas devam ser inteiramente rejeitados; eles precisam, no entanto, de ser
fundamentalmente revistos à luz da crítica do fetiche, incluído do fetiche do
político.
(3) Este é
de resto também o mais importante argumento contra uma forma de denúncia da
crítica do fetiche que a acusa de constituir novas “contradições secundárias”.
Se uma contradição da dissociação-valor, a ser determinada basicamente, é
rearticulada através de todos os estados de agregação do teorizável, isso não
significa que ela é idêntica com ideologias aparentemente distintas como a
homofobia, nem completamente independente delas (o que também apenas uma lógica
de derivação tornaria possível). Trata-se aqui simplesmente de um tipo de
pensamento diferente, não monovalente, nas próprias contradições que encarnam
uma lógica contraditória – ela própria por sua vez quebrada. Portanto, ela não
está distintamente separada do conteúdo, como lógica formal; a designação como
“forma” representa apenas a relação hierárquica dominante, ela própria implicada
na dissociação-valor e constituindo “o outro” dissociado já sempre não dizível e
subjugado.
(4) Ver
(Demirovic 2007)
(5) Vencer
esta tendência é também essencialmente o cerne da crítica do marxismo do
movimento operário feita pela crítica da dissociação e do valor.
Bibliografia
Demirovic,
Alex. Nicos Poulantzas.
Aktualität und Probleme materialistischer Staatstheorie [Nicos Poulantzas.
Actualidade e problemas da teoria materialista do Estado].
Münster: Westfälisches Dampfboot, 2007.
Graham, J., & Gibson, K. (2006). The end of capitalism (as we knew it).
A feminist critique of political economy [O Fim do Capitalismo (tal como o
conhecíamos). Crítica Feminista da Economia Política].
Minneapolis: University of Minnesota Press.
Habermas,
Jurgen. Theorie des kommunikativen Handelns [Teoria da acção comunicativa].
Bd. 1. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1982.
Original
KLEINE REFLEXION DES RE-THINKING MARX KONGRESSES in
www.exit-online.org.
Publicado
na revista
EXIT! Krise und Kritik der Warengesellschaft, 8 (7/2011) [EXIT! Crise e
Crítica da Sociedade da Mercadoria, nº 8 (7/2011)], ISBN 978-895002-322-4, 260
p., 13 Euro, Editora: Horlemann Verlag, Grüner Weg 11, 53572 Unkel, Deutschland,
Tel +49 (0) 22 24 55 89, Fax +49 (0) 22 24 54 29, http://www.horlemann.info/.
Tradução de Boaventura Antunes (05/2012)