Revista EXIT! nº 9, Março 2012


 
SUMÁRIO E EDITORIAL



Sumário

Editorial


Elmar Flatschart
PARA A CRÍTICA DA ECONOMIA (POLÍTICA) GRATUITA
1. Prólogo sobre teoria e práxis
2. Para a definição de economia gratuita
3. Crítica da economia gratuita
3.1. Crítica da economia (política) e da economia (política) gratuita
3.1.1. Preliminares da crítica da economia
3.1.2. Política e economia – localização e crítica da separação de esferas
3.2. Forma e efeito político
3.2.1. A falta de perspectivas políticas
3.2.2. Possíveis efeitos político-sociais
3.3. Práxis da economia gratuita e cargas (sexuais) simbólicas
4. Conclusão: potenciais da economia gratuita

Robert Kurz
A INDÚSTRIA CULTURAL NO SÉCULO XXI
Sobre a actualidade da concepção de Adorno e Horkheimer
Da crítica aparente da burguesia intelectual ao culto pós-moderno da superficialidade
Crítica cultural elitista ou emancipatória?
Reducionismo tecnológico
A publicidade como percepção cultural do mundo e de si mesmo
A continuação do "trabalho abstracto" e da concorrência por outros meios
A Internet como novo meio central da indústria cultural
A virtualização do mundo da vida
Interatividade da Web 2.0 e individualização
Uma cultura grátis paga cara
O limite interno do capital e a crise económica da indústria cultural
A caminho do esgotamento dos recursos culturais
O mundo não é um acessório. Por que é impossível uma "revolução cultural" separada

Georg Gangl
DIFERENÇAS ILUMINADAS
Um ensaio-recensão sobre o pós-estruturalismo através da sua crítica anti-alemã
Introdução: modernidade, pós-modernidade e pós-estruturalismo
Para a reconstrução do pós-estruturalismo
… e a sua crítica anti-alemã

Karina Korecky
CABE-VOS MANTER SEMPRE O AMOR ÀS LEIS NO ESTADO
Sobre a relação entre feminilidade e nação
I. Lógica do direito e ilógica da mulher
II Ama-te a ti mesmo
III. A natureza particular da nação
IV A reprodução do eu cívico

Daniel Späth
A MISÉRIA DO ILUMINISMO
Sexismo em Immanuel Kant
1. A Crítica da Faculdade do Juízo e a sua posição específica dentro da filosofia transcendental
2. Digressão sobre as Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime
3. Dominação da natureza e feminilidade (Elvira Scheich): As diferentes dimensões do conceito kantiano de natureza e a sua mediação com especificação de género
4. O "belo" e o "sublime" na Crítica da Faculdade do Juízo
5. A “dissociação-valor" (Roswitha Scholz) como princípio constitutivo da forma para a relação entre teoria e práxis e a sua posição na reflexão estética
6. “Dissociação-valor" como forma de pensamento negativo: A relação fetichista entre sujeito e objecto e a questão da contextualização da feminilidade

Carsten Weber
VOCÊS NÃO PODEM ENTRAR AQUI
A classe média precarizada e os respectivos sujeitos como cães de guarda receosos do seu capital humano

Udo Winkel
NEM ALY NEM WEHLER
A disputa entre historiadores como duelo

Gerd Bedszent
MALTHUS RELOADED
 
Udo Winkel
PARIS – CIDADE DE REBELDES



EDITORIAL
Nos últimos meses, as imagens sobre "movimentos sociais" têm tido uma presença incomumente forte nos média. Desde o fim dos grandes “sujeitos do movimento" do século XX – o movimento dos trabalhadores, o movimento feminista, o movimento anticolonial – a percepção de revoltas e levantamentos parece nunca ter sido tão grande. Para a teoria crítica coloca-se agora a questão de saber como essa mudança se justifica. Enquanto na década de 1990 foram demolidos os restos dos antigos grandes sujeitos – o que não interessou a ninguém – os movimentos antiglobalização dos anos 2000 foram tratados na esfera pública burguesa mais esporadicamente, sendo considerados "um tema como os outros". A novidade qualitativa de fenómenos tão diversos como as revoltas da "Primavera árabe", o activismo on-line de uma comunidade de Internet pluralizada simbolicamente representada pelo "anonymous" ou, para terminar, também o movimento “occupy” parecem assentar em dois factos: por um lado, estes novos movimentos colocam radicalmente em causa uma certa parte da socialização capitalista, pelo menos nominalmente; por outro lado, os seus defensores não só vêm do "centro da sociedade" entretanto globalizado, mas também se distanciam dos restos dispersos da esquerda organizada mais ou menos estabelecida. As práxis, é claro, mantiveram-se reduzidas ao pormenor e não transcendem o sistema de modo significativo nas suas reivindicações. Assim, as revoltas no mundo árabe têm sido sempre orientadas para uma nova regulamentação política, mas não questionam outros aspectos sociais nem o pressuposto básico da economia capitalista. O movimento de Internet respondeu às tendências autoritárias e à crescente securitização da vida quotidiana com uma espécie de anarquismo vale-tudo ingénuo, que não se confronta com os aspectos "materiais" das relações sociais. O movimento “occupy”, finalmente, focou-se unilateralmente no questionamento de alguns princípios capitalistas, mas é cego para outros mecanismos de opressão e ideologias sociais.

Mas por que não compartilham todos esses fenómenos o destino de revoltas anteriores de uma "esquerda em mosaico" pós-moderna? A resposta deve ser procurada não só nas práxis concretas propriamente ditas, mas também no seu contexto histórico. A crise há muito latente do patriarcado produtor de mercadorias chegou finalmente ao plano superfícial das manifestações e transformações evidentes com a "crise económica" mundial a partir de 2007. Agora já não é só a lógica da dissociação-valor que atingiu os seus limites; a empiria e com ela a vida quotidiana das pessoas estão agora a acentuar os limites incontornáveis dessa forma de socialização. Embora não haja consciência disto para quase ninguém, pois ironicamente foi a "pós-modernidade" cultural e teórica – ela própria uma reacção à crise iminente e, portanto, em certa medida um prólogo social para as verdadeiras erupções – que apagou da memória colectiva a noção de qualquer teleologia e finalidade; no entanto espalha-se um mal-estar que está associado ao desespero oculto e à descrença na oferta de soluções prevalecente. Este mal-estar quase sempre completamente inconsciente manifesta-se agora de muitas maneiras. Na maioria dos casos – devido à constituição imanente e não reflectida – é claro que em formas de digestão ideológica, que geralmente causam entre outras coisas a propensão (populista) para insistir em tendências regressivas de direita reacionária há muito ultrapassadas e alheias à realidade. Em qualquer caso, já não se acredita (pelo menos implicitamente) que a política dominante consiga “endireitar” novamente as coisas. Esta falta de fé na política é dirigida agora não só contra os decisores institucionais reais, mas também contra a esquerda. Não é por acaso e representa uma mudança qualitativa o facto de até mesmo as partes mais radicais dos movimentos de crise se distanciarem claramente das forças politicamente organizadas. Isto está associado a uma nova participação de massas que a esquerda mais radical por sua vez rejeita. Finalmente esta última conseguiu agora sentir que já dura há tempo suficiente o seu gueto social e já não sabe muito bem o que fazer com os não-socializados em subculturas. As reações foram, portanto, desde o perplexo ficar de lado, passando pela intervenção obsessiva (e sem sucesso) de acordo com o "velho modelo", até à rejeição malévola. Todas essas reações – e especialmente a última – não significam realmente que existam efectivas diferenças de conteúdo: grande parte da esquerda ainda simpatiza com as reivindicações reduzidas desses movimentos ou apresenta outras pouco mais elaboradas. Mas também um posicionamento político defensivo na aparência crítico da ideologia acaba por se envergonhar a si mesmo, visto que se limita a ruminar e a transformar na própria auto-segurança o que estava claro desde o início: a reprodução de ideologias (do quotidiano) e as exigências muito pouco radicais dos movimentos de massa espontâneos. As reacções, por conseguinte, são marcadas decisivamente sobretudo pelo facto de a esquerda já não saber definitivamente o que fazer com estes fenómenos novos. A incompatibilidade entre códigos tradicionais, subculturas, formas de agitação e de comportamento político e os novos protestos é uma incompatibilidade categorial, pois surge a partir da própria constituição política da esquerda. A esquerda no seu conjunto basicamente nunca recuperou do choque do fim dos grandes "sujeitos do movimento" políticos e continua a manter consistentemente padrões políticos que são meros produtos decadentes da crise do antigo. Isto está intrinsecamente ligado com a pluralização teórica "pós-moderna", que na realidade se limita a substituir a própria impotência na análise crítica: a complexidade da fragmentação da sociedade em crise faz desaparecer as regularidades estruturais empiricamente apreensíveis e "simples". No entanto, dado que deixa de ser atingido o nível da crítica categorial abrangente da totalidade, a surpresa é grande e o efeito da reflexão recai sobre o parcelar, o contingente. Mas esta pluralização pós-moderna desvia simultaneamente a atenção do facto de os modos de agir e as formas de reacção se terem mantido basicamente as antigas, agora simplesmente imprecisas e perdidas/confusas. De tal como que a esquerda há muito está incapaz de agir, pelo menos quando se trata do plano da transformação de toda a sociedade. Na sua falta de auto-contextualização ela difere pouco dos outros artistas do circo político, sendo mesmo realmente intercambiável com posições políticas.

Por isso não há que censurar os mais recentes movimentos sociais por se afastarem da esquerda, pois tal constitui uma reação necessária (embora inconsciente) à obsolescência histórica de grande parte dessa esquerda. Em particular, e especialmente em termos de conteúdo, é claro que os protestos não podem ser causalmente reduzidos a meras manifestações de crise. Dependendo do nível de abstracção, há também diferentes áreas de contingência e de encadeamentos reais de uma práxis não mais puramente redutível ao sujeito automático. Esta impossibilidade de relações causais simples, no entanto, não deve conduzir a que se ignore simplesmente o contexto histórico ou, pior ainda, a que se afirme, numa inversão projectiva, que a própria crise é resultado da luta. Uma análise detalhada teria de considerar em conjunto e em sua contraditoriedade os desenvolvimentos da lógica histórico-sistémica síncrona do valor e as suas rupturas diacrónicas nas situações de crise da política e da práxis quotidiana. Tal como em situações de crise anteriores, abrem-se assim áreas de possibilidade inteiramente novas; mas, ao contrário de anteriores crises cíclicas, é improvável o regresso às formas existentes ou a um impulso renovado de aplicação dentro do espartilho da forma capitalista. Assim, não sendo de prever mais qualquer "recuperação do sistema", a versão mais realista é a do asselvajamento e barbarização crescentes das condições, se não for lançada nenhuma mudança significativa.

Por isso, da parte da teoria crítica é necessário continuar a intervir, não temendo interpretações ousadas. Em relação aos movimentos mais recentes, a rejeição da política em maior escala é interessante. Penso que isso pode ser considerado como resultado da socialização de crise (que naturalmente dura há muito tempo e agora simplesmente se torna evidente). A política é de certo modo rejeitada em sua limitação e remissão fetichistas para o "sujeito automático" de valor e dissociação. A rejeição aqui já não é de conteúdo (pois nesse caso teria a esquerda muitas vezes razão), mas é uma rejeição que se relaciona com a própria forma. A subsunção sob a forma da política, como símbolo da representação, na sua lógica imanente de hegemonia e distanciamento abstracto do mundo quotidiano, é percebida aqui como uma afronta. Reflexos semelhantes já houve certamente antes, mas de modo assim concertado e determinado eles são sem dúvida novos e só podem ser entendidos no contexto de uma crise da forma social total. O problema está naturalmente em que todas as reacções dos mais recentes movimentos simplesmente nunca aconteceram de maneira ponderada nem perto disso e nem sequer são entendidas em suas próprias contradições. Elas baseiam-se numa defesa "instintiva" contra uma incongruência que se torna cada vez mais intolerável entre a realidade e a imagem da realidade. A esquerda terá de enfrentar isso, terá de ousar intervenções críticas que não rejeitem justamente o questionar da própria forma, mas que o admitam criticamente. Isso pode acontecer esporadicamente, mas naquele nível agregado que atinge a forma social da "política" de esquerda não se nota nada. Aqui continuam a predominar sobretudo ilusões de maleabilidade e ilusões de luta, que de forma alguma questionam a forma política. Mas há simplesmente cada vez menos para moldar. A esquerda, com a sua ignorância da incontornabilidade da crise, em última análise apenas está ela própria a eliminar o seu próprio contexto.

Mas o facto de o contexto da maleabilidade política imanente se tornar cada vez mais estreito e de isso ser percebido pelos movimentos mais recentes está longe de condicionar qualquer solução alternativa, e muito menos um questionamento radical e sistemático do todo sistémico em sua união contraditória. Para chegar mais perto de soluções reais também não é suficiente, naturalmente, o "impulso espontâneo" das erupções de massas; continua a ser necessária a organização, e até mesmo a acção sob a forma da política, não sendo aqui despropositadas as críticas de esquerda e a insistência nos antecedentes da experiência. Mas, para que estas experiências em geral ainda sejam levadas a sério, é preciso que o auto-questionamento radical e a crítica da forma da política mesmo de esquerda entrem finalmente no repertório dos actores e das actrizes da emancipação. Um tal processo de auto-transformação não pode naturalmente avançar sem rupturas e é mais fácil de dizer do que de fazer. Mas ele pressupõe, além do mais, um trato com as contradições novo e radical. Estas devem ser entendidas e tratadas na sua composição sistémica e não resolvidas obsessivamente na lógica da identidade, como era e continua a ser prática comum na esquerda política. Pois este tipo de solução é o ponto fulcral das ideologias sociais que atravessam a esquerda bem como os protestos mais recentes (no entanto de maneiras diferentes). A crítica da ideologia é então a principal tarefa da teoria crítica quando se trata de lidar com discursos, movimentos e práticas mais concretas de esquerda. Ela tem de decifrar implacavelmente tanto a necessidade como a falsidade da consciência (ou, na verdade, os motivos inconscientes por trás de práxis e intervenções discursivas mais ou menos conscientes), mesmo e sobretudo quando isso se torna desconfortável. Como "práxis teórica", portanto, ela é em si um dos mais importantes imperativos da emancipação. No entanto, isto não deve ser entendido como rejeição da acção emancipatória em sentido estrito, pois nem o mundo vai mudar através de um trabalho puramente teórico, nem a teoria crítica pode em geral fazer declarações "positivas" sobre práxis concretas. Se o fizesse, tomando uma posição ("política") evidente e organizando-se em uníssono com o cânon de esquerda, ela própria degeneraria em ideologia, pois esqueceria o seu próprio posicionamento como práxis específica, suspendendo unilateralmente as contradições subjacentes.

O difícil equilíbrio da teoria crítica entre o seu próprio posicionamento (de esquerda) e a crítica radical da ideologia é o cerne da actividade de uma associação como a EXIT. Neste sentido, não é só o desenvolvimento de um corpus de teoria social que é de relevância central; ao mesmo tempo também têm de ser penetrantemente criticadas as formas de digestão ideológica nos diferentes níveis de abstração e em toda a estratificação das relações sociais. O presente número da revista põe consequentemente a ênfase na crítica da ideologia, que é prosseguida a partir de diversas perspectivas.

No início da revista está a carta aberta da redação da EXIT na passagem de 2011 para 2012 redigida por Robert Kurz. Além de uma informação geral e do obrigatório pedido de continuação do apoio (material) para a elaboração da teoria crítica, a carta toma posição de forma polémica sobre o staus quo da digestão (ideológica) dos protestos e revoltas principalmente na esquerda.

O primeiro texto, PARA A CRÍTICA DA ECONOMIA (POLÍTICA) GRATUITA, de Elmar Flatschart, vê-se como uma revisão teórica de abordagens práticas e de “teorias da práxis” no contexto das tentativas da economia alternativa para criar uma economia sem dinheiro. Depois de um prólogo sobre a relação entre teoria e práxis examina-se primeiramente uma definição conceptual do conteúdo da ideia de “economia gratuita”. Com base nisso desenvolve-se uma crítica imanente da economia gratuita, que no essencial se apoia na crítica da economia política de Marx e na sua recepção pelos debates mais recentes da crítica da dissociação e do valor. Aqui são objecto de discussão os pontos fracos centrais das práticas existentes, bem como as omissões e unilateralidades que já são inerentes à ideia. Essencial parece ser a fixação na reprodução ou na “economia” em sentido lato, o que implica uma menor consideração do aspecto político da práxis emancipatória e da sua teoria. Seguem-se algumas reflexões sobre a carga sexual simbólica das práticas da economia gratuita. Finalmente abandona-se o plano da crítica metateórica para expor possíveis pontos fortes e perspectivas da economia gratuita como práxis do movimento emancipatório.

No artigo seguinte, A INDÚSTRIA CULTURAL NO SÉCULO XXI, parte-se de práxis imediatas para fenómenos ideológicos no contexto do fenómeno mais amplo da "pós-modernidade". O texto baseia-se numa apresentação feita por Robert Kurz em 2010 num congresso sobre o tema no Brasil. A versão alargada para ensaio crítico procura caracterizar a oposição imanente entre o pessimismo cultural da burguesia intelectual e o optimismo cultural tecnológico pós-moderno como as duas faces da mesma moeda. O culto da superficialidade é complementar ao culto da interioridade. Ambos os lados negam igualmente que fazem a afirmação monótona da constituição capitalista da cultura. Para compreender este contexto, a velha análise de Adorno e Horkheimer, apesar de suas deficiências político-económicas, ainda continua a servir melhor do que está disposta a admitir a esquerda pop, ela própria entretanto envelhecida. Isso se aplica mesmo à transformação da indústria cultural da Internet na “realização escarninha do sonho wagneriano da obra de arte total”, justamente na natureza tecnologicamente “interactiva” da Web 2.0. Para lá de Adorno e Horkheimer, a crítica da economia virtualizada como exame do limite interno do capital consegue mostrar também os limites da indústria cultural digital totalitária do século XXI. O texto pretende ser um contributo preliminar para uma crítica abrangente ainda por realizar do culturalismo pós-moderno, da sua episteme e das suas condições socioeconómicas.

O ensaio-recensão "DIFERENÇAS ILUMINADAS", de Georg Gangl, mantém-se na área temática da pós-modernidade, tendo como alvo críticas (falsas) do pós-estruturalismo vindas do cantinho "anti-alemão". Mostra-se como nesse discurso se pode encontrar muita escória ideológica, apesar (ou talvez por causa) da suposta proximidade com a elaboração teórica da crítica da dissociação e do valor. A colectânea “Gegenaufklärung. Der postmoderne Beitrag zur Barbarisierung der Gesellschaft [Contra-iluminismo. A contribuição pós-moderna para a barbarização da sociedade]”, que apareceu recentemente na editora ça-ira, oferece a ocasião e quase o filme negativo dessa análise teórica. A antologia, de proveniência anti-alemã, não faz justiça à teoria pós-estruturalista, como diz o autor, pelo contrário, tende a truncá-la de duas maneiras na lógica da identidade: por um lado, o pós-estruturalismo é reduzido à sua problemática epistemológica e, em última instância, à ideologia alemã e à apologia do islamismo. Por outro lado, apenas a filosofia de Jacques Derrida figura epistemologicamente no pós-estruturalismo. Nestas circunstâncias, no entanto, já não se conseguem perceber os méritos da teoria pós-estruturalista. Por isso o ensaio opta por uma abordagem historicamente contextualizada da teoria pós-estruturalista e enfatiza elementarmente que certos conhecimentos teóricos do pós-estruturalismo podem perfeitamente ser reconhecidos, mesmo que tivessem de ser conceptualizados de forma diferente num quadro de teoria crítica dialéctica. Poderiam mencionar-se aqui aspectos do linguistic turn e a focagem nos momentos performativos e semióticos da interacção social. Finalmente, o texto argumenta que as truncagens da colectânea na lógica da identidade resultam principalmente de um posicionamento fundamental da ideologia do iluminismo, que pretende salvar de si mesmo uma espécie de iluminismo ideal e, portanto, também uma espécie de capitalismo ideal.

O texto de Karina Korecky CABE-VOS MANTER SEMPRE O AMOR ÀS LEIS NO ESTADO apresenta-se como decifração crítica da ideologia do olhar androcêntrico de muitas críticas da nação. Pois a crítica de esquerda do Estado e da nação pensa geralmente poder passar sem a crítica do género, sem que a relação de género desempenhe qualquer papel na crítica do Estado-nação. Do lado da teoria feminista as coisas não se passam de maneira muito diferente: Onde o Estado em geral é o assunto, feminilidade e nação são algo como “categorias estruturais” ou “discursos”, que já só exteriormente poderiam ser relacionadas uma com a outra, em análise separada. Contra isso, o artigo parte da consideração da sociedade civil como um todo. A sociedade de livres e iguais produziu ao desenvolver-se o seu contraditório: as mulheres como diferentes, as nações como determinadas. Através da dialéctica do iluminismo elas reproduzem-se constantemente de novo. Na teoria política de Jean-Jacques Rousseau e outros, cabe às mulheres “manter sempre o amor às leis no Estado”. Transformadas em segunda natureza, as mulheres devem mediar entre o homem-ser humano burguês e aquilo que o faz assim. Elas mandam amar as leis no Estado, fazem a submissão forçada parecer um prazer e a necessidade parecer um desejo. No contexto da nação é na feminilidade que a sua união dá provas.

O texto SEXISMO EM IMMANUEL KANT, de Daniel Späth, pode ser considerado como crítica da ideologia no contexto da história das ideias da meta-ideologia iluminista. Na segunda parte do seu trabalho A MISÉRIA DO ILUMINISMO, o autor tenta reconstruir criticamente a imagem da feminilidade em Kant. Enquanto o primeiro capítulo, com a terceira “crítica” de Kant, a “Crítica da faculdade do juízo”, completa a passagem através do seu sistema de filosofia transcendental, os capítulos seguintes têm em vista entrar na pista do mecanismo genuíno da misoginia kantiana. Mediado pela categoria do “belo”, constata-se aí um movimento duplo que se completa: O “sexismo da diferença projectiva” coincide com o “sexismo da igualdade sonegada”. A relação entre teoria e práxis, já mencionada na primeira parte do trabalho, é objecto de uma apresentação crítica renovada, que se prende com a questão da contextualização da feminilidade sob o predomínio da “dissociação-valor” (Roswitha Scholz) na filosofia de Kant. Como elemento unificador destas reflexões evidencia-se a categoria natureza, cuja coerência, bem como suas diferenciações internas, dão a chave para a compreensão do sexismo kantiano.

O artigo seguinte, VOCÊS NÃO PODEM ENTRAR AQUI, de Carsten Weber, opera ao nível das ideologias quotidianas de estratificação social e reflete sobre o facto de a classificação social com base nos estilos de vida vir experimentando há anos um crescimento enorme. Por um lado, estabeleceu-se recentemente uma noção esvaziada de “condição burguesa”, por outro, descobriu-se a classe inferior como filme negativo ideal para efeitos de conseguir a própria distinção e a demarcação desdenhosa para com “os lá de baixo”. Em contradição aparente com isto está a discussão sobre a forte dependência das oportunidades individuais de educação relativamente à origem social, como vem sendo feita por jornalistas burgueses com verve crítica irritante pelo menos desde o fracasso da reforma escolar de Hamburgo. Claro que os mesmos média acompanhavam antes com igual sanha persecutória o desmascaramento público da classe mais baixa. Essa hipocrisia constitui o núcleo temático do texto. O autor conclui referindo o seu artigo “Entre o martelo e a bigorna” da EXIT nº 6, na medida em que mostra como também no início do século XXI a afirmação de uma diferença qualitativa entre as pessoas se mantém. Trata-se de um ideologema de crise, com o qual os membros da classe média precarizada reagem à ameaça económica crescente na crise da economia mundial.

A revista termina com três textos mais pequenos: o comentário de Udo Winkel NEM ALY NEM WEHLER sobre A disputa entre historiadores como duelo novamente desencadeada entre os dois; a recensão de Gerd Bedszent MALTHUS RELOADED sobre a ideologia malthusiana na obra de Norbert Nicoll "O futuro terá uma economia?"; e finalmente a recensão de Udo Winkel PARIS - A CIDADE DE REBELDES sobre o guia de viagem muito especial com o mesmo nome de Rámon Chao e Ignacio Ramonet.

A terceira parte das teses de crítica do Estado de Robert Kurz "Não há Leviatã que vos salve", de que alguns leitores certamente estavam à espera, teve de ser adiada para a EXIT nº 10 que vai sair ainda este ano

Mais uma vez agradecemos a Angela Aey o seu trabalho de grande envergadura no layout desta edição. E finalmente informa-se que Frank Rentschler se demitiu da redacção em setembro de 2011.


Elmar Flatschart pela redacção da EXIT!
Fevereiro de 2012