Natureza demoníaca e
natureza mecânica
Quando, no século XVII,
figuras como Francis Bacon, Galileu e Descartes formularam o programa e as
primeiras versões dum novo conhecimento da natureza na forma de leis e da
correspondente filosofia mecanicista, as atrocidades patriarcais da caça às
bruxas atingiam o seu auge na Europa. O texto reflecte sobre esta coincidência
histórica marcante. Revela-se que, na realidade, a ciência mecânica da natureza
fica a dever-se essencialmente à socialização do valor que se impôs ao mesmo
tempo, como já Eske Bockelmann demonstrou. Além disso, porém, também podem ser
apontados os vestígios do crime fundador do patriarcado produtor de mercadorias,
por assim dizer da “dissociação sexual original”, nas categorias e figuras da
nova concepção da natureza. Vestígios que serão apresentados ao longo do texto,
em conexão conceptual com a dialéctica entre a dominação interna e externa da
natureza e a correspondente dinâmica do sujeito burguês masculino, podendo a
dissociação sexual ser assim reconhecida como condição constitutiva da ciência
moderna. (Apresentação na Revista EXIT! nº 12)
1. A derivação da
revolução científica feita por Bockelmann a partir da análise da forma de pensar
* 2. Separações estruturais na relação com a natureza * 3. Francis Bacon como
propagandista da razão dominadora da natureza * 4. A caça às bruxas como crime
fundador do patriarcado produtor de mercadorias e o seu papel no estabelecimento
da racionalidade científica * 5. Resumo e visão histórica
A crítica do valor e sobretudo da dissociação
formou-se fora das universidades por boas razões e desde o início não
reivindicou para si qualquer “cientificidade”, como quer que fosse entendida
(reivindicou, sim, verdade). A razão para isso não foi apenas porque a pesquisa
em ciências humanas e sociais era em grande parte inútil como plataforma de
crítica social radical (tanto mais que nas últimas décadas essa pesquisa se
perdeu sobretudo a anunciar sucessivas “viragens” sem sentido, que muito
prometiam mas pouco solucionavam). Foi sobretudo porque se desenvolveu uma
crítica do conhecimento a partir do conceito de fetiche de Marx, per se
incompatível com os padrões da ciência positivista, na medida em que, como
crítica categorial da sociedade, colocava em questão as formas de ser e de
pensar que também a ciência tem como sua base constitutiva. Roswitha Scholz,
para além disso, desde a sua formulação inicial da tese da dissociação não só
procurou radicalizar em termos feministas os elementos de crítica da
racionalidade da teoria crítica de Adorno, mas também insistiu em que nem a
racionalidade iluminista nem o moderno paradigma de domínio da natureza devem
ser considerados sexualmente neutros (cf. Scholz 1992, particularmente § 7; cf.
também Späth 2012).
O objectivo do presente ensaio é desenvolver estas
conclusões fundamentais relativamente às ciências da natureza e aí acentuando
particularmente a dimensão da dissociação sexual, mais do que tem acontecido até
agora. Quando, por exemplo, Claus Peter Ortlieb apresentou em 1998 Aspectos
de uma crítica das ciências matemáticas da natureza, o capítulo sobre
a dissociação sexual era relativamente curto (a). Ele constatou de facto que a
crítica das ciências da natureza, que é preciso levar a sério, “nas últimas
décadas veio sobretudo do lado do feminismo” (Ortlieb 1998, p. 18), mas não
desenvolveu qualquer debate com a literatura feminista sobre o tema, apenas
sumariamente mencionada, o que também teria extravasado o espaço do ensaio. No
texto que segue também não vai ser feito tal debate com as diferentes abordagens
da crítica feminista da ciência. Em vez disso vamos proceder a uma revisão
histórico-concreta – de modo nenhum exaustiva – da formação das ciências
naturais modernas e da sua racionalidade do ponto de vista da relação de género,
em que os estudos feministas sobre o tema constituem a fonte mais importante.
Para o efeito procura-se no primeiro capítulo,
recorrendo aos trabalhos de Eske Bochelmans e Claus Peter Ortlieb, uma
caracterização geral do modo de entendimento das ciências matemáticas da
natureza e demonstra-se que este não só é historicamente único na sua
especificidade, mas, além disso, fica a dever-se à ascensão do dinheiro a meio
fetichista de síntese social. Embora tenha de ser salientado que a práxis da
pesquisa concreta absolutamente multiforme fica tão pouco absorvida na forma de
conhecimento analisada por Bockelmann como o processo da vida social real o fica
na forma do valor, ou os indivíduos nos “caracteres sexuais” que lhes são
exigidos, é preciso ainda assim insistir em que a forma lógica imposta pela
relação dinheiro-mercadoria é antes de mais pressuposta ao pensamento, sem
reflexão a priori.
Depois parte-se desta perspectiva para seguir as
separações no interior da relação com a natureza. No seguimento de alguns temas
da Dialéctica do Iluminismo, a racionalidade subjacente às ciências da
natureza iniciais pode assim ser problematizada como algo que, além das formas
de pensar imediatamente sociais, inclui também uma tensa relação consigo mesmo.
Ambas, formas de pensar e subjectividade burguesa, nascem de um processo de
constituição histórica extremamente violento. A parte principal do ensaio trata
deste processo e das marcas que ele deixou nos escritos de Francis Bacon e
outros mentores da razão androcêntrica, bem como nas categorias das explicações
mecânicas da natureza. O último capítulo esboça ainda como é que estas marcas
foram apagadas no tempo histórico subsequente e porque é que numa pesquisa sobre
a razão dominadora da natureza e o seu androcentrismo não se consegue encontrar
nada. Multiplamente enredadas no processo histórico, as ciências da natureza
diferenciadas terão de ser criticadas concretamente na sua história, bem como a
importância que sempre lhes foi atribuída, tanto como força impulsionadora
quanto como formas ideológicas de reflexão do desenvolvimento social. Com
efeito, a sombra que os seus começos no século XVII, recalcados com muito boa
vontade, lança sobre as esperanças e promessas de emancipação que lhes estão
associadas faz com que também a sua história restante surja desde logo numa
penumbra duvidosa.
A esta luz, não só aparece mais claramente a
dominação fetichista com especificação sexual, mas também se pode começar a
perceber porque é que as mulheres foram durante muito tempo excluídas da
formação académica e das sociedades de eruditos da modernidade e ainda hoje
estão sub-representadas em muitos campos científicos; porque foram silenciadas,
ou quase, as contribuições científicas de não poucas mulheres, por elas apesar
de tudo efectuadas no passado na educação ou na “instrução”, apesar de no seu
tempo terem possivelmente encontrado reconhecimento; e, finalmente, porque é que
a ciência, mesmo lá onde a participação das mulheres foi um facto,
frequentemente desenvolveu a pesquisa à margem das necessidades do “contexto de
vida feminino” (Ulrike Prokop), ou se autonomizou das intenções das cientistas
mulheres. O arraigado androcentrismo da ciência não é apenas um epifenómeno de
exclusão das mulheres e das suas perspectivas possivelmente diferentes por causa
da sua socialização sexualmente específica, nem sequer o resultado da malícia de
professores particularmente sexistas e que tais (que continuam a existir e não
são poucos). Pelo contrário, ele é próprio da abordagem em si
tecnocrático-objectivadora da natureza e da sociedade e pode, portanto, ser
comprovado como resultado da dissociação sexual, mesmo nas “mais abstractas
concepções teóricas” (Scholz 1992, § 5).
Assim, é preciso demarcar o conceito de
androcentrismo deste modo esboçado do conceito vulgar. Uma determinada corrente
dos estudos feministas salientou bastante que a exclusão das mulheres da ciência
levou a estreitamentos de perspectivas e, por consequência, a uma autêntica
distorção dos resultados. Há inúmeros exemplos, particularmente nas ciências
sociais e na biologia. Uma vez que estas disciplinas pelo seu objecto têm a ver
com sexo e relações entre os sexos, que também se “encontram” no reino animal e
vegetal, também é muito fácil seguir nelas o rasto do androcentrismo em geral,
por exemplo, quando (consciente ou inconscientemente) se comprova uma versão da
relação de género socialmente dominante em contextos naturais sem fazer justiça
incondicionalmente aos objectos. Poderá parecer que os ramos mais abstractos e
formais da ciência, pelo contrário, estão acima de tal suspeita. Como haveriam
de entrar na matemática ou na mecânica, por exemplo, hipóteses de fundo com
especificação ou referência sexual? Os defensores positivistas destas ciências
podem facilmente, a partir de uma crítica do androcentrismo restringida ao
concretista, retirar a conclusão de que as especialidades criticadas justamente
não correspondem aos ideais de objectividade distanciada e de rigor matemático,
caso contrário tais distorções não seriam preponderantes. Por isso as
correspondentes disciplinas também são designadas displicentemente por ciências
“fracas”.
Pelo contrário, é preciso expor de seguida que
justamente o ideal de objectividade e de rigor matemático que encarnou na física
newtoniana, tomada como modelo há mais de cem anos, tem por pressuposto a
dissociação sexual. Consequentemente, a mecânica não é menos androcêntrica do
que as disciplinas “fracas”, pelo contrário, é-o tanto mais quanto menos deixa
transparecer o processo de dissociação nos seus resultados e formas de
exposição.
Este texto constitui a versão bastante desenvolvida
de uma apresentação efectuada no seminário da EXIT! de Outubro de 2013 em Landau
(Palatinado). Trata da origem da física moderna e da sua imagem da natureza. A
segunda parte deverá abordar designadamente as modificações desde o fim do
século XVII, o nascimento da biologia e da ideia de evolução, o regresso do
orgânico como forma de pensamento e a cientificização da polaridade sexual. Não
será de contar com ela no próximo número da revista.
1. A derivação da
revolução científica feita por Bockelmann a partir da análise da forma de pensar
A revolução científica do
século XVII não encontrou uma explicação suficiente durante muito tempo. Com
bastante frequência nem sequer as suas especificidades foram correctamente
apreendidas, ou seja, aquilo que é novo no novo, o que distingue as ciências da
natureza dos modos de conhecimento passados. Como evidenciou Eske Bockelmann,
falham tanto as explicações ditas internalistas como também as
sociológico-externalistas do novo. Têm de falhar porque elas próprias se mantêm
presas na forma de pensar incompreendida, cuja génese teriam de entender.
As explicações
internalistas pressupõem o cognitivo como não social e tentam explicar o novo
modo de conhecimento em termos de pura história do pensamento, a partir de uma
história de desenvolvimento contínua das velhas filosofia e “ciência”. Não
satisfazem assim a profunda ruptura epistemológica, a autêntica “revolução no
modo de pensar” (Kant). As abordagens externalistas, por sua vez, invocam
factores sociais, por exemplo, novas necessidades ou tecnologias, para
esclarecer o novo modo de pensar e a nova visão. Pensamento e sociedade,
interior e exterior também aqui são postos como estritamente separados e a
influência de um no outro é pensada como puramente exterior. Bockelmann, no seu
livro In Takt des Geldes [Ao ritmo do dinheiro], consegue refutar uma
série de explicações de ambos os lados e dizer o essencial. A diferença entre
interno e externo resulta do mesmo trabalho de pensamento que é preciso pôr a
descoberto e ultrapassar. A nova forma de pensar é em si social porque a própria
práxis social é em si cognitivamente mediada. Como se deve entender isto?
Bockelmann esboça uma
série de mudanças fundamentais em diversos domínios culturais que se consumam no
início do século XVII: na música e na poesia surge o ritmo do compasso, na
filosofia, a separação sujeito-objecto, na matemática, a geometria analítica de
Descartes e um entendimento completamente novo dos números (para mencionar
apenas algumas). (1) O novo pensar e perceber o mundo surge em relativamente
pouco tempo e consuma-se como reflexo involuntário. O então velho, por exemplo,
a rítmica, enquanto relacionar proporcional de unidades de tempo completas entre
si, ou os números, enquanto unidades de facto sem qualidade, mas ainda assim
pensadas materialmente, está nessa época ainda presente, mas é sentido bastante
repentinamente como simplesmente falso. As dificuldades em imaginar o
auto-entendimento de antigamente ainda hoje existem quando se procura entender
porque consideravam os antigos gregos o número Pi e, por exemplo, a √2 como
números absurdos francamente impossíveis – razão porque eles ainda hoje não por
acaso são designados por irracionais. O trato com estes números hoje é para nós
natural. Mas, até surgir o que Bockelmann designa por “abstracção funcional”, os
números eram ou um múltiplo do um (que por si não era um número, mas a unidade
de base dos números), ou uma relação entre dois números inteiros, ou seja, para
a concepção actual, fracções.
Ritmo do compasso,
pensamento sujeito-objecto, o novo entendimento dos números – a partir de tudo
isto (e mais) consegue Bockelmann agora mostrar que surge nessa mesma época e
seguindo a mesma forma, ou seja, a de servir de síntese (no sentido de Kant),
aquilo que é a relação dinheiro-mercadoria. No início do século XVII a expansão
da economia monetária atinge um ponto de mudança, em que o dinheiro adquire uma
nova qualidade, só assim se tornando enfim dinheiro em sentido moderno (cf.
também Kurz 2012). É o próprio dinheiro que faz agora a síntese social;
potencialmente qualquer pessoa tem de o manejar com regularidade para conseguir
os meios, agora na forma de mercadoria, para a vida quotidiana ou para a simples
autopreservação. O dinheiro também constitui com o contexto social uma
abstracção de tipo completamente novo, abstracção que as pessoas têm de fazer
inconscientemente. Dado que está relacionada com qualquer potencial objecto de
uso, e mesmo com toda a vida, a relação dinheiro-mercadoria é em si sem
conteúdo, chamando-lhe Bockelmann também “relação de pura exclusão”.
Na fase histórica do
“valor absoluto” (Bockelmann 2004, p. 223) o dinheiro torna-se a “pura unidade”,
o puro relacionar entre si de todas as mercadorias, as quais por sua vez se
tornam “puramente relacionadas”, de conteúdo indiferente, meramente quantitativo
(preço). Puro relacionar, como unidade separada, sem determinação, por um lado,
e puro relacionado, por outro, estão tão estritamente referidos um ao outro como
estritamente separados entre si. Estão numa “pura relação de contradição”,
conseguem a sua própria definição apenas na negação, na exclusão de qualquer
outro.
No trato com o dinheiro,
segundo Bockelmann, todos os membros da sociedade aprendem esta abstração
extraordinária, um pensar sem conteúdo, que se consuma por simples reflexo,
assim permanecendo na sua forma inconsciente para os sujeitos. Por causa do
vazio do seu conteúdo ele marca irreflectidamente todos os possíveis conteúdos.
A sua estrutura é sempre a mesma, ou seja, a relação vazia entre função e
variáveis: a relação, modificação e movimento, por um lado; o movido, modificado
e relacionado, por outro. As ciências da natureza surgem porque e na medida em
que também a natureza é repentinamente pensada nesta forma por volta de 1620,
exemplarmente em primeiro lugar por Francis Bacon e Galileo Galilei.
Como Bockelmann mostra,
Bacon exige que se lance o olhar para fenómenos que na história anterior eram
menosprezados quando muito como secundários, procurando neles algo que não
existe empiricamente. As aparências devem ser analisadas com os meios do
entendimento, divididas entre o “processo oculto” (processus latens),
por um lado, e o “esquematismo” igualmente oculto, por outro. Nos corpos, na sua
figura última, incindível e invisível, deverá consumar-se um processo de acordo
com leis, portanto também invisível como “actus purus”, que produz os
corpos na sua aparência dada. Esquematismo e processo defrontam-se
funcionalmente numa pura relação de exclusão: aqui a variável, excluindo a
modificação, ali a modificação, excluindo a variável a que se liga (Bockelmann
2004, p. 286 sg.). Assim, a partir deste “apriori às próprias coisas” (ibidem,
p. 286), se faz a ciência da natureza, melhor dizendo, a ciência da mecânica
hoje designada como “clássica”, faltando no entanto ainda a matemática, a que
Bacon era alheio, como se sabe. Também esta teria de ser revolucionada pela nova
forma de pensar (algo já foi referido sobre isso).
Apenas a matemática
funcional – Bockelmann diz “pura” – perfaz, aplicada à natureza, aquela ciência
natural matemática e exacta de que aqui se trata. Ela distingue-se por um
entendimento dos números que Bockelmann ilustra com a ideia da recta numérica.
Os “números puros” da matemática da Idade Moderna já não são unidades
substanciais, nem proporções ou múltiplos de um, mas sim pontos de um sistema de
referência. Os pontos não têm dimensão, assim sendo por si nada. A recta
numérica, como totalidade destes muitos nadas sem fim, é por sua vez a
referência geral dos pontos entre si. Apenas através dela, através da referência
de um qualquer ponto a todos os outros, o ponto numérico se torna quantidade. “O
princípio do número como unidade era o um; o princípio do número não unidade [=
pura referência, J. B.] é o zero” (Bockelmann 2008, p. 46).
As consequências deste
princípio do zero podem ser esclarecidas da melhor maneira no cálculo
diferencial e integral. Em ambos os casos tem de se passar de certa maneira por
cima da diferença entre quantidade discreta e não-quantidade punctiforme. O
cálculo infinitesimal efectua este salto aproximando os pontos entre si
infinitamente, até que eles quase coincidam em um, ou que a distância entre eles
seja “infinitamente pequena” ou “esteja prestes a desaparecer”, como dizem as
definições correntes das quantidades infinitesimais. Assim pode então uma curva
ou função ter uma subida num ponto, embora uma subida só pareça pensável como
relação entre dois pontos da curva. Do mesmo modo pode um círculo ser
considerado como um “polígono com um número infinito de lados”, o que equivale à
expressão “quadratura do círculo” (ainda que não à solução do problema
matemático cuja insolubilidade se provou na modernidade): o círculo não é de uma
qualidade que o distinga fundamental e categorialmente de um polígono.
Com isto a matemática
também está em posição de separar completamente entre si quantidade e
qualidade. Até à Idade Média era impossível colocar um sinal de igualdade entre
termos com denominadores diferentes ou combiná-los de imediato matematicamente.
Apenas se relacionavam entre si proporções entre grandezas do mesmo tipo. Por
exemplo: a relação entre duas distâncias é proporcional à relação entre os
tempos em cada caso necessários (d1/d2 ~ t1/t2).
A cinemática moderna, porém, elabora fórmulas como v=d/t, para escolher um
exemplo simples. Aqui se relaciona directamente uma determinada distância com um
tempo e se iguala a velocidade a esta relação (distância por tempo). Seja um
troço de um percurso ou tempo, ambos são meros números e podem por isso ser
tratados de modo puramente quantitativo. A diferença qualitativa daquilo que
aqui se calcula apenas secundariamente entra em jogo – como unidade de medida
(por exemplo, metros por segundo). Uma coisa impossível para um escolástico.
Também operadores e
operandos se separam uns dos outros, em correspondência com a forma funcional,
apenas na Idade Moderna. Como já foi referido acima, o número √2 era conhecido
dos gregos a partir de contextos geométricos (diagonal do quadrado da unidade),
ainda que também tivesse em si algo de pavoroso, por não se poder expressar como
uma fracção. Mas até à Idade Média ninguém teve a ideia de desligar o
operador-raiz daquilo a que é aplicado (operando) e agarrá-lo como operação
independente (cf. Bockelmann 2004, p. 312 sg.).
A recta numérica,
desdobrada no sistema de coordenadas cartesianas, dá depois a ideia do espaço
contínuo e homogéneo (2) (o mesmo se aplica ao tempo linear, como recta
divisível arbitrariamente). Nele ocorrem também movimentos contínuos das mais
pequenas partículas regidos por leis . De acordo com a abstração funcional,
estas partículas nem sequer minimamente pequenas deverão ser. As leis dos
mecanismos que lhes estão ligados em rigor vigoram apenas para pontos de massa
sem extensão. Se, portanto, as ciências correspondentes a esse carácter da
abstração funcional são designadas por “ciências exactas”, então a natureza real
dificilmente pode evitar a mácula de não ser perfeitamente exacta. O conceito de
lei da natureza não designa qualquer eventual regularidade ou periodicidade da
natureza – como, por exemplo, que o sol nasce e põe-se todos os dias – mas sim
um desenvolvimento de um movimento ou de uma modificação descrito exactamente na
forma de uma função matemática (separado do objecto do movimento/modificação, em
correspondência com a forma funcional).
A natureza, portanto, de
acordo com o apriori mecanicista da ciência moderna, não deve ser na sua
essência mais íntima nada senão um contexto funcional (3) matemático fechado de
leis. Descobri-las completamente é a tarefa da comunidade científica; qualquer
contribuição para isso é considerada um progresso. Na experimentação
aproximamo-nos ajustadamente, ou melhor, o mais amplamente possível da natureza
naquela forma do processo que se desenvolve regido por leis, forma a que ela
corresponde tão pouco na figura presente. A natureza, que antes surge numa
aparência caótica, é interpretada como resultado do efeito conjunto simultâneo
de múltiplas leis. A práxis experimental visa, portanto, analisar uma parte da
natureza, de tal maneira que o processo e as leis que nele actuam possam ser
isolados e estudados na sua “forma pura”. Tem de ser possível distinguir,
quantificar e medir diferentes factores, de tal modo que seja possível
modificá-los e recombiná-los à vontade um por um. A experimentação não é um
simples ensaio estranho, na medida em que é sistematicamente exercida, sendo a
adaptação dos factores conseguida numa longa série de tentativas e medições; nem
é uma observação meramente contemplativa, como pretende o empirismo. Trata-se,
sim, de uma observação da natureza controlada e na maior parte dos casos também
mediada por instrumentos de toda a ordem, sob condições elas próprias criadas.
Antes da observação há uma intervenção constitutiva e a observação acaba por
desembocar novamente em que “a técnica é a essência desta ciência” (Horkheimer/Adorno
2002, p. 10). Ela apresenta-se como neutra, mas, justamente na sua ausência de
objectivos, é de carácter instrumental, nomeadamente disponível para ser
utilizada para qualquer objectivo. “Na medida em que se consegue isolar factores
individuais, estes podem depois ser reagrupados à vontade e sintetizados em
sistemas técnicos” (Ortlieb 1998, p. 11)
Se pensarmos que ao
dissecar analiticamente a natureza se abstrai sempre necessariamente das
qualidades, que não podem ser representadas nos contextos funcionais
matemáticos, tornam-se óbvios os potenciais destrutivos deste modo de
conhecimento e da sua práxis. O não tido em conta em primeira instância chama a
atenção em primeiro lugar para que a teoria matemática geral – e a construção de
teorias cada vez mais gerais é o fim declarado da ciência pura – não é
imediatamente utilizável para casos concretos de aplicação e por isso tem de ser
especificada, por exemplo, quando grandezas que na teoria são postas como
constantes ou negligenciáveis são agora assumidas nas fórmulas, ou quando tem de
se experimentar outra vez, para provar, por exemplo, a aptidão de determinados
materiais para um fim qualquer. Além disso surgem no domínio de aplicação
efeitos que na construção dos agregados técnicos não foram pensados ou foram
considerados negligenciáveis, mas que causam problemas a longo prazo (pressão
sobre o ambiente, alterações climáticas, resistências aos antibióticos etc.).
Neste sentido o domínio da natureza produz natureza potencialmente
descontrolada, que fatalmente deverá ser ela própria posta sob controlo através
de ainda mais domínio da natureza – uma aventura obviamente sem perspectivas. A
partir desta experiência, no século XX diversos autores e autoras exigem um
conhecimento da natureza diferente, abrangente, menos isolador. No entanto,
enquanto se mantiverem a forma de pensar funcional e a sua base social, esta
exigência, a ser tomada a sério (o que, considerando os omnipresentes
constrangimentos práticos e imperativos empresariais, só será possível
condicionadamente) conduzirá na melhor das hipóteses a contextos funcionais mais
complexos e mais abrangentes. Mas também estes não poderão abranger
completamente a natureza. A pretensão de holismo, assim, se os seus/suas
representantes além disso não tomarem o caminho abertamente irracionalista do
esoterismo, atola-se no fantasma de uma natureza completamente controlável, que
partilha com a irracionalidade contra a qual está orientada.
Lei, experiência e
progresso são os três conceitos com que Bockelmann distingue acertadamente a
ciência moderna dos anteriores modos de conhecimento, em ligação com Edgar
Zilsel. A pré-modernidade, nos seus diferentes esboços do cosmos, conhece uma
ordem eterna da natureza, mas não “leis naturais” de tipo matemático. Também o
progresso, como algo que ocorre no tempo linear e abstracto, lhe é estranho. Tão
pouco o trato prático com a natureza (que além disso é preferentemente objecto
de observação contemplativa e ponderação racional) tinha antes da Idade Moderna
o carácter de análise experimental com o objectivo de síntese conceptual,
matemática e técnica. Tudo isto surge apenas no decurso do século XVII, nas
condições da socialização do valor.
Bockelmann deduz a sua
“abstracção funcional”, e com ela aquela forma de pensar que possibilita as
ciências da natureza, da esfera da circulação, assim sucumbindo à mesma
aparência em que já antes dele tinha caído Sohn-Rethel. As determinações formais
do capital, que na esfera da circulação são simultânea e imediatamente formas de
pensar, apresentam-se como totalmente neutras em termos sexuais. Mas se
questionarmos a relação de género, teremos de, como Elvira Scheich (1993), que
parte criticamente de Sohn-Rethel, alargar o entendimento de Bockelmann do
contexto de forma do dinheiro e forma do pensamento e acrescentar à crítica da
“socialização formal” (Sohn-Rethel) uma crítica da socialidade da relação de
género dela dissociada e inconsciente (sendo que não se trata de um mero alargar
ou acrescentar, mas sim de modificar o entendimento do contexto global). É
preciso questionar, por exemplo, que processos histórico-sociais acompanharam a
formação das determinações formais da circulação, que parte tem aí a relação de
género e como correspondentemente se constituíram a forma e o conteúdo das
ciências da natureza. Entretanto é preciso estar preparado para o facto de a
conexão entre género ou feminilidade e ciência não dever estar tão
persuasivamente na lógica da dedução como a abstracção funcional. Para além do
modo de conhecimento do universalismo androcêntrico, só é possível de certo modo
uma prova indiciária das mediações sexuais no interior da razão dominadora da
natureza.
2. Separações
estruturais na relação com a natureza
Bockelmann evidencia de
passagem repetidamente quão absurdo é na realidade o facto de a riqueza do
conteúdo concreto-sensível e da natureza fenomenológica dever ser encaixada na
forma da abstracção funcional, nesta reciprocidade vazia de função e variável,
de 0 e 1. Mas não se detém minimamente a pensar na questão de saber o que
acontece com aqueles aspectos do processo da vida social e da relação com a
natureza que não ficam de facto absorvidos na lógica formal transcendentalmente
pressuposta do dinheiro. Com a teoria da dissociação-valor, é preciso partir da
tese de que estes conteúdos, atitudes e actividades são entregues “à mulher”,
num acto de violência projectivo e simultaneamente bem firme, e no plano
cultural-simbólico são atribuídos a uma “feminilidade imaginada” (Silvia
Bovenschen) (cf. Roswitha Scholz 2011, p. 21 sg.). A fim de apanhar a pista da
dissociação sexual na ciência ou na racionalidade que lhe está subjacente vou
seguir em primeiro lugar as separações no interior da relação com a natureza
acabada de esboçar e de seguida colocar esta em conexão com os chamados
processos histórico-sociais dos séculos XVI e XVII e com afirmações de Francis
Bacon e outros.
A separação mais notória
é a própria abstracção funcional. Como pura determinação da relação ela separa,
como já foi referido diversas vezes, todos os conteúdos em contraposição de pura
relação e puro relacionado. Por isso, para a mecânica clássica a natureza
apresenta-se como matéria passiva, inerte e morta, por um lado, e contexto
funcional matemático de leis incorpóreas com efeito sobre o corporal, por outro.
Pode ser natural supor aqui já uma conotação sexual: a “materia” tem não por
acaso a “mater” na raiz da palavra, e a passividade foi desde sempre exigida à
mulher burguesa, enquanto o espírito activo, formador da matéria e que a põe em
movimento, bem como a matemática como seu mais elevado meio de expressão e de
conhecimento, tinham e têm conotação masculina.
A etimologia do termo
matéria aponta de facto para uma conotação sexual, sendo esta já pré-moderna e
continuando no século XVII a fazer-se sentir de modo completamente ambivalente.
Enquanto a matéria, como matéria-prima, constitui o princípio “feminino” na
natureza, ela pode ser posta numa posição subordinada face ao princípio formal
“masculino”. No entanto, nem isso é inevitável, nem ela é encolhida de forma tão
indeterminada a um ponto de massa como a mecânica clássica a apresenta. Pelo
contrário, o “feminino” é parte integrante, indispensável e constitutiva dos
processos da natureza, apresentados no seu conjunto nas analogias sexuais do
fecundar, procriar e dar à luz. O que pode acontecer de modo sexista, como em
Aristóteles, Galeno (4) e alguns autores do século XVII, ou com um ímpeto
igualitário, como em Paracelso e nos alquimistas na sua sequência. Estes últimos
identificavam as forças da natureza simbolicamente com princípios “masculinos” e
“femininos”, que na sua combinação perfeitamente igualitária permitiam aqueles
resultados a que aspiravam as experiências alquimistas e que se desenvolvem
sozinhos na natureza. Para os primeiros, pelo contrário, o princípio feminino, a
matéria amorfa, é considerado sem vida e sem actividade. Assim descreve por
exemplo Robert Hooke a matéria em 1682, recorrendo a Aristóteles, como “being in
itself without Life or Motion, without form and void, and dark, a Power in
itself wholly inactve, until it be, as it were, impregnated by the second
Principle [Motion]” (citado em Potter 1989, p. 140). Por muito informe e
“obscura” que a matéria seja, ainda assim ela é um “poder” (Power) com o qual o
princípio “masculino” do movimento, “wich may represent the Pater” (ibid.), tem
de se unir.
Abstraindo do facto de em
Hooke já estar o conceito de movimento mecânico no lugar do conceito
aristotélico de forma, nem nele nem em Aristóteles ou nos alquimistas a
separação entre matéria e forma/movimento é tal que a matéria se tivesse tornado
um puro relacionado perfeitamente indeterminado, no sentido da abstracção
funcional: Hooke ainda tem pelo menos de descrever a sua indeterminabilidade com
numerosas palavras como “obscura” etc. A união de matéria e forma, além disso, é
ela própria ainda uma união necessária, nas metáforas do processo interpretado
sexualmente (impraegnare significa
também “engravidar”) e por sua vez de certo modo material, tal como nos
alquimistas. Interessante é neste contexto o resultado das pesquisas de William
Harvey sobre os processos de fecundação dos animais. Harvey, um importante
naturalista inglês, conhecido sobretudo pela descoberta da circulação sanguínea,
anunciou em 1651 que o sémen masculino não se uniria com o feminino, mas
actuaria estimulando-o (designadamente o óvulo) através de uma força remota,
semelhante ao magnetismo (cf. Merchant 1987, p. 172 sg.). Para ele a combinação
já não aparece como processo natural de união. O “masculino”, na sua actuação,
já está desmaterializado e separado da matéria.
Se o referido processo em
que a natureza é subsumida na forma de pensar funcional está concluído no fim do
século XVII (voltaremos de seguida às suas fases intermédias), também a
conotação sexual de matéria e forma desaparece, na medida em que também
desaparece da natureza o “feminino” com qualquer determinação qualitativa da
matéria. O que resta é uma máquina, como constata mordazmente Genevieve Lloyd:
“De acordo com esta
nova imagem, o mundo não tem espírito, embora seja organizado e reconhecível
como produto de um criador racional. Ele obedece a leis que devem ser
entendidas; mas, contrariamente ao ponto de vista dos gregos, não está ocupado
pelo espírito. A natureza não é interpretada por analogia com um organismo, que
inclua em si os seus princípios de movimento inteligíveis, mas sim por analogia
com uma máquina: como objecto de conhecimento científico ela não é entendida no
sentido de princípios compreensíveis do que é material, mas sim como mecanismo.”
(Lloyd 1985, p. 14)
Como mecanismo, a
natureza, no quadro das suas leis e do conhecimento que delas se tem, pode ser
manipulada e explorada à vontade. A imagem pré-moderna da natureza como
organismo animado e mãe que alimenta, pelo contrário, implicava uma certa
limitação ética da exploração da natureza considerada admissível. Naturalmente
que a identificação da mulher com a natureza na pré-modernidade já é patriarcal,
mas as suas consequências são ambivalentes. A natureza tanto podia ser venerada
como sustentadora quanto – em caso de catástrofes naturais – condenada como
“devastadora” vingativa. Enquanto a natureza no Renascimento ainda surge como
organismo animado, penetrado pelos espíritos, o espírito humano não se dirige a
ela de forma dominadora e exterior. Em vez disso há uma multiplicidade de
relações com a natureza, mágicas e de simpatia (que nessa medida também não
podem sem mais ser abrangidas por um conceito). A alquimia, por exemplo, parece
estar próxima do método experimental, mas é levada a cabo por elementos mágicos.
As experiências por ela desenvolvidas incluem todo o tipo de feitiços e acções
simbólicas, com a ajuda dos quais se pretende possibilitar uma espécie de
comunicação com as forças da natureza.
O novo pensamento
mecanicista já não reconhece qualquer espírito na natureza, a não ser talvez o
puro espírito divino das leis matemáticas a que ela obedece. Mas este é um
espírito com o qual, no entanto, já não é possível entendimento, pelo menos no
quadro da própria práxis científica relacionada com a natureza, por causa do seu
carácter puramente formal. A natureza deve ser objectividade cega, sem alma e
sem vontade, e também nesta objectividade deve poder ser reconhecida. Para o
efeito a experiência tem de ser orientada em conformidade. Com isto está
identificada a segunda separação óbvia: a separação sujeito-objecto. Pois o
sujeito do conhecimento pressupõe o método experimental, mas não é como tal
parte integrante da natureza. Por isso ele tem de excluir de si tudo aquilo que
a natureza é ou parece ser; tudo o que poderia perturbar a construção da
experiência e falsear o conhecimento. A separação sujeito-objecto envolve o
dualismo espírito-natureza mais uma separação: a separação entre natureza
interna e externa, por sua vez sobreposta à separação entre natureza dominada e
não dominada.
A natureza externa
dominada é reconhecida nas suas leis, portanto tecnicamente (re)produzível; não
dominada, apenas ainda não o é. Ainda não – o que significa que ela já está
formalmente subsumida na abstracção funcional; está submetida na ideia a leis
que apenas ainda é preciso interpretar na experiência e finalmente representar
em equações matemáticas. Mas, no processo de génese da forma de pensar
funcional, de certa maneira na “acumulação primitiva da capacidade cognitiva
burguesa”, encontramos, para além disso, uma natureza que simplesmente é não
dominada, sem lei e caótica e, como se verá de seguida, é condenada como
demoniacamente feminina. Para que ela possa surgir como não dominada e sem lei,
no entanto, é preciso que no mesmo momento nasça, ou melhor, tenha nascido a
ideia do domínio e da lei da natureza. Isto é comparável com a imposição do
“trabalho abstracto” (Marx). Quando “o trabalho” foi subsumido formalmente ao
capital, pôde também ir sendo progressivamente subsumido realmente. Mas o que
neste caso foi formalmente subsumido, na sequência do acto constitutivo de
violência e expropriação, não era até aí o “eterno trabalho naturalmente
necessário” como parece em retrospectiva. Do mesmo modo, antes do
estabelecimento da razão patriarcal-capitalista, a natureza não estava apta nem
carenciada do domínio. Quando muito podia ser apaziguada com ofertas
sacrificiais, ou iludida com artesanato (tekhne).
Explicando sucintamente:
iludir é a tekhne no sentido do grego antigo (em rigor há uma
multiplicidade de variantes deste conceito), porque leva a natureza a fazer algo
que ela não faria sozinha, por exemplo, levantar um peso ou fazer voar uma pedra
pelo ar. Está assim em oposição com a natureza. O pensamento mecanicista dos
séculos XVII e XVIII, pelo contrário, concebe a natureza como algo em si
técnico, como uma máquina muito complexa. O domínio consiste em tornar a
natureza igual a esta forma de pensar, ou seja, igualar conceito e lei (o que
apenas se consegue sempre parcialmente). O “domínio da natureza” assim entendido
nem é um conceito moral, nem desce sobre a Terra logo com qualquer pazada. No
primeiro caso seria contraposto ao entendimento tecnocrático da natureza um
entendimento romântico, que faz da natureza sujeito de modo quase mítico, dotado
de uma vontade que se pede que seja respeitada. No segundo caso, qualquer trato
prático com a natureza desde que há memória dos homens se tornaria no fundo um
acto de domínio da natureza, que por sua vez surgiria a condizer como
necessidade natural ou parte integrante da conditio humana. Esta última
hipótese é sugerida por uma interpretação bastante divulgada da Dialéctica do
Iluminismo e por uma série de afirmações de Adorno. Mas se o “mito” já fosse
“esclarecimento”, se a vítima já fosse troca e a “astúcia” já fosse domínio da
natureza interna (Ulisses como sujeito burguês) e externa (tecnologia), então o
domínio da natureza já não poderia ser criticado nem possivelmente abolido de
forma historicamente concreta, como problema da sociedade actual, mas apenas
lastimado como destino trágico, no quadro de um lamento civilizacional
pessimista. (5)
Para se poder reconhecer
a natureza externa nas leis que lhe são imputadas (formalmente), ela tem de ser
objectivada (realmente) na experimentação. Este processo exige um sujeito que
seja capaz disso, pelo facto de ele próprio se submeter às estritas regras do
trabalho científico. “A intervenção activa na natureza feita na experimentação é
em primeiro lugar uma acção do experimentador sobre si mesmo, nomeadamente o
desligar da sua corporalidade e dos seus sentimentos.” (Ortlieb 1998, p. 16)
Pode-se acrescentar que também a capacidade de imaginação, com as suas
conclusões irreflectidas e especulativas e as suas imagens atravessadas pelo
medo e/ou pelo desejo, tem de ser mantida em limites estreitos. Assim, para
Bacon, os seus precursores incapazes do domínio da natureza (sejam os
escolásticos aristotélicos, sejam os filósofos da natureza e mágicos herméticos
ou neo-platónicos) também surgem como penando no reino da fantasia. A fantasia,
a cujas aberrações segundo Bacon pertence particularmente a ideia de uma
natureza animada, tem de ser disciplinada, a sensibilidade tem de ser
padronizada para produzir a objectivação da natureza. As “terríveis provações a
que a humanidade teve de se submeter até que se formasse o eu, o carácter
idêntico, determinado e viril do homem” (Horkheimer/Adorno 2002, p. 40) são,
portanto, o pressuposto não só da capacidade de sociedade, mas também da
capacidade de conhecimento neste sentido, e algo disso se repete ainda em toda a
educação básica. A constituição do sujeito burguês no início da Modernidade é a
condição para o desaparecimento da natureza simplesmente não dominada em favor
da natureza só ainda não teoricamente conhecida nem praticamente dominada.
Esta dialéctica do
domínio da natureza interna e externa pode ser observada ao longo dos escritos
de Francis Bacon, no que posso recorrer à exposição de Katrin Braun e Elisabeth
Kremer (1987) entre outras. Elas relacionam Bacon, juntamente com Descartes, com
um tipo de conhecimento ascético e seguem as mediações sociais e sexuais no
interior do pensamento mecanicista em diferentes planos.
3. Francis Bacon como
propagandista da razão dominadora da natureza
Bacon, que viveu de 1561
a 1626, pode ser considerado como exemplo de sujeito burguês primordial e mentor
da razão dominadora da natureza. É célebre a sua exigência de um saber
coincidente com poder e utilidade, porque e na medida em que não resulta da
especulação, mas da observação indutiva, ainda assim filtrada pela razão, e da
práxis experimental; igualmente influente é a sua exigência de submeter a
natureza obedecendo às suas leis. Críticas feministas da ciência, como Evelyn
Fox Keller, chamaram a atenção particularmente para as metáforas sexuais e de
género que se podem encontrar na sua obra. A natureza a submeter é nele quase
sempre caracterizada como feminina e é demasiado óbvio que o “casamento casto e
legal entre espírito e natureza” por ele exigido é patriarcal, como já notaram
Horkheimer e Adorno (2002, p. 10).
No entanto não é a
natureza per se que Bacon descreve nas
metáforas da feminilidade. Segundo Carolyn Merchant, ele distingue três estados
em que a natureza se pode encontrar: liberdade, erro e servidão:
“Pois a natureza ou é
livre e explica-se pelo seu curso habitual, como nos corpos celestes, nos
animais, nas plantas e em toda a imensidão da natureza; ou é posta fora do seu
estado, através de anormalidades malignas de uma matéria incontrolável e da
violência de obstáculos, como nos nascidos anormais; ou, finalmente, é
controlada, configurada e por assim dizer renovada através da arte e do trabalho
humanos, como se pode ver nas artes [técnica, J. B.].” (cit. em Merchant 1987,
p. 181) (6)
No estado de liberdade, a
natureza é o objecto da astronomia ou da história natural, um sistema científico
que classifica, descreve, retrata e ordena as plantas, animais e minerais (mas
não os explica histórico-genealogicamente, como as teorias evolucionistas
posteriores, nem os investiga na sua estrutura orgânica interna). O estado de
servidão, por sua vez, é atingido na experimentação. Sob condições de preparação
técnica, a natureza é objecto da nova física, da mecânica que “por assim dizer a
renova”, reconstruindo-a como máquina. “O segundo estado”, diz Merchant, “é
necessário para explicar as malformações e monstruosidades, que ocorrem
frequentemente e não podem ser causadas pelo próprio Deus nem por outro poder
superior actuando às ordens de Deus” (ibid.). Tem de haver uma razão para que
nem tudo corra bem na bela natureza de Deus, e Bacon vê-a na própria matéria,
não na acção de demónios ou bruxas maus. A matéria, caracterizada como feminina,
terá em si designadamente uma tendência para a “dissolução do mundo” e para a
“recaída no antigo caos” (ibid.). Identificar a matéria com o “princípio
feminino” na natureza é algo mais pré-moderno, como foi referido acima. Mas
atribuir-lhe uma disposição para destruir a ordem (em vez de meramente passiva!)
não é pré-moderno nem moderno. Corresponde, sim, à violenta ruptura entre a
Idade Média e a Idade Moderna, uma constelação histórica em que as mulheres
tanto foram responsabilizadas pela queda da antiga ordem dominante quanto foram
difamadas como ameaça para a nova ordem. (7)
Para Bacon, a natureza
não é feminina no seu todo, mas apenas enquanto não dominada, isto é, na medida
em que se apresenta como anárquica, ameaçadora, difusamente múltipla e impura,
enquanto, numa palavra, constitui o Outro do sujeito protocapitalista. Tanto
Evelyn Fox Keller como Braun/Kremer citam uma passagem de Bacon em que a
natureza de repente passa a masculina. É na experimentação, não, porém, porque
ela aqui é submetida (é este o único aspecto visto por Merchant), mas sim porque
surge aqui na sua forma mais pura. Acontece aqui, diz Bacon, “como se a natureza
divina se alegrasse com inocência infantil no jogo das escondidas, em que ela se
esconde para ser encontrada, e com típica impaciência espera ansiosamente pelo
espírito humano para se juntar a ele neste jogo” (8) (cit. em Keller 1986, p.
44). “The divine nature” torna portanto o espírito humano (igual a masculino)
“his playfellow”, num jogo inocente que tomou o lugar do acto de dominação antes
descrito como invasivo e normalmente violento. A natureza é masculina naquilo
que a sua cognoscibilidade assegura: como racionalidade, enquanto aquilo que é
idêntico a Deus, à criação e ao ser humano, tal como ao soberano, ao direito e
ao sujeito jurídico.
Mas, antes que a natureza
se revele na pureza das leis divinas, o cientista tem de purificar o seu próprio
espírito. Com isto vou começar a falar sobre a anunciada dialéctica entre
dominação da natureza interna e externa. Em Bacon, como igualmente em Descartes
(1596-1650), começa o verdadeiro conhecimento, com a dúvida bem entendida sobre
os recursos científicos tradicionais e sobre a certeza enganadora da aparência
imediata. As antigas autoridades teriam de ser ultrapassadas e a mente submetida
a um entendimento purificado. Neste ponto Descartes é ainda mais radical do que
Bacon, que é considerado antepassado do empirismo e queria corrigir e padronizar
a sensibilidade através de instrumentos. Para o racionalista Descartes a
racionalidade é tão hostil à sensibilidade que nas suas Meditationes
até nega o próprio corpo e procura a verdade somente na razão, na lógica e na
matemática (cf. Braun/Kremer 1987; Federici 2012, p. 169 sg.).
Bacon repudia a filosofia
natural aristotélica mais antiga, tal como também a hermética mais recente, por
causa da sua “infertilidade” nas questões do domínio da natureza e não só.
Considera-as simultaneamente “enfatuadas” e “heréticas” (Braun/Kremer 1987, p.
6). A sua nova una scientia universalis, pelo contrário, é sóbria e está
de acordo com a doutrina cristã, na sua versão protestante anglicana. Ela deve
ser livre de qualquer envolvimento afectivo ou libidinoso. O investigador da
natureza deverá ter cuidado sobretudo “com o que deleita e enternece
particularmente o seu coração” (cit. ibid., p. 10). Assim, para Bacon, “a
ciência que apenas aspira à satisfação” também “não passa de uma cortesã que só
serve para o prazer e não para a fertilidade e para a reprodução” (ibid., p.
14). A procriação, portanto, é também a mais importante função do amor, no qual
Bacon em geral pouco prazer consegue ter. Escreve ele nos seus ensaios que
divulgam todo o tipo de máximas: “O amor conjugal reproduz o género humano, o
amor amigável enobrece-o, mas o amor lascivo envenena-o e rebaixa-o” (Bacon
1979, p. 40). Por isso ele também aconselha:
“Os que não conseguem
livrar-se do amor, o melhor é mantê-lo firmemente sob controlo e separá-lo
rigidamente dos assuntos e negócios [actions] sérios da vida; pois quando ele se
intromete seriamente na actividade profissional [business] de uma pessoa
[men's], então ele emaranha a sua situação financeira [fortunes] e faz dela um
ser que perde completamente de vista os seus objectivos.” (ibid., p. 39 sg.)
Na exigência da separação
entre a esfera pública e a esfera privada Bacon está muito à frente do seu
tempo. Mesmo se aqui não se fala da mulher é bem claro para onde aponta esta
separação entre o “amor” e os “assuntos e tarefas sérios”: para a submissão da
mulher ao poder matrimonial do homem e para a sua exclusão de todos os domínios
em que a determinação masculina não admite qualquer distracção. O “enobrecedor”
amor amigável entre iguais constitui, entretanto, um importante elemento para a
instituição de associações masculinas da nova ciência, como a Royal Society,
fundada em 1660 no espírito de Bacon (sem contar com os elementos de reforma
social). Braun/Kremer escrevem sobre a função do privado:
“Enquanto o trabalho
da mulher em privado assegurava a mediação entre razão e sensualidade e o
casamento se tornava o meio de disciplinamento
e socialização dos sujeitos, o trabalho e a sexualidade da mulher,
subordinados na esfera privada, constituíam um fundamento da relação
instrumental com a natureza. Mas, antes de a mulher burguesa em actividade na
esfera privada poder tornar-se um signo de harmonia e apaziguamento, tiveram de
ocorrer processos seculares de expropriação e disciplinamento” (Brraun/Kremer
1987, p. 68)
De seguida é preciso
acompanhar esses processos.
4. A caça às bruxas
como crime fundador do patriarcado produtor de mercadorias e o seu papel no
estabelecimento da racionalidade científica
“Enquanto Stevin,
Kepler e Galileu colocam cautelosamente pedra sobre pedra no edifício actual das
ciências naturais, desencadeia-se uma campanha de completa crueldade e terror,
com instrumentos de tortura e ferretes, contra os diabos que espreitam por todo
o lado.” (Mach 1987, p. 218)
O trabalho intelectual de
Bacon, tal como o das outras figuras fundadoras da nova ciência, ocorre numa
época histórica de mudança radical. Entre o começo da lenta decomposição da
velha ordem feudal amenizada pelo catolicismo da Alta Idade Média, com o seu
entendimento da natureza e da sociedade mais ou menos fechado e organicista (9),
e o despertar revolucionário do fim do século XVIII, há séculos de violência. A
soberania interpretativa da Igreja Católica na concepção do mundo é posta em
causa pela reforma; por toda a Europa desenvolvem-se guerras religiosas em
consequência disso; seitas religiosas radicais e movimentos de heréticos e
heréticas levantam-se por toda a parte e são destruídos com violência brutal.
Integram sobretudo pessoas que perderam os seus meios de subsistência, na
sequência daqueles processos que podem ser incluídos na “acumulação primitiva”.
Pessoas que foram lançadas num buraco histórico – para isso chamou Robert Kurz
repetidas vezes a atenção – antes de serem transformadas no material humano
enchouriçado pelo sistema capitalista nas casas de trabalho e nas casas de
loucos da protomodernidade, nas manufacturas e finalmente nas fábricas
industriais. Além disso constituiu-se um novo poder central universal na figura
do Estado absolutista que tem muito menos em comum com o emaranhado de relações
recíprocas de dependência e obrigação do feudalismo do que com a democracia
liberal burguesa pela qual seria dissolvido.
A filosofia mecanicista
do século XVII foi uma das múltiplas respostas à aflitiva procura de certeza e
de harmonia pelas pessoas crescentemente atomizadas – e de facto a resposta que
conseguiu impor-se, porque correspondia da melhor maneira às relações sociais e
políticas. No quadro dela se move Hobbes, com a sua influente ainda que
controversa apologia do Estado absolutista, bem como Descartes, com a sua
concepção do corpo humano como uma máquina. Silvia Federici relaciona ambos os
projectos filosóficos com “a regularidade e o automatismo… que a disciplina do
trabalho capitalista exige” (Federici 2012, p. 172), fazendo notar no entanto
uma diferença:
“Em Descartes, a
redução do corpo a matéria mecânica permite o desenvolvimento de mecanismos de
autocontrolo que tornam o corpo subordinado da vontade. Em Hobbes, por sua vez,
a mecanização do corpo justifica a total subordinação do indivíduo ao poder do
Estado.” (ibid.)
Escapa-lhe aqui, por
causa da sua perspectiva de luta de classes, como uma coisa condiciona a outra.
Não só “todas as capacidades corporais e capacidades de trabalho” são
transformadas (ao proletariado) (ibid., p. 173), mas, justamente para satisfazer
a dominação do Estado formalmente mediada, é exigido (também e particularmente)
ao burguês que construa em si um eu de cuja vontade o próprio corpo tem de ser
súbdito maquinal. A submissão obrigatória ao Estado exige justamente os
“mecanismos de autocontrolo”. Daí resulta, no entanto, a diferença de classe em
que os burgueses, que além do próprio corpo ainda têm propriedade, da qual podem
dispor e que têm de preservar (uma vez que é capital, está sujeita à coerção de
acumulação e às crises), não precisam de limitar o seu eu a ser um órgão de
execução da coerção ao trabalho de resto externa. Daí que, a partir da “razão”,
“educação”, cultura” e similares, eles defendem também a autoconfiança com a
qual olham sobranceiramente, com desdém ou com paternalismo, para a populaça no
fundo animalesca, a quem é preciso meter à força na cabeça tudo isso, na melhor
da hipóteses de forma ainda apenas civilizadora.
A perda da certeza e da
ordem social a que o pensamento mecanicista se opõe reflecte-se também na
relação com a natureza dos começos da Idade Moderna. Desde o século XVI a
natureza é cada vez mais descrita como caos e selva sem lei, que é preciso
dominar, manter sob controlo e cultivar. Neste contexto é de grande importância
a caça às bruxas, que ocorre também nesta época e não foi apenas da parte da
inquisição católica, mas também foi promovida em todas as confissões sobretudo
pela jurisdição secular. Não por acaso, também o influente teórico do Estado
Jean Bodin escreve em 1580 um livro sobre a correcta condução dos processos
contra as bruxas, opondo-se à pretensão de um médico de nome Johann Weyer de que
as bruxas, em sua opinião “melancólicas doentias”, fossem entregues a tratamento
médico em vez de jurídico (cf. Merchant 1987, p. 156 sg.). A fase alta das
perseguições e execuções ocorre no período de 1550-1650. A maioria dos 40.000 a
60.000 atingidos em toda a Europa eram mulheres (cerca de 75 %, com excepção da
Escandinávia).
As bruxas foram
responsabilizadas pela anarquia da natureza e as mulheres em geral foram
associadas à desordem e mesmo à violência (cf. ibid. p. 147 sg.). Merchant chama
a atenção para uma série de imagens simbólicas dos séculos XVI e XVII que
mostram as mulheres no estado de insubordinação, agressividade e violência
contra os homens. Na sequência da Querelle des femmes
(10) tornam-se mais frequentes as acusações contra o
sexo feminino – que de modo nenhum ficaram sem resposta – por exemplo, em
panfletos com títulos como Klagschrift wider die lusternen, faulenzenden,
fürwitzigen und wankelmütigen Frauenzimmer [Escrito acusatório contra as
mulheres lascivas, preguiçosas, atrevidas e inconstantes] (Joseph Swetnam,
1615). Nas imagens de reuniões de bruxas, aquelas reuniões nocturnas secretas,
juntam-se estes elementos de forma mais condensada: uma natureza à solta e
caótica, “que as mulheres governam com impulsos devassos e disparatados”
(Merchant 1987, p. 151); estragos que a demoníaca associação feminina (11) faz
ao resto da sociedade, na forma de venenos preparados (às vezes utilizando
crianças mortas) e da associação quase sempre sexual com o diabo, representado
por animais (tais imagens são povoadas sobretudo por bodes, gatos e sapos). A
literatura sobre bruxas, então muito expandida, divaga sobre acusações de que a
sexualidade feminina é supostamente insaciável e a todos devora, razão pela qual
as mulheres também estão ansiosas por relações sexuais com demónios ou com o
próprio diabo em pessoa. O mais conhecido e representativo neste aspecto é
certamente o Hexenhammer [O martelo das bruxas], de 1486, que teve
múltiplas reedições até ao século XVII.
As bruxas surgem como
seduzidas pelo diabo para o pecado e simultaneamente como sedutoras, a cujo
poder nocivo não deve sucumbir o homem temente a Deus e recatado, pois isso
equivaleria para ele à castração. Uma acusação às bruxas era de que tornavam os
homens impotentes, que lhes retiravam a capacidade procriadora ou lhes roubavam
mesmo o pénis (cf. Federici 2012, p. 228 g.). A impotência corporal
“correspondia à impotência moral”, a paixão sexual era um perigo tanto para a
“autoridade do homem sobre a mulher” como para a “capacidade de autocontrolo do
homem” (ibid., p. 232). Esta constelação aponta para o facto de a identificação
da feminilidade com a natureza não dominada ser mediada pela dialéctica do
autodomínio. A natureza externa torna-se pelo menos parcialmente superfície de
projecção da interna, que tem de ser cada vez mais disciplinada sob a pressão
dos processos de modernização e a coacção ao autoconstrangimento. Os desejos
carnais são projectivamente repelidos, sendo combatidos nas mulheres enquanto
objectivos potenciais da pulsão (cf. Scholz 1992, § 7). A natureza externa, da
qual os inquisidores exigem o afastamento e que Bacon gostaria de submeter com
dominação técnica racional, surge simultaneamente como feminina, o que aponta
para os processos no sujeito: quem põe em perigo a sua estabilidade interna deve
ser também responsabilizado pelas catástrofes no mundo exterior envolvente,
tanto na natureza como na sociedade.
Esta constelação
contraditória tem correspondência nas categorias da filosofia natural “atracção”
e “repulsão”, que podem ser consideradas como reformulação mecanicista das
relações de simpatia e antipatia que, segundo alguns filósofos do renascimento e
alquimistas, entretecem a natureza. Para os mecanicistas é obviamente absurdo
descrever os processos da natureza em termos antropomórficos de “amor” e “ódio”,
de afecto e aversão. A sua pretensão, pelo contrário, é explicar todos os
processos por forças de contacto mecânicas, por pressão e choque, ou seja, sem
forças de atracção “por simpatia”. Para Descartes, por exemplo, a aparente
atracção da Terra explica-se com o peso do ar que nos empurra para baixo e por
sua vez é comprimido por todos os lados pela turbulência cósmica do espaço
preenchido sem buracos vazios. Só com Newton – após o fim dos maiores processos
contra as bruxas – a força de atracção obteve entrada na filosofia natural, como
força actuando de acordo com uma lei, ainda que ela sempre tivesse em si algo de
pavoroso, a suspeição de uma oculta força distante, e o próprio Newton por isso
hesitasse em postulá-la como força fundamental da matéria, como sucedeu depois
dele. Na literatura sobre bruxas e nos panfletos contra as mulheres desde o
“Martelo das Bruxas”, mais uma vez os impulsos somáticos a que se devem a
atracção e a repulsão coincidem: para a mania das bruxas, o mais profundamente
repulsivo nas mulheres é justamente a atracção erótica por elas, porque põe em
perigo a unidade do sujeito masculino, o seu isolamento do mundo exterior, que é
preciso obter repressivamente. Aqui se mostra o conflito psíquico que surge como
paradoxo, nomeadamente que “o sujeito masculino repele aqui com sadismo aquilo
que tem de negar a si mesmo com masoquismo, isto é, que ele simultaneamente
deseja o que repele, mas tem de o repelir enquanto desejado” (Bosch 2000, p.
116).
Os primeiros
mecanicistas, como por exemplo Descartes, já atingiram esta identidade
repressiva. Para eles já não havia atracção e tão pouco acreditavam pessoalmente
no trabalho sobrenatural do diabo. (Apesar disso, no entanto, deram o seu acordo
à perseguição por diferentes razões.) (12) Bacon pode por isso exigir a
investigação das obras das bruxas “não somente para o correcto julgamento das
más acções e crimes, que os depravados desse tipo cometem, mas também para uma
maior penetração nos segredos da natureza” (cit. em Braun/Kremer, p. 7),
portanto envolver-se justamente com aquela natureza que para os clérigos e
juízes das bruxas é considerada condenável e demoníaca. Para Bacon, contudo,
justamente os processos das bruxas conduzidos pelas mais altas autoridades
provam como é possível que “se entre num lugar sujo e não se fique imundo”
(ibid.). Se os juízes das bruxas e os seus ajudantes podem nomeadamente
investigar corpos nus de mulheres vezes sem fim, sem perderem a sua dignidade
cristã nem sucumbirem aos poderes demoníacos, também se pode levar a cabo sem
perigo experiências científicas na natureza.
O facto de a atracção
poder regressar mais tarde corresponde à dialéctica da subjectividade masculina
que não passa assim tão bem sem sequer um bocadinho do poder mágico feminino na
dose certa. É preciso que o mesmo seja fornecido pelas donas de casa e esposas
burguesas (moldadas primeiro violentamente, pela prática da perseguição, depois
supostamente sem coerção) e na realidade “numa forma em que o dissociado possa
ser novamente apropriado pelo homem enquanto domesticado” (Bösch 2000, p.117).
Mas a repulsão parece manter-se preponderante na filosofia natural; pelo menos
no desenvolvimento genético-conceptual das categorias, ela vai na maior parte
dos casos à frente da força de atracção (cf., por exemplo, Kant 1997, p. 42 sg.,
AA 499). Além disso, de acordo com a solução da filosofia idealista por volta de
1800 (Kant, Schelling e, com limitações, também Hegel), ela está felizmente em
equilíbrio com a força fundamental complementar, a atracção, de modo que a
estabilidade da estrutura do mundo (e do sujeito) não é afectada – e isto sem
aduzir como razão a sábia organização de um criador bom, como Newton ainda fazia
cerca de um século antes.
A especulação
psicanalítica acima formulada é naturalmente discutível (13) e atinge apenas uma
dimensão dos complexos processos da caça às bruxas. Braun/Kremer dirigem o olhar
para outra, que se refere imediatamente à relação entre os sexos e com a
natureza:
“Na caça às bruxas […]
a relação com a natureza mágica ou mimética é tornada tabu e proibida, sob pena
da própria perdição. Na bruxa é apresentada a demonstração da pena que ameaça os
que não se submetem à generalização social das virtudes ascéticas. A construção
do sujeito burguês, o desenvolvimento de uma consciência internalizada, da
introspecção e do autodomínio consuma-se com a separação forçada da mulher que
se torna o lado obscuro do sujeito burguês.” (Braun/Kremer 1987, p. 67).
Tentava-se acabar com os
modos anteriores de trato com a natureza e de apropriação dela, porque a ascese
generalizada exigia agora o afastamento da natureza completamente demonizada, em
benefício da orientação para Deus. Isto tinha de virar-se particularmente contra
as mulheres, que tinham adquirido e transmitido oralmente conhecimentos no trato
com ervas e coisas semelhantes, no quadro da medicina popular corrente e da arte
de parteira. Diversas autoras feministas deram ênfase nas suas pesquisas ao
facto de a caça às bruxas no começo da Idade Moderna ter sido também um processo
de expropriação e destruição dos saberes de cura e de ciências naturais em torno
do complexo sexualidade, contracepção, interrupção voluntária da gravidez e
parto (cf. Braun/Kremer 1987,p. 106-117). Com o tempo, o lugar das parteiras foi
ocupado por médicos homens, com a sua “formação especializada” (inicialmente
bastante inútil), a que as mulheres não eram admitidas (cf. Federici 2012, p.
103 sg.). No decurso dos processos de modernização as parteiras foram, por um
lado, submetidas à supervisão do Estado e da Igreja (ou seja, em ambos os caso,
de homens) e postas ao serviço da política demográfica (14), depois de a
obstetrícia, bem como os conhecimentos sobre contracepção e aborto, terem estado
durante muito tempo firmemente nas mãos das mulheres. Por outro lado, foi-lhes
geralmente negado o reconhecimento da sua profissão na forma de uma associação
profissional autónoma, o que também excluiu em grande parte a formação e a
formação contínua, em escolas superiores e profissionais (próprias ou já
existentes). “Quando nas maternidades do século XVIII passou finalmente a haver
ensino profissional para parteiras, esses programas foram feitos desaparecer
pelos médicos que se limitaram a formar parteiras como virtuosas auxiliares
médicas” (Schiebinger 1993, p. 163). Os médicos homens, por sua vez, fizeram do
parto um processo mecânico, com a utilização do fórceps (cf. ibid., p. 375), e
na sua prática rebaixaram sistematicamente o alto nível das anteriores parteiras
relativamente a medidas higiénicas e à assistência médica e “psicológica” da
mãe. Não é exagero afirmar que a elevada mortalidade infantil e materna até bem
dentro do século XIX foi uma consequência de longo prazo deste processo
patriarcal de expropriação.
A caça às bruxas é também
a expressão violenta da tendência histórica geral que restringiu a área de acção
e a autodeterminação das mulheres e as forçou ao papel dependente de esposa e
dona de casa, depois de as suas funções no contexto geral da reprodução social e
os seus direitos nos finais da Idade Média terem sido múltiplos em numerosos
domínios. Evelyn Fox Keller salienta num capítulo do seu livro Liebe, Macht
und Erkenntnis [Amor, poder e conhecimento] (1986) que precisamente os
seguidores de Bacon, os pais fundadores da Royal Society, que parecem racionais
e esclarecidos retrospectivamente, é que forçaram a caça às bruxas em Inglaterra
no século XVII. Opuseram-se-lhes os seguidores de Paracelso, que se ligavam à
alquimia com o nome de “Nova Ciência”, portanto a um trato mágico com a
natureza. Ambos os grupos discutiam ainda sobre o que se devia entender por
“Nova Ciência” e o seu conflito estendeu-se também à interpretação da magia, em
que cabia à relação entre os sexos um importante papel.
Perfeitamente na linha de
Bacon, os pais fundadores da Royal Society, como por exemplo Joseph Glanvill,
advertiam para “o poder que as nossas afecções têm sobre o nosso entendimento
tão facilmente desencaminhável” (cit. por Keller 1986, p. 60), identificando ele
explicitamente as afecções com a feminilidade: não se consegue nada da verdade
“enquanto o feminino governar” (ibid.). O objectivo da Royal Society, segundo o
seu secretário Henry Oldenburg, será fortificar “uma filosofia masculina”. Os
seus protagonistas dirigiam-se em veementes ataques contra os paracelsianos, que
pretendiam perceber os processos da natureza “com o entendimento do coração”,
processos que interpretavam como cooperação em pé de igualdade dos princípios
“masculino” e “feminino”. Ambos estavam de acordo em que a natureza tem de ser
tratada de modo prático-experimental, só que os alquimistas não lhe punham
limites tão estreitos como os seus oponentes. Os membros da Royal Society, de
acordo com a austera “filosofia masculina” própria, rejeitavam o seu entusiasmo,
a componente erótica da sua aspiração ao conhecimento, bem como a sua negação da
existência da bruxaria. Do ponto de vista dos alquimistas, as pretensas obras
das bruxas podiam ser entendidas e investigadas como efeitos de magia natural,
que não tinha em si nada de diabólico. O poder do diabo residiria apenas na
tentação espiritual e não em efeitos físicos, dizia por exemplo John Webster.
Para os seus opositores iluministas isto parecia uma tentativa de defender as
bruxas da perseguição que lhes era devida.
Keller aponta para a
estreita conexão entre bruxaria e sexualidade, que é preciso perceber neste
debate no fim do século XVII. Ela mostra que a participação dos cientistas
racionalistas na caça às bruxas é perfeitamente consequente. Para eles “os
alquimistas eram perigosos não só porque eram religiosa e politicamente
radicais, (…) mas porque estavam vinculados a uma ciência permeada por uma
linguagem metafórica erótico-sexual e simultaneamente agarrados à igualdade
simbólica das mulheres perante Deus” (ibid., p. 66). O radicalismo político (e
também sexual) da tradição paracelsiana está na sua aliança com os movimentos
heréticos de pobres que durante a guerra civil inglesa se rebelaram contra a
ordem dominante e fundaram igrejas livres, com importante participação de
mulheres. A exigência e ocasionalmente a prática da igualdade espiritual entre
homem e mulher apoiava-se num entendimento da natureza que pode ser designado
como “hilozóico”. Segundo ele a natureza é viva e a matéria é animada,
atravessada pelo espírito de Deus. (15) Se Deus está em todo e qualquer ser
humano, então não há qualquer limitação sexualmente específica da capacidade de
conhecimento nem da actividade religiosa (o que, além da pregação, incluía
também as actividades de administração da Igreja). Além disso desaparece a
necessidade de mediação sacerdotal na relação com Deus, o que constitui um
ataque à igreja nacional – equiparado em última instância a um ataque ao próprio
Estado - “No Bishop, no King”. Segundo Elisabeth Potter (1989), a adopção e
desenvolvimento em Inglaterra da filosofia natural mecanicista e atomista
(inicialmente surgida em França em torno de Descartes e Gassendi) também foi
pressionada por tais conflitos político(-sexuais). Os representantes desta
orientação, como Robert Boyle (também membro da Royal Society), integravam os
mais importantes reformadores burgueses e foram eles próprios influenciados
durante muito tempo pelas correntes de pensamento hermético e mágico. Agora eles
opõem consequentemente à imagem de uma natureza viva, defendida com intuito
revolucionário, que a matéria é inanimada, passiva e inerte, e tem de ser posta
em movimento exteriormente por Deus. Este “novo ponto de vista mecanicista” (Keller
1986, p. 68) impôs-se finalmente. Ele “cuidava de assegurar o domínio
intelectual da masculinidade, excluindo a combinação mesmo alegórica de
masculino e feminino – e tanto na sua imagem do cientista como na sua imagem da
natureza” (ibid.).
5. Resumo e visão
histórica
Ainda demorou até por volta do início do século XVIII
até se estabelecer esta estabilidade mecanicista estável e a caça às bruxas
poder acalmar. Na medida em que a constituição do sujeito nas camadas burguesas
e nobres consegue um fundamento económico durável e em expansão, as mulheres são
mais intensamente banidas para a esfera do privado, a natureza interna é
disciplinada com a dissociação do feminino e a resistência contra os novos
desaforos da disciplina laboral e do autodomínio é quebrada pelo Estado, nessa
mesma medida a violenta projecção pode em grande parte desaparecer ou tornar-se
latente. Nem as práticas de magia nem a esperança na sua eficácia acabaram
realmente da parte das autoridades. A magia popular continuava abertamente no
início do século XVIII e mesmo membros da Royal Society, como Newton,
continuavam a gastar secretamente muito tempo e esforço em experiências
alquimistas. A acusações de feitiçaria nociva deixam de ser apresentadas por
pressão política, em vez disso sobem rapidamente os números dos “crimes
vulgares” (cf. Federici 2012, p. 249). Com o tempo, “a intelligentsia
europeia começou mesmo a fazer gala do nível de esclarecimento alcançado e a
reescrever confiantemente a história da caça às bruxas: de tal maneira que as
perseguições surgem como resultado da superstição medieval” (ibid., p. 251).
Independentemente de se ter tratado de falsificação consciente da história ou de
um esquecimento, que a nova forma de sujeito trazia inevitavelmente consigo,
apenas no século XIX parece ter havido esforços para pôr a história em dia. Não
por acaso Ernst Mach, o pai daquela forma decadente positivista da razão
iluminista que domina até hoje a actividade científica, pode nessa época
constatar retrospectivamente a simultaneidade do fanatismo violento e do
desenvolvimento científico (ver acima) – naturalmente sem ver uma conexão
interna e sem sequer mencionar quem foram as vítimas.
Na introdução poética de Edmond Halley aos
Philosophiae Naturalis Principia Matematica de Newton, a “bíblia da mecânica
clássica” (Max Jammer, cit. por Ed Dellian em Newton 1988, p. VII) exprime-se de
certa maneira que já não vem qualquer perigo da bruxa. Diz-se aí:
“[…] Finalmente descobrimos aqui porque o argênteo
Febo / dá passos desiguais, porque ele, que nenhum astrónomo ainda / conseguiu
jamais domesticar, rejeita a rédea dos números / […] Nós conhecemos a força com
que a inconstante Cíntia / empurra à sua frente o mar que volta a encher [...]”
(Newton 1988, p. 7)
As figuras míticas de mulheres, como personificações
metafóricas de forças da natureza antes obstinadas, surgem neste canto de louvor
à genial clarividência de Newton já apenas como vencidas e domesticadas. A
recordação de uma natureza magicamente antropomórfica ainda não se desvaneceu
completamente por volta de 1700 (16), no entanto já perdeu grande parte do seu
poder ameaçador, como o perderam as “mulheres bruxas”, e já está submetida à
forma abstracta funcional – ainda que apenas em pensamento. Ao longo de todo o
poema fala o excedente imaginário de dominação da natureza que caracteriza o
mundo das ideias mecanicista. Antes de as ciências da natureza terem apresentado
sucessos técnico-práticos em larga escala (o que aconteceu apenas no século XIX),
a suposta descoberta das leis do cosmos (ou antes, da lei da gravidade) é
fantasiada como dominação sobre elas. A natureza antes não dominada perde assim
o seu carácter demoníaco. Uma vez que ela é apenas um simples mecanismo que
ainda é preciso descobrir, ela torna-se a natureza simplesmente ainda não
dominada.
A violenta projecção sobre a mulher-como-bruxa
torna-se uma manifestação marginal, pelo menos no campo da ciência e da
filosofia (antes e depois não completamente separadas). No entanto a
sensualidade e sexualidade dissociadas continuam problemáticas. Se na propaganda
da caça às bruxas elas eram combatidas como “caracteres sui generis, mais
carnais que outra coisa e por natureza perversos” (Federici 2012, p. 233,
destaque no original), o desejo feminino ainda era tematizado por volta de 1735
(ao contrário de no século XIX). No “Universal-Lexikon” de Zedler a
“concupiscência (enquanto feminina)” (Liv. 10, col. 637 sgs.) ainda é tratada
como vício e doença, com muitos sintomas e graduações que é difícil identificar
com segurança e podendo afectar qualquer mulher. As formas de expressão da
“concupiscência” que causam preocupação ao autor anónimo “vão de tristeza,
inquietação, inconstância de temperamento perante o impudor e discursos
obscenos, até actos traiçoeiros, melancolia e fúria” (Schmid/Weber 1986, p.
153). Mesmo se aqui ainda transparecem temas da Querelle des Femmes e da
literatura sobre bruxas, na figura da insaciabilidade do desejo feminino, as
mulheres já não surgem como agressoras com capacidades sobrenaturais e
demoníacas. No pretenso excesso libidinoso existe antes um problema
constitucional e moral a precisar de tratamento médico e tratável – um problema
das mulheres, da sua razão e virtuosidade próprias, menos dos homens ou da ordem
social. Schmidt/Weber (ibid.) têm de reconstruir que também se trata de uma
ameaça para os homens com base noutra entrada no léxico, onde se diz: “Abster-se
razoavelmente da mulher serve muito para a nossa força e vida feliz” (Zedler,
Liv. 46, col. 1784). Esta ligação já não é manifestamente evidente.
Uma vez que a projecção na mulher como bruxa regride
ou assume formas sublimadas, a razão dominadora da natureza pode finalmente
apresentar-se como sexualmente neutra. Enquanto os primeiros baconistas se
serviam ainda de uma linguagem clara – palavra chave: “filosofia masculina” – no
início do iluminismo torna-se possível, quanto às mulheres e aos direitos das
mulheres, ter em conta a aparência sexualmente neutra do ideal da razão, contra
a realidade patriarcal que surge como um simples anacronismo. Nesse sentido pôde
haver temporariamente esboços de um “feminismo cartesiano” que considerava o
sexo como mero acidente, na sequência do dualismo estritamente racionalista de
corpo e espírito. O espírito, nas palavras de François Poullain de la Barre em
1673, não tem qualquer sexo que pudesse ser invocado para justificar a exclusão
de metade da humanidade da vida intelectual (cf. Schiebinger 1993, 251 sg.). No
entanto esta não seria a última palavra da burguesia emergente na filosofia e na
ciência sobre a relação entre corpo e espírito, bem como sobre a posição e a
função da mulher. (17)
Os primeiros tempos da razão dominadora da natureza e
do seu suporte, o sujeito (proto)burguês, distinguem-se pela auto-submissão e
submissão do feminino – constituído, aliás, apenas neste acto. No começo
histórico e lógico da autonomia de pensar e agir, que a filosofia iluminista e
os revolucionários burgueses haviam de aproveitar, está de pé a subordinação
incondicional ao poder do soberano absoluto, que cada um tinha de internalizar e
que tinha de ser reproduzido no interior da família como poder do marido (cf.
Braun/Kremer 1987, p. 81. sg.; Federici 2012, p. 184). Enquanto a objectividade
económico-social do capital ainda não está desenvolvida até à reconhecibilidade,
até ser segunda natureza, o soberano personifica a generalidade social. O seu
domínio racional sobre os indivíduos singulares equivale ao domínio de Deus
sobre a natureza: ocorre em leis que fundamentalmente podem ser compreendidas,
ainda que a sua origem se mantenha uma questão infundamentável de fé da
respectiva obediência. Essa função do Deus transcendente, de assegurar a
legalidade e reconhecibilidade da natureza e de lançar uma ponte sobre o abismo
cartesiano entre espírito e natureza, é assumida em Kant no fim do século XVIII
pelo sujeito transcendental. Paralelamente a isso, em Rousseau a soberania,
antes personificada na pessoa do monarca, é objectivada na volonté générale
e a riqueza começa a processar automaticamente, como “mão invisível” (Adam Smith)
ou “sujeito automático” (Marx), para além das suas formas tangíveis.
O que acontece neste processo com o fantasma da
feminilidade não pode ser aqui analisado detalhadamente. Note-se ainda assim que
sob as condições da crescente objectivação das relações sociais, da
internalização das virtudes burguesas e da dominação da natureza, agora em
grande medida também realizada na prática, cresce o mal-estar com o conflito
interior do sujeito e com a alienação da “natureza”. O mais tardar desde o
romantismo, no início do século XIX, o sujeito masculino reclama para si tudo
aquilo que antes fora reprimido a favor da razão calculadora bem como da
capacidade de conhecimento e negociação e dissociado como feminilidade:
experiência (da natureza) mimética e estética, “sensibilidade” e fantasia (cf.
Späth 2012, p. 164-169). Como exemplo literário ao acaso veja-se Friedrich
Hölderlin, que põe o seu Hyperion 1797/1799 a lamentar-se:
Ai se eu nunca tivesse ido às vossas escolas! A
ciência que eu segui até ao fundo do poço da mina, da qual eu esperava com
insensatez juvenil a confirmação da minha pura alegria, estragou-me tudo.
Convosco tornei-me assim correctamente sensato, aprendi a distinguir-me
profundamente daquilo que me rodeia, estou agora isolado no mundo belo, estou
assim expulso do jardim da natureza onde cresci e floresci e a secar ao sol do
meio-dia.” (Holderlin 1997, p. 14)
De modo perfeitamente exacto, a coerção de
individuação e identidade (“aprender a distinguir-se”) é aqui posta em ligação
com o método analítico da ciência. O protagonista espera da sua amada Diotima o
regresso à natureza da sua meninice, guarnecida com as qualidades originais,
Diotima que, bem de acordo com o ideal de amor romântico, deve ser portadora de
todos os traços de que Hyperion se desprende segundo a sua auto-percepção.
Depois de Diotima ter rejeitado a imagem ideal sobre si projectada
significativamente ela morre no enredo do romance. O recuo da projecção
masculina, que Holderlin como autor tem de ter visto claramente, não liberta
assim a figura de projecção feminina dos desaforos da relação de género, mas
anula-a novamente como pessoa autónoma (cj. Holfeld 2013). Isto remete, de
resto, para um traço androcêntrico do próprio conceito de projecção. Como figura
do pensamento crítico, ele é usado não por acaso muito antes de Freud, por
exemplo, em Nietzche e na crítica da religião de Feuerbach e de Marx, sem que a
relação de género aí tenha sido particularmente problematizada. Pelo contrário,
ele parece mesmo reforçar as fantasias de autonomia masculina na sequência do
iluminismo. Em caso extremo não deve existir nada de indisponível ou de
transcendente que não possa ser reassumido soberanamente na própria
subjectividade, que além disso se imagina possivelmente ainda a criar fora de si
mesma, como “Eu absoluto” (Fichte).
Uma tese possível é que à mulher (burguesa), sob tais
condições do crescente desenvolvimento capitalista, não cabe o papel de um
recurso, que é preciso manter sob controlo e explorar no modus da dominação
externa da natureza, (18) mas torna-se sim uma espécie de “prestadora de
serviços”, como governanta da alma do homem. A sua acção na esfera privada deve
mediar entre a razão masculina e o seu outro-imanente (sensualidade,
emotividade, “amor”, …). Esta acção inclui actividade, mas ao mesmo tempo não
deve aparecer como tal. Por isso também é apenas meia verdade o que Braun e
Kremer (1987, p. 134) escrevem:
“Visto que a produtividade da mulher cada vez menos é
determinada em confronto com a natureza externa, é assim possível que ela se
torne responsável pelo confronto com a natureza interna e seu cultivo, podendo
assim o sujeito masculino furtar-se ao confronto com a sensualidade.”
Com a sua tentativa marxo-feminista, que também se
pode encontrar em Federici, de caracterizar o agir feminino como “trabalho” ou
“produtividade”, tornando-o assim susceptível de reconhecimento, elas passam ao
lado do carácter contraditório desta “actividade passiva” e da diferença
qualitativa do dinamismo, diligente mas sem objectivo, porque – ao contrário do
esforço masculino – meramente reprodutivo, pelo qual as mulheres se distinguirão
(cf. Hausen 1976). O sujeito masculino (já) não se furta simplesmente ao
confronto com a sua sensualidade (tanto mais que o disciplinamento da
sensualidade tratado por Braun/Kremer também é uma forma de confronto). Pelo
contrário, o problema é a tentativa de se tornar um “homem completo”, uma
personalidade plenamente desenvolvida no sentido da antiguidade clássica,
através da reintrodução no sujeito da sensualidade e da ligação com a natureza.
A feminilidade é funcionalizada para esta mesma auto-referência masculina,
enquanto medeia com as “forças emocionais” (como Kant as designa) já separadas
entre si e assim coisificadas (sensualidade, capacidade de imaginação,
entendimento, razão, desejo). Elvira Scheich (1993, 1995) também identificou a
passagem da exclusão do feminino na mecânica clássica para a funcionalização do
feminino no século XIX com base na biologia ou na teoria da evolução nascentes.
Mas não posso aqui entrar nesse assunto. Em vez disso seguem-se para concluir
algumas conclusões de síntese sobre a temática deste ensaio.
Parti da análise da forma do pensamento de Bockelmann
que, com a sua lógica dedutiva e a sua fixação na esfera da circulação,
permanece completamente no cosmos do universalismo androcêntrico. Com base nos
escritos de Francis Bacon e outros, tornou-se claro que a razão dominadora da
natureza não consiste apenas na pura forma do pensamento, mas inclui uma
específica e tensa relação consigo e com o mundo, que teve de ser construída
pela primeira vez na história. A formação do sujeito capaz de domínio
experimental-racional da natureza foi de par com a formação do “carácter sexual”
polarizado e hierárquico (19), com a expropriação violenta das mulheres das suas
ciências naturais e com a limitação violenta dos seus campos de actividade. Na
caça às bruxas do começo da Idade Moderna foram aniquiladas ou postas à margem
as anteriores relações com a natureza juntamente com as suas portadoras.
Simultaneamente resultava do seu desenvolvimento contraditório, não meramente
delirante, mas contendo uma certa tendência racionalizadora, a razão mecanicista
e formalmente abstracta. Enquanto, para os verdadeiros propagandistas da
perseguição, natureza e mulher eram igualmente demoníacas, os mentores da imagem
mecânica do mundo estabeleciam a dominação experimental da natureza como
alternativa, inicialmente ainda explicitamente “masculina”, ao proscrito trato
mágico com a natureza.
Nos escritos da fase de formação do patriarcado
produtor de mercadorias e das ciências naturais pode constatar-se uma
identificação projectiva entre feminilidade e natureza descontrolada, que não
deixa qualquer dúvida de que a relação de dissociação sexual é inerente à razão
dominadora da natureza. Todavia, o fantasma da feminilidade também é tão
dinâmico nas suas funções para as ciências naturais como a estrutura da
dissociação no seu conjunto. Não é possível fixá-lo de uma vez por todas porque
a relação social com a natureza está sujeita à dinâmica da dissociação-valor. O
modo como a relação de género se faz notar na ciência depende, portanto, do grau
de desenvolvimento e da configuração das categorias reais sociais em cada caso,
da imposição dos “caracteres sexuais” burgueses e da real dominação da natureza.
Dependendo do sentido em que as separações e polaridades na relação social com a
natureza são acentuadas e resolvidas, assim a feminilidade pode, por vezes,
simbolizar a natureza não dominada e a selva, provocando ansiedade, e, outras
vezes, ser alegoria do anseio pela pureza e inseparabilidade, no sentido de uma
harmonia com a natureza original. Em ambos os casos não vem daí qualquer
proveito para as mulheres reais.
NOTAS
(1) Limito-me aos contextos relevantes para as
ciências da natureza e deixo de lado particularmente uma observação mais próxima
do resultado extremamente surpreendente de que o sentido do ritmo, de acordo com
acentuado / não acentuado, que nos parece tão natural, é específico da Idade
Moderna – ou melhor, está ligado ao dinheiro. Michel Foucault, de resto,
diagnosticou um profunda ruptura na mesma época, para a qual, no entanto, ficou
em falta uma explicação. Uma leitura de As palavras e as coisas (1966)
representa ainda assim um enriquecimento, dado que os campos de saber
investigados são diferentes dos de Bockelmann (designadamente,
linguística/gramática e história natural).
(2) O espaço foi definido por Newton como espaço
absoluto, independente de tudo o que nele se encontra, enquanto o seu opositor
Leibnitz insistia no carácter relacional da estrutura espacial. Com Bockelmann é
fácil reconhecer que a disputa entre eles se desenvolveu no interior da forma de
pensar funcional e que ambos se batiam por um dos lados da pura determinação
relacional: Newton acentuava o lado da pura unidade do relacionar, que tem de
preceder o relacionado, Leibniz pelo contrário acentuava a necessidade e
prioridade do relacionado, sem o qual não pode existir relação.
(3) A identificação imediata da natureza com a
matemática pode encontrar-se, por exemplo, em Galileu e Newton no século XVII.
Mas foi rapidamente contestada por Diderot, por exemplo. Kant, por sua vez, viu
claramente quanto a aplicabilidade da matemática à natureza e o pressuposto das
suas leis sem falhas e completas servem de suporte a uma suposição metafísica
infundamentável, que ele em todo o caso considerava simplesmente indispensável
para qualquer conhecimento. No fim do século XIX, o mainstream das ciências
naturais também se conforma lentamente com o facto de o formalismo matemático
ser apenas uma aproximação modelar ou estatística à realidade (Cf. sobre isso
Ortlieb 2008).
(4) Cf. sobre isto Tuana 1995. Justamente porque a
reprodução sexual (e não, por exemplo, “o trabalho” ou o artesanato) dava
simplesmente a imagem para a produtividade (um conceito, na verdade, certamente
inaplicável) e era o paradigma da interpretação da natureza, por isso mesmo,
presumo eu, a parte da mulher na produção de nova vida teve de ser pouco falada
nas lições oficiais e nos textos, durante séculos canónicos, do patriarcado
pré-moderno.
(5) Cf. sobre isto também
Ortlieb 1998, p. 3 sg. A meu ver, que o mito possa ser apresentado como forma
prévia da razão iluminista dominadora da natureza, por um lado, deve-se ao
mecanismo da retroprojecção, por outro lado, no caso de Adorno/Horkheimer,
também pode ser entendido como crítica da modernidade no medium da
recepção ideológica burguesa das fontes da antiguidade. Através deste modo de
exposição os autores dão a entender a atracção das epopeias de Homero para os
homens burgueses da Idade Moderna, que renunciam às pulsões, sem traçar uma
teoria da civilização a ser levada à letra (embora elementos de tal teoria
atravessem a sua obra). Simultaneamente problematizam histórico-filosoficamente
a ideia de progresso e apresentam a história anterior na sua unidade negativa –
como antes deles Marx e depois deles Robert Kurz, com o conceito de
“pré-história”. Mas esta unidade negativa da pré-história não pode consistir no
“domínio da natureza”, nem no sentido aqui desenvolvido, nem no sentido de que
este domínio seria uma conditio sine qua non da civilização em geral.
(6) Tradução alemã do
século XVIII, por D. Johann Hermann Pfingsten, Über die Würde und den
Fortgang der Wissenschaften [1605] [Sobre a dignidade e o progresso das
ciências], p. 172 sg.
(7) Na citação de Robert
Hooke acima reproduzida também era feita referência “ao antigo caos” antes da
criação do mundo, no entanto nos anos de 1680 a matéria, continuando associada à
feminilidade, já não tinha qualquer tendência para a queda no amorfismo. A perda
do seu potencial destrutivo, a nova passividade forçada, como ainda se verá,
deve ser atribuída à caça às bruxas.
(8) Um trecho semelhante de The
Great Instauration diz no original: “Even as though divine nature took
pleasure in the innocent and kindly sport of children playing at hide-and-seek,
and vouchsafed of his kindeness and goodness to admit the human spirit
for his playfellow at that game” (online:
http://ebooks.adelaide.edu.au/b/bacon/francis/instauration/complete.html,
acesso: 10.10.2013, destaque de J. B.)
(9) Que a ordem feudal não era completamente
estática, tendo sido pelo contrário marcada por conflitos permanentes, é o que
expõe Silvia Federici (2012) de forma impressionante. Contra Merchant, ela prova
ainda que a imagem organicista do mundo não impedia necessariamente a exploração
ou perseguição política das pessoas. Imagem que foi assim “compatível com a
aniquilação dos heréticos” (cf. Federici 2012, p. 247). Sobre os pressupostos
históricos da modernidade ver adicionalmente Weber 2004, 2009.
(10) Sobre esta histórica “Querela das mulheres”, ou
melhor, “sobre as mulheres” em geral veja-se, por exemplo, a contribuição no
capítulo 4 do livro de Wunder/Engel 1998. (b)
(11) Amizades entre mulheres e reuniões de mulheres
suscitavam cada vez mais desconfiança. “Nesse tempo ocorreu também a mudança de
significado da palavra inglesa gossip, que na Idade Média tinha
significado 'amigo' e agora assume um significado depreciativo ('mexerico')” (Federici
2012, p. 226).
(12) Hobbes, por exemplo, argumentava em 1651 que o
feitiço nocivo seria do seu ponto de vista uma superstição sem efeitos físicos,
que seria desenvolvida com maus intentos e por isso muito justamente perseguida.
A eliminação da superstição, além disso, elevaria a disposição das pessoas para
a “obediência burguesa” (cf. Federici 2012, p. 178)
(13) Pode questionar-se, por exemplo, se nesse tempo
já é possível presumir um desejo heterossexual generalizado. A Idade Média
cristã ainda não conhece o homossexual como o tipo humano que é criminalizado
desde o século XIX. No entanto, a tradicional rejeição das práticas
“pecaminosas” homossexuais e de outras práticas decadentes, como a chamada
sodomia, parece ter assumido uma nova dimensão na fase histórica aqui tratada.
Já desde o século XIV foram organizados bordéis suportados pelo Estado como
medida contra a sodomia e as “práticas sexuais orgiásticas das seitas heréticas”
(Federici 2012, p. 62). Paralelamente a isso a violação das mulheres da camada
inferior foi quase legalizada (cf. ibid., p. 60 sg.).
(14) Como expõem tanto Federici como também
Kaupen-Haas, no século XVI a parteira é transformada num instrumento de controlo
ao serviço do poder: “Ela própria deve levar uma vida honrada e cristã e ter
atenção a isso também nas mulheres por ela cuidadas”; desde então ela deve
denunciar os abortos, bem como as grávidas não casadas, e descobrir se possível
o pai da criança nascida fora do matrimónio (Kaupen-Haas 1990, p. 178). Esta
política teve sem dúvida por consequência um aumento da taxa de natalidade. Mas
a caça às bruxas, na sua complexidade e loucura, não pode ser reduzida a um
interesse estatal “racional”, que na teoria do mercantilismo também foi de facto
tematizado, como sugerem Heinsohn/Steger (a cujo livro de 1985 também Londa
Schiebinger se refere, infelizmente). Uma conspiração consciente do Estado e da
medicina contra as mulheres sábias com a finalidade de aumentar a população
teria consequentemente de ter sido um esforço para elevar as oportunidades de
sobrevivência dos recém-nascidos.
(15) Ainda em 1786 Kant,
em ligação com o princípio da inércia da matéria, rejeitava de passagem o
hilozoísmo como “a morte de toda a filosofia natural” (Kant 1997, p. 101, AA
544).
(16) Os Principia
são publicados pela primeira vez em 1687, seguindo-se novas edições em 1713 e
1726. Em 1686 Robert Boyle ainda se sentia chamado a escrever contra o
tradicional “conceito vulgar de natureza”, nomeadamente contra a ideia segundo a
qual “a palavra natureza […] representa uma deusa, ou uma espécie de
semi-divindade” (cit. em Keller 1986, p. 197). Esta ideia, em todo o caso, só
terá “escondido ou limitado o domínio do homem sobre as criaturas inferiores”
(ibidem).
(17) Ver sobre isso, por exemplo,
Steinbrüge 1990, bem como os artigos de Claudia Honegger e de Elvira Scheich no
mesmo livro. Infelizmente ainda não foram publicadas as elucidativas ideias de
Karina Korecky sobre os materialistas franceses do século XVIII, apresentadas no
workshop de Verão da Exit! em 2012 e que ela me disponibilizou
amavelmente para leitura. Mas veja-se as suas exposições sobre a filosofia do
iluminismo em Korecky 2012 e o registo audio da mencionada conferência em
http://audioarchiv.blogsport.de/tag/karina-korecky/
(acesso: 07.03.2014). Ver também Späth 2012.
(18) Assim se apresenta em Merchant o contexto de
dominação da natureza na idade moderna e ideologia da feminilidade. O seu
reducionismo eco-feminista da problemática à fórmula “natureza=mulher” (ambas
estão submetidas à dominação capitalista masculina) teve uma certa
plausibilidade numa determinada fase histórica, mas visto na generalidade é
demasiado simples, como minha exposição terá demonstrado.
(19) Esta formulação afigura-se-me agora discutível,
após a leitura do clássico ensaio de Karin Hausen (1976), que continua a valer a
pena ler, bem como de outras reflexões sobre o mito burguês da feminilidade.
Segundo Hausen, os “caracteres sexuais” polarizados e quase sempre constituídos
complementarmente, que marcam corpo e espírito com uma diferença essencial entre
homem e mulher, surgem no século XVIII e consolidam-se no século XIX. Contudo
não se pode negar que a caça às bruxas e a agressiva acusação das mulheres e da
sexualidade feminina nos debates do século XVII pertencem à (pré-)história da
relação de género capitalista. Cujo resultado histórico, no entanto, é o
desaparecimento e não a constituição ideológica da feminilidade, tal como ela é
analisada por Hausen. Assim desaparece, no entanto, uma imagem da feminilidade
que representa desintegração e ameaça. Na fase burguesa clássica por volta de
1800, pelo contrário, a feminilidade representa uma força protectora e reservada
(cf. Hausen 1976). Mas sem dúvida que, no decurso do processo de crise do
patriarcado produtor de mercadorias, o fantasma contrário e historicamente
passado constantemente regressa da sua latência, ou ressoa na ambivalência das
imagens masculinas do desejo e do medo (santa versus prostituta/bruxa).
NOTAS DO TRADUTOR
(a) Esse capítulo (15 parágrafos, 1135 palavras) foi
totalmente suprimido na tradução parcial para espanhol feita pela revista
Mania de Barcelona em 2000, na qual se baseia também a versão do texto
disponível em português.
(b) A Querelle des femmes desenvolve-se no
primeiro terço do século XVI, a partir de um escrito do juiz francês André
Tiraqueau de 1513. A controvérsia espalhou-se por toda a Europa e é dada por
concluída, no sentido machista da modernidade, por exemplo na Carta de Guia
de Casados, escrita em Lisboa por Francisco Manuel de Melo em 1650. Mas no
início da querelle ainda tal “carta de guia” era olimpicamente ignorada
por mulheres como, por exemplo, Leonor de Lencastre (1458-1525).
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Original ZUM
ANDROZENTRISMUS DER NATURBEHERRSCHENDEN VERNUNFT (TEIL 1) Dämonische und
mechanische Natur. Publicado na revista
EXIT! Krise und Kritik der
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nº 12 (11/2014), pag. 18-52, [EXIT!
Crise e Crítica da Sociedade da Mercadoria, nº 12 (11/2014)], ISBN
978-3-89502-374-3, 192 p., 13 Euro, Editora: Horlemann Verlag,
Lindenallee 9 , 16278
Angermünde , Deutschland, E-mail: info@horlemann-verlag.de,
http://www.horlemann.info/.
Tradução de Boaventura Antunes (07/2015)