Johannes Bareuther - O ANDROCENTRISMO DA RAZÃO DOMINADORA DA NATUREZA (1ª PARTE)


Natureza demoníaca e natureza mecânica
 
 
 
Quando, no século XVII, figuras como Francis Bacon, Galileu e Descartes formularam o programa e as primeiras versões dum novo conhecimento da natureza na forma de leis e da correspondente filosofia mecanicista, as atrocidades patriarcais da caça às bruxas atingiam o seu auge na Europa. O texto reflecte sobre esta coincidência histórica marcante. Revela-se que, na realidade, a ciência mecânica da natureza fica a dever-se essencialmente à socialização do valor que se impôs ao mesmo tempo, como já Eske Bockelmann demonstrou. Além disso, porém, também podem ser apontados os vestígios do crime fundador do patriarcado produtor de mercadorias, por assim dizer da “dissociação sexual original”, nas categorias e figuras da nova concepção da natureza. Vestígios que serão apresentados ao longo do texto, em conexão conceptual com a dialéctica entre a dominação interna e externa da natureza e a correspondente dinâmica do sujeito burguês masculino, podendo a dissociação sexual ser assim reconhecida como condição constitutiva da ciência moderna.  (Apresentação na Revista EXIT! nº 12)
 
 
 
1. A derivação da revolução científica feita por Bockelmann a partir da análise da forma de pensar * 2. Separações estruturais na relação com a natureza * 3. Francis Bacon como propagandista da razão dominadora da natureza * 4. A caça às bruxas como crime fundador do patriarcado produtor de mercadorias e o seu papel no estabelecimento da racionalidade científica * 5. Resumo e visão histórica
 
 
 
A crítica do valor e sobretudo da dissociação formou-se fora das universidades por boas razões e desde o início não reivindicou para si qualquer “cientificidade”, como quer que fosse entendida (reivindicou, sim,  verdade). A razão para isso não foi apenas porque a pesquisa em ciências humanas e sociais era em grande parte inútil como plataforma de crítica social radical (tanto mais que nas últimas décadas essa pesquisa se perdeu sobretudo a anunciar sucessivas “viragens” sem sentido, que muito prometiam mas pouco solucionavam). Foi sobretudo porque se desenvolveu uma crítica do conhecimento a partir do conceito de fetiche de Marx, per se incompatível com os padrões da ciência positivista, na medida em que, como crítica categorial da sociedade, colocava em questão as formas de ser e de pensar que também a ciência tem como sua base constitutiva. Roswitha Scholz, para além disso, desde a sua formulação inicial da tese da dissociação não só procurou radicalizar em termos feministas os elementos de crítica da racionalidade da teoria crítica de Adorno, mas também insistiu em que nem a racionalidade iluminista nem o moderno paradigma de domínio da natureza devem ser considerados sexualmente neutros (cf. Scholz 1992, particularmente § 7; cf. também Späth 2012).
 
O objectivo do presente ensaio é desenvolver estas conclusões fundamentais relativamente às ciências da natureza e aí acentuando particularmente a dimensão da dissociação sexual, mais do que tem acontecido até agora. Quando, por exemplo, Claus Peter Ortlieb apresentou em 1998 Aspectos de uma crítica das ciências matemáticas da natureza, o capítulo sobre a dissociação sexual era relativamente curto (a). Ele constatou de facto que a crítica das ciências da natureza, que é preciso levar a sério, “nas últimas décadas veio sobretudo do lado do feminismo” (Ortlieb 1998, p. 18), mas não desenvolveu qualquer debate com a literatura feminista sobre o tema, apenas sumariamente mencionada, o que também teria extravasado o espaço do ensaio. No texto que segue também não vai ser feito tal debate com as diferentes abordagens da crítica feminista da ciência. Em vez disso vamos proceder a uma revisão histórico-concreta – de modo nenhum exaustiva – da formação das ciências naturais modernas e da sua racionalidade do ponto de vista da relação de género, em que os estudos feministas sobre o tema constituem a fonte mais importante.
 
Para o efeito procura-se no primeiro capítulo, recorrendo aos trabalhos de Eske Bochelmans e Claus Peter Ortlieb, uma caracterização geral do modo de entendimento das ciências matemáticas da natureza e demonstra-se que este não só é historicamente único na sua especificidade, mas, além disso, fica a dever-se à ascensão do dinheiro a meio fetichista de síntese social. Embora tenha de ser salientado que a práxis da pesquisa concreta absolutamente multiforme fica tão pouco absorvida na forma de conhecimento analisada por Bockelmann como o processo da vida social real o fica na forma do valor, ou os indivíduos nos “caracteres sexuais” que lhes são exigidos, é preciso ainda assim insistir em que a forma lógica imposta pela relação dinheiro-mercadoria é antes de mais pressuposta ao pensamento, sem reflexão a priori.
 
Depois parte-se desta perspectiva para seguir as separações no interior da relação com a natureza. No seguimento de alguns temas da Dialéctica do Iluminismo, a racionalidade subjacente às ciências da  natureza iniciais pode assim ser problematizada como algo que, além das formas de pensar imediatamente sociais, inclui também uma tensa relação consigo mesmo. Ambas, formas de pensar e subjectividade burguesa, nascem de um processo de constituição histórica extremamente violento. A parte principal do ensaio trata deste processo e das marcas que ele deixou nos escritos de Francis Bacon e outros mentores da razão androcêntrica, bem como nas categorias das explicações mecânicas da natureza. O último capítulo esboça ainda como é que estas marcas foram apagadas no tempo histórico subsequente e porque é que numa pesquisa sobre a razão dominadora da natureza e o seu androcentrismo não se consegue encontrar nada. Multiplamente enredadas no processo histórico, as ciências da natureza diferenciadas terão de ser criticadas concretamente na sua história, bem como a importância que sempre lhes foi atribuída, tanto como força impulsionadora quanto como formas ideológicas de reflexão do desenvolvimento social. Com efeito, a sombra que os seus começos no século XVII, recalcados com muito boa vontade, lança sobre as esperanças e promessas de emancipação que lhes estão associadas faz com que também a sua história restante surja desde logo numa penumbra duvidosa.
 
A esta luz, não só aparece mais claramente a dominação fetichista com especificação sexual, mas também se pode começar a perceber porque é que as mulheres foram durante muito tempo excluídas da formação académica e das sociedades de eruditos da modernidade e ainda hoje estão sub-representadas em muitos campos científicos; porque foram silenciadas, ou quase, as contribuições científicas de não poucas mulheres, por elas apesar de tudo efectuadas no passado na educação ou na “instrução”, apesar de no seu tempo terem possivelmente encontrado reconhecimento; e, finalmente, porque é que a ciência, mesmo lá onde a participação das mulheres foi um facto, frequentemente desenvolveu a pesquisa à margem das necessidades do “contexto de vida feminino” (Ulrike Prokop), ou se autonomizou das intenções das cientistas mulheres. O arraigado androcentrismo da ciência não é apenas um epifenómeno de exclusão das mulheres e das suas perspectivas possivelmente diferentes por causa da sua socialização sexualmente específica, nem sequer o resultado da malícia de professores particularmente sexistas e que tais (que continuam a existir e não são poucos). Pelo contrário, ele é próprio da abordagem em si tecnocrático-objectivadora da natureza e da sociedade e pode, portanto, ser comprovado como resultado da dissociação sexual, mesmo nas “mais abstractas concepções teóricas” (Scholz 1992, § 5).
 
Assim, é preciso demarcar o conceito de androcentrismo deste modo esboçado do conceito vulgar. Uma determinada corrente dos estudos feministas salientou bastante que a exclusão das mulheres da ciência levou a estreitamentos de perspectivas e, por consequência, a uma autêntica distorção dos resultados. Há inúmeros exemplos, particularmente nas ciências sociais e na biologia. Uma vez que estas disciplinas pelo seu objecto têm a ver com sexo e relações entre os sexos, que também se “encontram” no reino animal e vegetal, também é muito fácil seguir nelas o rasto do androcentrismo em geral, por exemplo, quando (consciente ou inconscientemente) se comprova uma versão da relação de género socialmente dominante em contextos naturais sem fazer justiça incondicionalmente aos objectos. Poderá parecer que os ramos mais abstractos e formais da ciência, pelo contrário, estão acima de tal suspeita. Como haveriam de entrar na matemática ou na mecânica, por exemplo, hipóteses de fundo com especificação ou referência sexual? Os defensores positivistas destas ciências podem facilmente, a partir de uma crítica do androcentrismo restringida ao concretista, retirar a conclusão de que as especialidades criticadas justamente não correspondem aos ideais de objectividade distanciada e de rigor matemático, caso contrário tais distorções não seriam preponderantes. Por isso as correspondentes disciplinas também são designadas displicentemente por ciências “fracas”.
 
Pelo contrário, é preciso expor de seguida que justamente o ideal de objectividade e de rigor matemático que encarnou na física newtoniana, tomada como modelo há mais de cem anos, tem por pressuposto a dissociação sexual. Consequentemente, a mecânica não é menos androcêntrica do que as disciplinas “fracas”, pelo contrário, é-o tanto mais quanto menos deixa transparecer o processo de dissociação nos seus resultados e formas de exposição.
 
Este texto constitui a versão bastante desenvolvida de uma apresentação efectuada no seminário da EXIT! de Outubro de 2013 em Landau (Palatinado). Trata da origem da física moderna e da sua imagem da natureza. A segunda parte deverá abordar designadamente as modificações desde o fim do século XVII, o nascimento da biologia e da ideia de evolução, o regresso do orgânico como forma de pensamento e a cientificização da polaridade sexual. Não será de contar com ela no próximo número da revista.
 
 
 
1. A derivação da revolução científica feita por Bockelmann a partir da análise da forma de pensar
 
A revolução científica do século XVII não encontrou uma explicação suficiente durante muito tempo. Com bastante frequência nem sequer as suas especificidades foram correctamente apreendidas, ou seja, aquilo que é novo no novo, o que distingue as ciências da natureza dos modos de conhecimento passados. Como evidenciou Eske Bockelmann, falham tanto as explicações ditas internalistas como também as sociológico-externalistas do novo. Têm de falhar porque elas próprias se mantêm presas na forma de pensar incompreendida, cuja génese teriam de entender.
 
As explicações internalistas pressupõem o cognitivo como não social e tentam explicar o novo modo de conhecimento em termos de pura história do pensamento, a partir de uma história de desenvolvimento contínua das velhas filosofia e “ciência”. Não satisfazem assim a profunda ruptura epistemológica, a autêntica “revolução no modo de pensar” (Kant). As abordagens externalistas, por sua vez, invocam factores sociais, por exemplo, novas necessidades ou tecnologias, para esclarecer o novo modo de pensar e a nova visão. Pensamento e sociedade, interior e exterior também aqui são postos como estritamente separados e a influência de um no outro é pensada como puramente exterior. Bockelmann, no seu livro In Takt des Geldes [Ao ritmo do dinheiro], consegue refutar uma série de explicações de ambos os lados e dizer o essencial. A diferença entre interno e externo resulta do mesmo trabalho de pensamento que é preciso pôr a descoberto e ultrapassar. A nova forma de pensar é em si social porque a própria práxis social é em si cognitivamente mediada. Como se deve entender isto?
 
Bockelmann esboça uma série de mudanças fundamentais em diversos domínios culturais que se consumam no início do século XVII: na música e na poesia surge o ritmo do compasso, na filosofia, a separação sujeito-objecto, na matemática, a geometria analítica de Descartes e um entendimento completamente novo dos números (para mencionar apenas algumas). (1) O novo pensar e perceber o mundo surge em relativamente pouco tempo e consuma-se como reflexo involuntário. O então velho, por exemplo, a rítmica, enquanto relacionar proporcional de unidades de tempo completas entre si, ou os números, enquanto unidades de facto sem qualidade, mas ainda assim pensadas materialmente, está nessa época ainda presente, mas é sentido bastante repentinamente como simplesmente falso. As dificuldades em imaginar o auto-entendimento de antigamente ainda hoje existem quando se procura entender porque consideravam os antigos gregos o número Pi e, por exemplo, a √2 como números absurdos francamente impossíveis – razão porque eles ainda hoje não por acaso são designados por irracionais. O trato com estes números hoje é para nós natural. Mas, até surgir o que Bockelmann designa por “abstracção funcional”, os números eram ou um múltiplo do um (que por si não era um número, mas a unidade de base dos números), ou uma relação entre dois números inteiros, ou seja, para a concepção actual, fracções.
 
Ritmo do compasso, pensamento sujeito-objecto, o novo entendimento dos números – a partir de tudo isto (e mais) consegue Bockelmann agora mostrar que surge nessa mesma época e seguindo a mesma forma, ou seja, a de servir de síntese (no sentido de Kant), aquilo que é a relação dinheiro-mercadoria. No início do século XVII a expansão da economia monetária atinge um ponto de mudança, em que o dinheiro adquire uma nova qualidade, só assim se tornando enfim dinheiro em sentido moderno (cf. também Kurz 2012). É o próprio dinheiro que faz agora a síntese social; potencialmente qualquer pessoa tem de o manejar com regularidade para conseguir os meios, agora na forma de mercadoria, para a vida quotidiana ou para a simples autopreservação. O dinheiro também constitui com o contexto social uma abstracção de tipo completamente novo, abstracção que as pessoas têm de fazer inconscientemente. Dado que está relacionada com qualquer potencial objecto de uso, e mesmo com toda a vida, a relação dinheiro-mercadoria é em si sem conteúdo, chamando-lhe Bockelmann também “relação de pura exclusão”.
 
Na fase histórica do “valor absoluto” (Bockelmann 2004, p. 223) o dinheiro torna-se a “pura unidade”, o puro relacionar entre si de todas as mercadorias, as quais por sua vez se tornam “puramente relacionadas”, de conteúdo indiferente, meramente quantitativo (preço). Puro relacionar, como unidade separada, sem determinação, por um lado, e puro relacionado, por outro, estão tão estritamente referidos um ao outro como estritamente separados entre si. Estão numa “pura relação de contradição”, conseguem a sua própria definição apenas na negação, na exclusão de qualquer outro.
 
No trato com o dinheiro, segundo Bockelmann, todos os membros da sociedade aprendem esta abstração extraordinária, um pensar sem conteúdo, que se consuma por simples reflexo, assim permanecendo na sua forma inconsciente para os sujeitos. Por causa do vazio do seu conteúdo ele marca irreflectidamente todos os possíveis conteúdos. A sua estrutura é sempre a mesma, ou seja, a relação vazia entre função e variáveis: a relação, modificação e movimento, por um lado; o movido, modificado e relacionado, por outro. As ciências da natureza surgem porque e na medida em que também a natureza é repentinamente pensada nesta forma por volta de 1620, exemplarmente em primeiro lugar por Francis Bacon e Galileo Galilei.
 
Como Bockelmann mostra, Bacon exige que se lance o olhar para fenómenos que na história anterior eram menosprezados quando muito como secundários, procurando neles algo que não existe empiricamente. As aparências devem ser analisadas com os meios do entendimento, divididas entre o “processo oculto” (processus latens), por um lado, e o “esquematismo” igualmente oculto, por outro. Nos corpos, na sua figura última, incindível e invisível, deverá consumar-se um processo de acordo com leis, portanto também invisível como “actus purus”, que produz os corpos na sua aparência dada. Esquematismo e processo defrontam-se funcionalmente numa pura relação de exclusão: aqui a variável, excluindo a modificação, ali a modificação, excluindo a variável a que se liga (Bockelmann 2004, p. 286 sg.). Assim, a partir deste “apriori às próprias coisas” (ibidem, p. 286), se faz a ciência da natureza, melhor dizendo, a ciência da mecânica hoje designada como “clássica”, faltando no entanto ainda a matemática, a que Bacon era alheio, como se sabe. Também esta teria de ser revolucionada pela nova forma de pensar (algo já foi referido sobre isso).
 
Apenas a matemática funcional – Bockelmann diz “pura” – perfaz, aplicada à natureza, aquela ciência natural matemática e exacta de que aqui se trata. Ela distingue-se por um entendimento dos números que Bockelmann ilustra com a ideia da recta numérica. Os “números puros” da matemática da Idade Moderna já não são unidades substanciais, nem proporções ou múltiplos de um, mas sim pontos de um sistema de referência. Os pontos não têm dimensão, assim sendo por si nada. A recta numérica, como totalidade destes  muitos nadas sem fim, é por sua vez a referência geral dos pontos entre si. Apenas através dela, através da referência de um qualquer ponto a todos os outros, o ponto numérico se torna quantidade. “O princípio do número como unidade era o um; o princípio do número não unidade [= pura referência, J. B.] é o zero” (Bockelmann 2008, p. 46).
 
As consequências deste princípio do zero podem ser esclarecidas da melhor maneira no cálculo diferencial e integral. Em ambos os casos tem de se passar de certa maneira por cima da diferença entre quantidade discreta e não-quantidade punctiforme. O cálculo infinitesimal efectua este salto aproximando os pontos entre si infinitamente, até que eles quase coincidam em um, ou que a distância entre eles seja “infinitamente pequena” ou “esteja prestes a desaparecer”, como dizem as definições correntes das quantidades infinitesimais. Assim pode então uma curva ou função ter uma subida num ponto, embora uma subida só pareça pensável como relação entre dois pontos da curva. Do mesmo modo pode um círculo ser considerado como um “polígono com um número infinito de lados”, o que equivale à expressão “quadratura do círculo” (ainda que não à solução do problema matemático cuja insolubilidade se provou na modernidade): o círculo não é de uma qualidade que o distinga fundamental e categorialmente de um polígono.
 
Com isto a matemática também está em posição de separar completamente entre si quantidade e qualidade.  Até à Idade Média era impossível colocar um sinal de igualdade entre termos com denominadores diferentes ou combiná-los de imediato matematicamente. Apenas se relacionavam entre si proporções entre grandezas do mesmo tipo. Por exemplo: a relação entre duas distâncias é proporcional à relação entre os tempos em cada caso necessários (d1/d2 ~ t1/t2). A cinemática moderna, porém, elabora fórmulas como v=d/t, para escolher um exemplo simples. Aqui se relaciona directamente uma determinada distância com um tempo e se iguala a velocidade a esta relação (distância por tempo). Seja um troço de um percurso ou tempo, ambos são meros números e podem por isso ser tratados de modo puramente quantitativo. A diferença qualitativa daquilo que aqui se calcula apenas secundariamente entra em jogo – como unidade de medida (por exemplo, metros por segundo). Uma coisa impossível para um escolástico.
 
Também operadores e operandos se separam uns dos outros, em correspondência com a forma funcional, apenas na Idade Moderna. Como já foi referido acima, o número √2 era conhecido dos gregos a partir de contextos geométricos (diagonal do quadrado da unidade), ainda que também tivesse em si algo de pavoroso, por não se poder expressar como uma fracção. Mas até à Idade Média ninguém teve a ideia de desligar o operador-raiz daquilo a que é aplicado (operando) e agarrá-lo como operação independente (cf. Bockelmann 2004, p. 312 sg.).
 
A recta numérica, desdobrada no sistema de coordenadas cartesianas, dá depois a ideia do espaço contínuo e homogéneo (2) (o mesmo se aplica ao tempo linear, como recta divisível arbitrariamente). Nele ocorrem também movimentos contínuos das mais pequenas partículas regidos por leis . De acordo com a abstração funcional, estas partículas nem sequer minimamente pequenas deverão ser. As leis dos mecanismos que lhes estão ligados em rigor vigoram apenas para pontos de massa sem extensão. Se, portanto, as ciências correspondentes a esse carácter da abstração funcional são designadas por “ciências exactas”, então a natureza real dificilmente pode evitar a mácula de não ser perfeitamente exacta. O conceito de lei da natureza não designa qualquer eventual regularidade ou periodicidade da natureza – como, por exemplo, que o sol nasce e põe-se todos os dias – mas sim um desenvolvimento de um movimento ou de uma modificação descrito exactamente na forma de uma função matemática (separado do objecto do movimento/modificação, em correspondência com a forma funcional).
 
A natureza, portanto, de acordo com o apriori mecanicista da ciência moderna, não deve ser na sua essência mais íntima nada senão um contexto funcional (3) matemático fechado de leis. Descobri-las completamente é a tarefa da comunidade científica; qualquer contribuição para isso é considerada um progresso. Na experimentação aproximamo-nos ajustadamente, ou melhor, o mais amplamente possível da natureza naquela forma do processo que se desenvolve regido por leis, forma a que ela corresponde tão pouco na figura presente. A natureza, que antes surge numa aparência caótica, é interpretada como resultado do efeito conjunto simultâneo de múltiplas leis. A práxis experimental visa, portanto, analisar uma parte da natureza, de tal maneira que o processo e as leis que nele actuam possam ser isolados e estudados na sua “forma pura”. Tem de ser possível distinguir, quantificar e medir diferentes factores, de tal modo que seja possível modificá-los e recombiná-los à vontade um por um. A experimentação não é um simples ensaio estranho, na medida em que é sistematicamente exercida, sendo a adaptação dos factores conseguida numa longa série de tentativas e medições; nem é uma observação meramente contemplativa, como pretende o empirismo. Trata-se, sim, de uma observação da natureza controlada e na maior parte dos casos também mediada por instrumentos de toda a ordem, sob condições elas próprias criadas. Antes da observação há uma intervenção constitutiva e a observação acaba por desembocar novamente em que “a técnica é a essência desta ciência” (Horkheimer/Adorno 2002, p. 10). Ela apresenta-se como neutra, mas, justamente na sua ausência de objectivos, é de carácter instrumental, nomeadamente disponível para ser utilizada para qualquer objectivo. “Na medida em que se consegue isolar factores individuais, estes podem depois ser reagrupados à vontade e sintetizados em sistemas técnicos” (Ortlieb 1998, p. 11) 
 
Se pensarmos que ao dissecar analiticamente a natureza se abstrai sempre necessariamente das qualidades, que não podem ser representadas nos contextos funcionais matemáticos, tornam-se óbvios os potenciais destrutivos deste modo de conhecimento e da sua práxis. O não tido em conta em primeira instância chama a atenção em primeiro lugar para que a teoria matemática geral – e a construção de teorias cada vez mais gerais é o fim declarado da ciência pura – não é imediatamente utilizável para casos concretos de aplicação e por isso tem de ser especificada, por exemplo, quando grandezas que na teoria são postas como constantes ou negligenciáveis são agora assumidas nas fórmulas, ou quando tem de se experimentar outra vez, para provar, por exemplo, a aptidão de determinados materiais para um fim qualquer. Além disso surgem no domínio de aplicação efeitos que na construção dos agregados técnicos não foram pensados ou foram considerados negligenciáveis, mas que causam problemas a longo prazo (pressão sobre o ambiente, alterações climáticas, resistências aos antibióticos etc.). Neste sentido o domínio da natureza produz natureza potencialmente descontrolada, que fatalmente deverá ser ela própria posta sob controlo através de ainda mais domínio da natureza – uma aventura obviamente sem perspectivas. A partir desta experiência, no século XX diversos autores e autoras exigem um conhecimento da natureza diferente, abrangente, menos isolador. No entanto, enquanto se mantiverem a forma de pensar funcional e a sua base social, esta exigência, a ser tomada a sério (o que, considerando os omnipresentes constrangimentos práticos e imperativos empresariais, só será possível condicionadamente) conduzirá na melhor das hipóteses a contextos funcionais mais complexos e mais abrangentes. Mas também estes não poderão abranger completamente a natureza. A pretensão de holismo, assim, se os seus/suas representantes além disso não tomarem o caminho abertamente irracionalista do esoterismo, atola-se no fantasma de uma natureza completamente controlável, que partilha com a irracionalidade contra a qual está orientada.
 
Lei, experiência e progresso são os três conceitos com que Bockelmann distingue acertadamente a ciência moderna dos anteriores modos de conhecimento, em ligação com Edgar Zilsel. A pré-modernidade, nos seus diferentes esboços do cosmos, conhece uma ordem eterna da natureza, mas não “leis naturais” de tipo matemático. Também o progresso, como algo que ocorre no tempo linear e abstracto, lhe é estranho. Tão pouco o trato prático com a natureza (que além disso é preferentemente objecto de observação contemplativa e ponderação racional) tinha antes da Idade Moderna o carácter de análise experimental com o objectivo de síntese conceptual, matemática e técnica. Tudo isto surge apenas no decurso do século XVII, nas condições da socialização do valor.
 
Bockelmann deduz a sua “abstracção funcional”, e com ela aquela forma de pensar que possibilita as ciências da natureza, da esfera da circulação, assim sucumbindo à mesma aparência em que já antes dele tinha caído Sohn-Rethel. As determinações formais do capital, que na esfera da circulação são simultânea e imediatamente formas de pensar, apresentam-se como totalmente neutras em termos sexuais. Mas se questionarmos a relação de género, teremos de, como Elvira Scheich (1993), que parte criticamente de Sohn-Rethel, alargar o entendimento de Bockelmann do contexto de forma do dinheiro e forma do pensamento e acrescentar à crítica da “socialização formal” (Sohn-Rethel) uma crítica da socialidade da relação de género dela dissociada e inconsciente (sendo que não se trata de um mero alargar ou acrescentar, mas sim de modificar o entendimento do contexto global). É preciso questionar, por exemplo, que processos histórico-sociais acompanharam a formação das determinações formais da circulação, que parte tem aí a relação de género e como correspondentemente se constituíram a forma e o conteúdo das ciências da natureza. Entretanto é preciso estar preparado para o facto de a conexão entre género ou feminilidade e ciência não dever estar tão persuasivamente na lógica da dedução como a abstracção funcional. Para além do modo de conhecimento do universalismo androcêntrico, só é possível de certo modo uma prova indiciária das mediações sexuais no interior da razão dominadora da natureza.
 
 
2. Separações estruturais na relação com a natureza
 
Bockelmann evidencia de passagem repetidamente quão absurdo é na realidade o facto de a riqueza do conteúdo concreto-sensível e da natureza fenomenológica dever ser encaixada na forma da abstracção funcional, nesta reciprocidade vazia de função e variável, de 0 e 1. Mas não se detém minimamente a pensar na questão de saber o que acontece com aqueles aspectos do processo da vida social e da relação com a natureza que não ficam de facto absorvidos na lógica formal transcendentalmente pressuposta do dinheiro. Com a teoria da dissociação-valor, é preciso partir da tese de que estes conteúdos, atitudes e actividades são entregues “à mulher”, num acto de violência projectivo e simultaneamente bem firme, e no plano cultural-simbólico são atribuídos a uma “feminilidade imaginada” (Silvia Bovenschen) (cf. Roswitha Scholz 2011, p. 21 sg.). A fim de apanhar a pista da dissociação sexual na ciência ou na racionalidade que lhe está subjacente vou seguir em primeiro lugar as separações no interior da relação com a natureza acabada de esboçar e de seguida colocar esta em conexão com os chamados processos histórico-sociais dos séculos XVI e XVII e com afirmações de Francis Bacon e outros.
 
A separação mais notória é a própria abstracção funcional. Como pura determinação da relação ela separa, como já foi referido diversas vezes, todos os conteúdos em contraposição de pura relação e puro relacionado. Por isso, para a mecânica clássica a natureza apresenta-se como matéria passiva, inerte e morta, por um lado, e contexto funcional matemático de leis incorpóreas com efeito sobre o corporal, por outro. Pode ser natural supor aqui já uma conotação sexual: a “materia” tem não por acaso a “mater” na raiz da palavra, e a passividade foi desde sempre exigida à mulher burguesa, enquanto o espírito activo, formador da matéria e que a põe em movimento, bem como a matemática como seu mais elevado meio de expressão e de conhecimento, tinham e têm conotação masculina.
 
A etimologia do termo matéria aponta de facto para uma conotação sexual, sendo esta já pré-moderna e continuando no século XVII a fazer-se sentir de modo completamente ambivalente. Enquanto a matéria, como matéria-prima, constitui o princípio “feminino” na natureza, ela pode ser posta numa posição subordinada face ao princípio formal “masculino”. No entanto, nem isso é inevitável, nem ela é encolhida de forma tão indeterminada a um ponto de massa como a mecânica clássica a apresenta. Pelo contrário, o “feminino” é parte integrante, indispensável e constitutiva dos processos da natureza, apresentados no seu conjunto nas analogias sexuais do fecundar, procriar e dar à luz. O que pode acontecer de modo sexista, como em Aristóteles, Galeno (4) e alguns autores do século XVII, ou com um ímpeto igualitário, como em Paracelso e nos alquimistas na sua sequência. Estes últimos identificavam as forças da natureza simbolicamente com princípios “masculinos” e “femininos”, que na sua combinação perfeitamente igualitária permitiam aqueles resultados a que aspiravam as experiências alquimistas e que se desenvolvem sozinhos na natureza. Para os primeiros, pelo contrário, o princípio feminino, a matéria amorfa, é considerado sem vida e sem actividade. Assim descreve por exemplo Robert Hooke a matéria em 1682, recorrendo a Aristóteles, como “being in itself without Life or Motion, without form and void, and dark, a Power in itself wholly inactve, until it be, as it were, impregnated by the second Principle [Motion]” (citado em Potter 1989, p. 140). Por muito informe e “obscura” que a matéria seja, ainda assim ela é um “poder” (Power) com o qual o princípio “masculino” do movimento, “wich may represent the Pater” (ibid.), tem de se unir.
 
Abstraindo do facto de em Hooke já estar o conceito de movimento mecânico no lugar do conceito aristotélico de forma, nem nele nem em Aristóteles ou nos alquimistas a separação entre matéria e forma/movimento é tal que a matéria se tivesse tornado um puro relacionado perfeitamente indeterminado, no sentido da abstracção funcional: Hooke ainda tem pelo menos de descrever a sua indeterminabilidade com numerosas palavras como “obscura” etc. A união de matéria e forma, além disso, é ela própria ainda uma união necessária, nas metáforas do processo interpretado sexualmente (impraegnare significa também “engravidar”) e por sua vez de certo modo material, tal como nos alquimistas. Interessante é neste contexto o resultado das pesquisas de William Harvey sobre os processos de fecundação dos animais. Harvey, um importante naturalista inglês, conhecido sobretudo pela descoberta da circulação sanguínea, anunciou em 1651 que o sémen masculino não se uniria com o feminino, mas actuaria estimulando-o (designadamente o óvulo) através de uma força remota, semelhante ao magnetismo (cf. Merchant 1987, p. 172 sg.). Para ele a combinação já não aparece como processo natural de união. O “masculino”, na sua actuação, já está desmaterializado e separado da matéria.
 
Se o referido processo em que a natureza é subsumida na forma de pensar funcional está concluído no fim do século XVII (voltaremos de seguida às suas fases intermédias), também a conotação sexual de matéria e forma desaparece, na medida em que também desaparece da natureza o “feminino” com qualquer determinação qualitativa da matéria. O que resta é uma máquina, como constata mordazmente Genevieve Lloyd:
 
“De acordo com esta nova imagem, o mundo não tem espírito, embora seja organizado e reconhecível como produto de um criador racional. Ele obedece a leis que devem ser entendidas; mas, contrariamente ao ponto de vista dos gregos, não está ocupado pelo espírito. A natureza não é interpretada por analogia com um organismo, que inclua em si os seus princípios de movimento inteligíveis, mas sim por analogia com uma máquina: como objecto de conhecimento científico ela não é entendida no sentido de princípios compreensíveis do que é material, mas sim como mecanismo.” (Lloyd 1985, p. 14)
 
Como mecanismo, a natureza, no quadro das suas leis e do conhecimento que delas se tem, pode ser manipulada e explorada à vontade. A imagem pré-moderna da natureza como organismo animado e mãe que alimenta, pelo contrário, implicava uma certa limitação ética da exploração da natureza considerada admissível. Naturalmente que a identificação da mulher com a natureza na pré-modernidade já é patriarcal, mas as suas consequências são ambivalentes. A natureza tanto podia ser venerada como sustentadora quanto – em caso de catástrofes naturais – condenada como “devastadora” vingativa. Enquanto a natureza no Renascimento ainda surge como organismo animado, penetrado pelos espíritos, o espírito humano não se dirige a ela de forma dominadora e exterior. Em vez disso há uma multiplicidade de relações com a natureza, mágicas e de simpatia (que nessa medida também não podem sem mais ser abrangidas por um conceito). A alquimia, por exemplo, parece estar próxima do método experimental, mas é levada a cabo por elementos mágicos. As experiências por ela desenvolvidas incluem todo o tipo de feitiços e acções simbólicas, com a ajuda dos quais se pretende possibilitar uma espécie de comunicação com as forças da natureza.
 
O novo pensamento mecanicista já não reconhece qualquer espírito na natureza, a não ser talvez o puro espírito divino das leis matemáticas a que ela obedece. Mas este é um espírito com o qual, no entanto, já não é possível entendimento, pelo menos no quadro da própria práxis científica relacionada com a natureza, por causa do seu carácter puramente formal. A natureza deve ser objectividade cega, sem alma e sem vontade, e também nesta objectividade deve poder ser reconhecida. Para o efeito a experiência tem de ser orientada em conformidade. Com isto está identificada a segunda separação óbvia: a separação sujeito-objecto. Pois o sujeito do conhecimento pressupõe o método experimental, mas não é como tal parte integrante da natureza. Por isso ele tem de excluir de si tudo aquilo que a natureza é ou parece ser; tudo o que poderia perturbar  a construção da experiência e falsear o conhecimento. A separação sujeito-objecto envolve o dualismo espírito-natureza mais uma separação: a separação entre natureza interna e externa, por sua vez sobreposta à separação entre natureza dominada e não dominada.
 
A natureza externa dominada é reconhecida nas suas leis, portanto tecnicamente (re)produzível; não dominada, apenas ainda não o é. Ainda não – o que significa que ela já está formalmente subsumida na abstracção funcional; está submetida na ideia a leis que apenas ainda é preciso interpretar na experiência e finalmente representar em equações matemáticas. Mas, no processo de génese da forma de pensar funcional, de certa maneira na “acumulação primitiva da capacidade cognitiva burguesa”, encontramos, para além disso, uma natureza que simplesmente é não dominada, sem lei e caótica e, como se verá de seguida, é condenada como demoniacamente feminina. Para que ela possa surgir como não dominada e sem lei, no entanto, é preciso que no mesmo momento nasça, ou melhor, tenha nascido a ideia do domínio e da lei da natureza. Isto é comparável com a imposição do “trabalho abstracto” (Marx). Quando “o trabalho” foi subsumido formalmente ao capital, pôde também ir sendo progressivamente subsumido realmente. Mas o que neste caso foi formalmente subsumido, na sequência do acto constitutivo de violência e expropriação, não era até aí o “eterno trabalho naturalmente necessário” como parece em retrospectiva. Do mesmo modo, antes do estabelecimento da razão patriarcal-capitalista, a natureza não estava apta nem carenciada do domínio. Quando muito podia ser apaziguada com ofertas sacrificiais, ou iludida com artesanato (tekhne).
 
Explicando sucintamente: iludir é a tekhne no sentido do grego antigo (em rigor há uma multiplicidade de variantes deste conceito), porque leva a natureza a fazer algo que ela não faria sozinha, por exemplo, levantar um peso ou fazer voar uma pedra pelo ar. Está assim em oposição com a natureza. O pensamento mecanicista dos séculos XVII e XVIII, pelo contrário, concebe a natureza como algo em si técnico, como uma máquina muito complexa. O domínio consiste em tornar a natureza igual a esta forma de pensar, ou seja, igualar conceito e lei (o que apenas se consegue sempre parcialmente). O “domínio da natureza” assim entendido nem é um conceito moral, nem desce sobre a Terra logo com qualquer pazada. No primeiro caso seria contraposto ao entendimento tecnocrático da natureza um entendimento romântico, que faz da natureza sujeito de modo quase mítico, dotado de uma vontade que se pede que seja respeitada. No segundo caso, qualquer trato prático com a natureza desde que há memória dos homens se tornaria no fundo um acto de domínio da natureza, que por sua vez surgiria a condizer como necessidade natural ou parte integrante da conditio humana. Esta última hipótese é sugerida por uma interpretação bastante divulgada da Dialéctica do Iluminismo e por uma série de afirmações de Adorno. Mas se o “mito” já fosse “esclarecimento”, se a vítima já fosse troca e a “astúcia” já fosse domínio da natureza interna (Ulisses como sujeito burguês) e externa (tecnologia), então o domínio da natureza já não poderia ser criticado nem possivelmente abolido de forma historicamente concreta, como problema da sociedade actual, mas apenas lastimado como destino trágico, no quadro de um lamento civilizacional pessimista. (5)
 
Para se poder reconhecer a natureza externa nas leis que lhe são imputadas (formalmente), ela tem de ser objectivada (realmente) na experimentação. Este processo exige um sujeito que seja capaz disso, pelo facto de ele próprio se submeter às estritas regras do trabalho científico. “A intervenção activa na natureza feita na experimentação é em primeiro lugar uma acção do experimentador sobre si mesmo, nomeadamente o desligar da sua corporalidade e dos seus sentimentos.” (Ortlieb 1998, p. 16) Pode-se acrescentar que também a capacidade de imaginação, com as suas conclusões irreflectidas e especulativas e as suas imagens atravessadas pelo medo e/ou pelo desejo, tem de ser mantida em limites estreitos. Assim, para Bacon, os seus precursores incapazes do domínio da natureza (sejam os escolásticos aristotélicos, sejam os filósofos da natureza e mágicos herméticos ou neo-platónicos) também surgem como penando no reino da fantasia. A fantasia, a cujas aberrações segundo Bacon pertence particularmente a ideia de uma natureza animada, tem de ser disciplinada, a sensibilidade tem de ser padronizada para produzir a objectivação da natureza. As “terríveis provações a que a humanidade teve de se submeter até que se formasse o eu, o carácter idêntico, determinado e viril do homem” (Horkheimer/Adorno 2002, p. 40) são, portanto, o pressuposto não só da capacidade de sociedade, mas também da capacidade de conhecimento neste sentido, e algo disso se repete ainda em toda a educação básica. A constituição do sujeito burguês no início da Modernidade é a condição para o desaparecimento da natureza simplesmente não dominada em favor da natureza só ainda não teoricamente conhecida nem praticamente dominada.
 
Esta dialéctica do domínio da natureza interna e externa pode ser observada ao longo dos escritos de Francis Bacon, no que posso recorrer à exposição de Katrin Braun e Elisabeth Kremer (1987) entre outras. Elas relacionam Bacon, juntamente com Descartes, com um tipo de conhecimento ascético e seguem as mediações sociais e sexuais no interior do pensamento mecanicista em diferentes planos.
 
 
3. Francis Bacon como propagandista da razão dominadora da natureza
 
Bacon, que viveu de 1561 a 1626, pode ser considerado como exemplo de sujeito burguês primordial e mentor da razão dominadora da natureza. É célebre a sua exigência de um saber coincidente com poder e utilidade, porque e na medida em que não resulta da especulação, mas da observação indutiva, ainda assim filtrada pela razão, e da práxis experimental; igualmente influente é a sua exigência de submeter a natureza obedecendo às suas leis. Críticas feministas da ciência, como Evelyn Fox Keller, chamaram a atenção particularmente para as metáforas sexuais e de género que se podem encontrar na sua obra. A natureza a submeter é nele quase sempre caracterizada como feminina e é demasiado óbvio que o “casamento casto e legal entre espírito e natureza” por ele exigido é patriarcal, como já notaram Horkheimer e Adorno (2002, p. 10).
 
No entanto não é a natureza per se que Bacon descreve nas metáforas da feminilidade. Segundo Carolyn Merchant, ele distingue três estados em que a natureza se pode encontrar: liberdade, erro e servidão:
 
“Pois a natureza ou é livre e explica-se pelo seu curso habitual, como nos corpos celestes, nos animais, nas plantas e em toda a imensidão da natureza; ou é posta fora do seu estado, através de anormalidades malignas de uma matéria incontrolável e da violência de obstáculos, como nos nascidos anormais; ou, finalmente, é controlada, configurada e por assim dizer renovada através da arte e do trabalho humanos, como se pode ver nas artes [técnica, J. B.].” (cit. em Merchant 1987, p. 181) (6)
 
No estado de liberdade, a natureza é o objecto da astronomia ou da história natural, um sistema científico que classifica, descreve, retrata e ordena as plantas, animais e minerais (mas não os explica histórico-genealogicamente, como as teorias evolucionistas posteriores, nem os investiga na sua estrutura orgânica interna). O estado de servidão, por sua vez, é atingido na experimentação. Sob condições de preparação técnica, a natureza é objecto da nova física, da mecânica que “por assim dizer a renova”, reconstruindo-a como máquina. “O segundo estado”, diz Merchant, “é necessário para explicar as malformações e monstruosidades, que ocorrem frequentemente e não podem ser causadas pelo próprio Deus nem por outro poder superior actuando às ordens de Deus” (ibid.). Tem de haver uma razão para que nem tudo corra bem na bela natureza de Deus, e Bacon vê-a na própria matéria, não na acção de demónios ou bruxas maus. A matéria, caracterizada como feminina, terá em si designadamente uma tendência para a “dissolução do mundo” e para a “recaída no antigo caos” (ibid.). Identificar a matéria com o “princípio feminino” na natureza é algo mais pré-moderno, como foi referido acima. Mas atribuir-lhe uma disposição para destruir a ordem (em vez de meramente passiva!) não é pré-moderno nem moderno. Corresponde, sim, à violenta ruptura entre a Idade Média e a Idade Moderna, uma constelação histórica em que as mulheres tanto foram responsabilizadas pela queda da antiga ordem dominante quanto foram difamadas como ameaça para a nova ordem. (7)
 
Para Bacon, a natureza não é feminina no seu todo, mas apenas enquanto não dominada, isto é, na medida em que se apresenta como anárquica, ameaçadora, difusamente múltipla e impura, enquanto, numa palavra, constitui o Outro do sujeito protocapitalista. Tanto Evelyn Fox Keller como Braun/Kremer citam uma passagem de Bacon em que a natureza de repente passa a masculina. É na experimentação, não, porém, porque ela aqui é submetida (é este o único aspecto visto por Merchant), mas sim porque surge aqui na sua forma mais pura. Acontece aqui, diz Bacon, “como se a natureza divina se alegrasse com inocência infantil no jogo das escondidas, em que ela se esconde para ser encontrada, e com típica impaciência espera ansiosamente pelo espírito humano para se juntar a ele neste jogo” (8) (cit. em Keller 1986, p. 44). “The divine nature” torna portanto o espírito humano (igual a masculino) “his playfellow”, num jogo inocente que tomou o lugar do acto de dominação antes descrito como invasivo e normalmente violento. A natureza é masculina naquilo que a sua cognoscibilidade assegura: como racionalidade, enquanto aquilo que é idêntico a Deus, à criação e ao ser humano, tal como ao soberano, ao direito e ao sujeito jurídico.
 
Mas, antes que a natureza se revele na pureza das leis divinas, o cientista tem de purificar o seu próprio espírito. Com isto vou começar a falar sobre a anunciada dialéctica entre dominação da natureza interna e externa. Em Bacon, como igualmente em Descartes (1596-1650), começa o verdadeiro conhecimento, com a dúvida bem entendida sobre os recursos científicos tradicionais e sobre a certeza enganadora da aparência imediata. As antigas autoridades teriam de ser ultrapassadas e a mente submetida a um entendimento purificado. Neste ponto Descartes é ainda mais radical do que Bacon, que é considerado antepassado do empirismo e queria corrigir e padronizar a sensibilidade através de instrumentos. Para o racionalista Descartes a racionalidade é tão hostil à sensibilidade que nas suas Meditationes até nega o próprio corpo e procura a verdade somente na razão, na lógica e na matemática (cf. Braun/Kremer 1987; Federici 2012, p. 169 sg.).
 
Bacon repudia a filosofia natural aristotélica mais antiga, tal como também a hermética mais recente, por causa da sua “infertilidade” nas questões do domínio da natureza e não só. Considera-as simultaneamente “enfatuadas” e “heréticas” (Braun/Kremer 1987, p. 6). A sua nova una scientia universalis, pelo contrário, é sóbria e está de acordo com a doutrina cristã, na sua versão protestante anglicana. Ela deve ser livre de qualquer envolvimento afectivo ou libidinoso. O investigador da natureza deverá ter cuidado sobretudo “com o que deleita e enternece particularmente o seu coração” (cit. ibid., p. 10). Assim, para Bacon, “a ciência que apenas aspira à satisfação” também “não passa de uma cortesã que só serve para o prazer e não para a fertilidade e para a reprodução” (ibid., p. 14). A procriação, portanto, é também a mais importante função do amor, no qual Bacon em geral pouco prazer consegue ter. Escreve ele nos seus ensaios que divulgam todo o tipo de máximas: “O amor conjugal reproduz o género humano, o amor amigável enobrece-o, mas o amor lascivo envenena-o e rebaixa-o” (Bacon 1979, p. 40). Por isso ele também aconselha:
 
“Os que não conseguem livrar-se do amor, o melhor é mantê-lo firmemente sob controlo e separá-lo rigidamente dos assuntos e negócios [actions] sérios da vida; pois quando ele se intromete seriamente na actividade profissional [business] de uma pessoa [men's], então ele emaranha a sua situação financeira [fortunes] e faz dela um ser que perde completamente de vista os seus objectivos.” (ibid., p. 39 sg.)
 
Na exigência da separação entre a esfera pública e a esfera privada Bacon está muito à frente do seu tempo. Mesmo se aqui não se fala da mulher é bem claro para onde aponta esta separação entre o “amor” e os “assuntos e tarefas sérios”: para a submissão da mulher ao poder matrimonial do homem e para a sua exclusão de todos os domínios em que a determinação masculina não admite qualquer distracção. O “enobrecedor” amor amigável entre iguais constitui, entretanto, um importante elemento para a instituição de associações masculinas da nova ciência, como a Royal Society, fundada em 1660 no espírito de Bacon (sem contar com os elementos de reforma social). Braun/Kremer escrevem sobre a função do privado:
 
“Enquanto o trabalho da mulher em privado assegurava a mediação entre razão e sensualidade e o casamento se tornava o meio de disciplinamento e socialização dos sujeitos, o trabalho e a sexualidade da  mulher, subordinados na esfera privada, constituíam um fundamento da relação instrumental com a natureza. Mas, antes de a mulher burguesa em actividade na esfera privada poder tornar-se um signo de harmonia e apaziguamento, tiveram de ocorrer processos seculares de expropriação e disciplinamento” (Brraun/Kremer 1987, p. 68)
 
De seguida é preciso acompanhar esses processos.
 
 
4. A caça às bruxas como crime fundador do patriarcado produtor de mercadorias e o seu papel no estabelecimento da racionalidade científica
 
“Enquanto Stevin, Kepler e Galileu colocam cautelosamente pedra sobre pedra no edifício actual das ciências naturais, desencadeia-se uma campanha de completa crueldade e terror, com instrumentos de tortura e ferretes, contra os diabos que espreitam por todo o lado.” (Mach 1987, p. 218)
 
O trabalho intelectual de Bacon, tal como o das outras figuras fundadoras da nova ciência, ocorre numa época histórica de mudança radical. Entre o começo da lenta decomposição da velha ordem feudal amenizada pelo catolicismo da Alta Idade Média, com o seu entendimento da natureza e da sociedade mais ou menos fechado e organicista (9), e o despertar revolucionário do fim do século XVIII, há séculos de violência. A soberania interpretativa da Igreja Católica na concepção do mundo é posta em causa pela reforma; por toda a Europa desenvolvem-se guerras religiosas em consequência disso; seitas religiosas radicais e movimentos de heréticos e heréticas levantam-se por toda a parte e são destruídos com violência brutal. Integram sobretudo pessoas que perderam os seus meios de subsistência, na sequência daqueles processos que podem ser incluídos na “acumulação primitiva”. Pessoas que foram lançadas num buraco histórico – para isso chamou Robert Kurz repetidas vezes a atenção – antes de serem transformadas no material humano enchouriçado pelo sistema capitalista nas casas de trabalho e nas casas de loucos da protomodernidade, nas manufacturas e finalmente nas fábricas industriais. Além disso constituiu-se um novo poder central universal na figura do Estado absolutista que tem muito menos em comum com o emaranhado de relações recíprocas de dependência e obrigação do feudalismo do que com a democracia liberal burguesa pela qual seria dissolvido.
 
A filosofia mecanicista do século XVII foi uma das múltiplas respostas à aflitiva procura de certeza e de harmonia pelas pessoas crescentemente atomizadas – e de facto a resposta que conseguiu impor-se, porque correspondia da melhor maneira às relações sociais e políticas. No quadro dela se move Hobbes, com a sua influente ainda que controversa apologia do Estado absolutista, bem como Descartes, com a sua concepção do corpo humano como uma máquina. Silvia Federici relaciona ambos os projectos filosóficos com “a regularidade e o automatismo… que a disciplina do trabalho capitalista exige” (Federici 2012, p. 172), fazendo notar no entanto uma diferença:
 
“Em Descartes, a redução do corpo a matéria mecânica permite o desenvolvimento de mecanismos de autocontrolo que tornam o corpo subordinado da vontade. Em Hobbes, por sua vez, a mecanização do corpo justifica a total subordinação do indivíduo ao poder do Estado.” (ibid.)
 
Escapa-lhe aqui, por causa da sua perspectiva de luta de classes, como uma coisa condiciona a outra. Não só “todas as capacidades corporais e capacidades de trabalho” são transformadas (ao proletariado) (ibid., p. 173), mas, justamente para satisfazer a dominação do Estado formalmente mediada, é exigido (também e particularmente) ao burguês que construa em si um eu de cuja vontade o próprio corpo tem de ser súbdito maquinal. A submissão obrigatória ao Estado exige justamente os “mecanismos de autocontrolo”. Daí resulta, no entanto, a diferença de classe em que os burgueses, que além do próprio corpo ainda têm propriedade, da qual podem dispor e que têm de preservar (uma vez que é capital, está sujeita à coerção de acumulação e às crises), não precisam de limitar o seu eu a ser um órgão de execução da coerção ao trabalho de resto externa. Daí que, a partir da “razão”, “educação”, cultura” e similares, eles defendem também a autoconfiança com a qual olham sobranceiramente, com desdém ou com paternalismo, para a populaça no fundo animalesca, a quem é preciso meter à força na cabeça tudo isso, na melhor da hipóteses de forma ainda apenas civilizadora.
 
A perda da certeza e da ordem social a que o pensamento mecanicista se opõe reflecte-se também na relação com a natureza dos começos da Idade Moderna. Desde o século XVI a natureza é cada vez mais descrita como caos e selva sem lei, que é preciso dominar, manter sob controlo e cultivar. Neste contexto é de grande importância a caça às bruxas, que ocorre também nesta época e não foi apenas da parte da inquisição católica, mas também foi promovida em todas as confissões sobretudo pela jurisdição secular. Não por acaso, também o influente teórico do Estado Jean Bodin escreve em 1580 um livro sobre a correcta condução dos processos contra as bruxas, opondo-se à pretensão de um médico de nome Johann Weyer de que as bruxas, em sua opinião “melancólicas doentias”, fossem entregues a tratamento médico em vez de jurídico (cf. Merchant 1987, p. 156 sg.). A fase alta das perseguições e execuções ocorre no período de 1550-1650. A maioria dos 40.000 a 60.000 atingidos em toda a Europa eram mulheres (cerca de 75 %, com excepção da Escandinávia).
 
As bruxas foram responsabilizadas pela anarquia da natureza e as mulheres em geral foram associadas à desordem e mesmo à violência (cf. ibid. p. 147 sg.). Merchant chama a atenção para uma série de imagens simbólicas dos séculos XVI e XVII que mostram as mulheres no estado de insubordinação, agressividade e violência contra os homens. Na sequência da Querelle des femmes (10) tornam-se mais frequentes as acusações contra o sexo feminino – que de modo nenhum ficaram sem resposta – por exemplo, em panfletos com títulos como Klagschrift wider die lusternen, faulenzenden, fürwitzigen und wankelmütigen Frauenzimmer [Escrito acusatório contra as mulheres lascivas, preguiçosas, atrevidas e inconstantes] (Joseph Swetnam, 1615). Nas imagens de reuniões de bruxas, aquelas reuniões nocturnas secretas, juntam-se estes elementos de forma mais condensada: uma natureza à solta e caótica, “que as mulheres governam com impulsos devassos e disparatados” (Merchant 1987, p. 151); estragos que a demoníaca associação feminina (11) faz ao resto da sociedade, na forma de venenos preparados (às vezes utilizando crianças mortas) e da associação quase sempre sexual com o diabo, representado por animais (tais imagens são povoadas sobretudo por bodes, gatos e sapos). A literatura sobre bruxas, então muito expandida, divaga sobre acusações de que a sexualidade feminina é supostamente insaciável e a todos devora, razão pela qual as mulheres também estão ansiosas por relações sexuais com demónios ou com o próprio diabo em pessoa. O mais conhecido e representativo neste aspecto é certamente o Hexenhammer [O martelo das bruxas], de 1486, que teve múltiplas reedições até ao século XVII.
 
As bruxas surgem como seduzidas pelo diabo para o pecado e simultaneamente como sedutoras, a cujo poder nocivo não deve sucumbir o homem temente a Deus e recatado, pois isso equivaleria para ele à castração. Uma acusação às bruxas era de que tornavam os homens impotentes, que lhes retiravam a capacidade procriadora ou lhes roubavam mesmo o pénis (cf. Federici 2012, p. 228 g.). A impotência corporal “correspondia à impotência moral”, a paixão sexual era um perigo tanto para a “autoridade do homem sobre a mulher” como para a “capacidade de autocontrolo do homem” (ibid., p. 232). Esta constelação aponta para o facto de a identificação da feminilidade com a natureza não dominada ser mediada pela dialéctica do autodomínio. A natureza externa torna-se pelo menos parcialmente superfície de projecção da interna, que tem de ser cada vez mais disciplinada sob a pressão dos processos de modernização e a coacção ao autoconstrangimento. Os desejos carnais são projectivamente repelidos, sendo combatidos nas mulheres enquanto objectivos potenciais da pulsão (cf. Scholz 1992, § 7). A natureza externa, da qual os inquisidores exigem o afastamento e que Bacon gostaria de submeter com dominação técnica racional, surge simultaneamente como feminina, o que aponta para os processos no sujeito: quem põe em perigo a sua estabilidade interna deve ser também responsabilizado pelas catástrofes no mundo exterior envolvente, tanto na natureza como na sociedade.
 
Esta constelação contraditória tem correspondência nas categorias da filosofia natural “atracção” e “repulsão”, que podem ser consideradas como reformulação mecanicista das relações de simpatia e antipatia que, segundo alguns filósofos do renascimento e alquimistas, entretecem a natureza. Para os mecanicistas é obviamente absurdo descrever os processos da natureza em termos antropomórficos de “amor” e “ódio”, de afecto e aversão. A sua pretensão, pelo contrário, é explicar todos os processos por forças de contacto mecânicas, por pressão e choque, ou seja, sem forças de atracção “por simpatia”. Para Descartes, por exemplo, a aparente atracção da Terra explica-se com o peso do ar que nos empurra para baixo e por sua vez é comprimido por todos os lados pela turbulência cósmica do espaço preenchido sem buracos vazios. Só com Newton – após o fim dos maiores processos contra as bruxas – a força de atracção obteve entrada na filosofia natural, como força actuando de acordo com uma lei, ainda que ela sempre tivesse em si algo de pavoroso, a suspeição de uma oculta força distante, e o próprio Newton por isso hesitasse em postulá-la como força fundamental da matéria, como sucedeu depois dele. Na literatura sobre bruxas e nos panfletos contra as mulheres desde o “Martelo das Bruxas”, mais uma vez os impulsos somáticos a que se devem a atracção e a repulsão coincidem: para a mania das bruxas, o mais profundamente repulsivo nas mulheres é justamente a atracção erótica por elas, porque põe em perigo a unidade do sujeito masculino, o seu isolamento do mundo exterior, que é preciso obter repressivamente. Aqui se mostra o conflito psíquico que surge como paradoxo, nomeadamente que “o sujeito masculino repele aqui com sadismo aquilo que tem de negar a si mesmo com masoquismo, isto é, que ele simultaneamente deseja o que repele, mas tem de o repelir enquanto desejado” (Bosch 2000, p. 116).
 
Os primeiros mecanicistas, como por exemplo Descartes, já atingiram esta identidade repressiva. Para eles já não havia atracção e tão pouco acreditavam pessoalmente no trabalho sobrenatural do diabo. (Apesar disso, no entanto, deram o seu acordo à perseguição por diferentes razões.) (12) Bacon pode por isso exigir  a investigação das obras das bruxas “não somente para o correcto julgamento das más acções e crimes, que os depravados desse tipo cometem, mas também para uma maior penetração nos segredos da natureza” (cit. em Braun/Kremer, p. 7), portanto envolver-se justamente com aquela natureza que para os clérigos e juízes das bruxas é considerada condenável e demoníaca. Para Bacon, contudo, justamente os processos das bruxas conduzidos pelas mais altas autoridades provam como é possível que “se entre num lugar sujo e não se fique imundo” (ibid.). Se os juízes das bruxas e os seus ajudantes podem nomeadamente investigar corpos nus de mulheres vezes sem fim, sem perderem a sua dignidade cristã nem sucumbirem aos poderes demoníacos, também se pode levar a cabo sem perigo experiências científicas na natureza.
 
O facto de a atracção poder regressar mais tarde corresponde à dialéctica da subjectividade masculina que não passa assim tão bem sem sequer um bocadinho do poder mágico feminino na dose certa. É preciso que o mesmo seja fornecido pelas donas de casa e esposas burguesas (moldadas primeiro violentamente, pela prática da perseguição, depois supostamente sem coerção) e na realidade “numa forma em que o dissociado possa ser novamente apropriado pelo homem enquanto domesticado” (Bösch 2000, p.117). Mas a repulsão parece manter-se preponderante na filosofia natural; pelo menos no desenvolvimento genético-conceptual das categorias, ela vai na maior parte dos casos à frente da força de atracção (cf., por exemplo, Kant 1997, p. 42 sg., AA 499). Além disso, de acordo com a solução da filosofia idealista por volta de 1800 (Kant, Schelling e, com limitações, também Hegel), ela está felizmente em equilíbrio com a força fundamental complementar, a atracção, de modo que a estabilidade da estrutura do mundo (e do sujeito) não é afectada – e isto sem aduzir como razão a sábia organização de um criador bom, como Newton ainda fazia cerca de um século antes.
 
A especulação psicanalítica acima formulada é naturalmente discutível (13) e atinge apenas uma dimensão dos complexos processos da caça às bruxas. Braun/Kremer dirigem o olhar para outra, que se refere imediatamente à relação entre os sexos e com a natureza:
 
“Na caça às bruxas […] a relação com a natureza mágica ou mimética é tornada tabu e proibida, sob pena da própria perdição. Na bruxa é apresentada a demonstração da pena que ameaça os que não se submetem à generalização social das virtudes ascéticas. A construção do sujeito burguês, o desenvolvimento de uma consciência internalizada, da introspecção e do autodomínio consuma-se com a separação forçada da mulher que se torna o lado obscuro do sujeito burguês.” (Braun/Kremer 1987, p. 67).
 
Tentava-se acabar com os modos anteriores de trato com a natureza e de apropriação dela, porque a ascese generalizada exigia agora o afastamento da natureza completamente demonizada, em benefício da orientação para Deus. Isto tinha de virar-se particularmente contra as mulheres, que tinham adquirido e transmitido oralmente conhecimentos no trato com ervas e coisas semelhantes, no quadro da medicina popular corrente e da arte de parteira. Diversas autoras feministas deram ênfase nas suas pesquisas ao facto de a caça às bruxas no começo da Idade Moderna ter sido também um processo de expropriação e destruição dos saberes de cura e de ciências naturais em torno do complexo sexualidade, contracepção, interrupção voluntária da gravidez e parto (cf. Braun/Kremer 1987,p. 106-117). Com o tempo, o lugar das parteiras foi ocupado por médicos homens, com a sua “formação especializada” (inicialmente bastante inútil), a que as mulheres não eram admitidas (cf. Federici 2012, p. 103 sg.). No decurso dos processos de modernização as parteiras foram, por um lado, submetidas à supervisão do Estado e da Igreja (ou seja, em ambos os caso, de homens) e postas ao serviço da política demográfica (14), depois de a obstetrícia, bem como os conhecimentos sobre contracepção e aborto, terem estado durante muito tempo firmemente nas mãos das mulheres. Por outro lado, foi-lhes geralmente negado o reconhecimento da sua profissão na forma de uma associação profissional autónoma, o que também excluiu em grande parte a formação e a formação contínua, em escolas superiores e profissionais (próprias ou já existentes). “Quando nas maternidades do século XVIII passou finalmente a haver ensino profissional para parteiras, esses programas foram feitos desaparecer pelos médicos que se limitaram a formar parteiras como virtuosas auxiliares médicas” (Schiebinger 1993, p. 163). Os médicos homens, por sua vez, fizeram do parto um processo mecânico, com a utilização do fórceps (cf. ibid., p. 375), e na sua prática rebaixaram sistematicamente o alto nível das anteriores parteiras relativamente a medidas higiénicas e à assistência médica e “psicológica” da mãe. Não é exagero afirmar que a elevada mortalidade infantil e materna até bem dentro do século XIX foi uma consequência de longo prazo deste processo patriarcal de expropriação.
 
A caça às bruxas é também a expressão violenta da tendência histórica geral que restringiu a área de acção e a autodeterminação das mulheres e as forçou ao papel dependente de esposa e dona de casa, depois de as suas funções no contexto geral da reprodução social e os seus direitos nos finais da Idade Média terem sido múltiplos em numerosos domínios. Evelyn Fox Keller salienta num capítulo do seu livro Liebe, Macht und Erkenntnis [Amor, poder e conhecimento] (1986) que precisamente os seguidores de Bacon, os pais fundadores da Royal Society, que parecem racionais e esclarecidos retrospectivamente, é que forçaram a caça às bruxas em Inglaterra no século XVII. Opuseram-se-lhes os seguidores de Paracelso, que se ligavam à alquimia com o nome de “Nova Ciência”, portanto a um trato mágico com a natureza. Ambos os grupos discutiam ainda sobre o que se devia entender por “Nova Ciência” e o seu conflito estendeu-se também à interpretação da magia, em que cabia à relação entre os sexos um importante papel.
 
Perfeitamente na linha de Bacon, os pais fundadores da Royal Society, como por exemplo Joseph Glanvill, advertiam para “o poder que as nossas afecções têm sobre o nosso entendimento tão facilmente desencaminhável” (cit. por Keller 1986, p. 60), identificando ele explicitamente as afecções com a feminilidade: não se consegue nada da verdade “enquanto o feminino governar” (ibid.). O objectivo da Royal Society, segundo o seu secretário Henry Oldenburg, será fortificar “uma filosofia masculina”. Os seus protagonistas dirigiam-se em veementes ataques contra os paracelsianos, que pretendiam perceber os processos da natureza “com o entendimento do coração”, processos que interpretavam como cooperação em pé de igualdade dos princípios “masculino” e “feminino”. Ambos estavam de acordo em que a natureza tem de ser tratada de modo prático-experimental, só que os alquimistas não lhe punham limites tão estreitos como os seus oponentes. Os membros da Royal Society, de acordo com a austera “filosofia masculina” própria, rejeitavam o seu entusiasmo, a componente erótica da sua aspiração ao conhecimento, bem como a sua negação da existência da bruxaria. Do ponto de vista dos alquimistas, as pretensas obras das bruxas podiam ser entendidas e investigadas como efeitos de magia natural, que não tinha em si nada de diabólico. O poder do diabo residiria apenas na tentação espiritual e não em efeitos físicos, dizia por exemplo John Webster. Para os seus opositores iluministas isto parecia uma tentativa de defender as bruxas da perseguição que lhes era devida.
 
Keller aponta para a estreita conexão entre bruxaria e sexualidade, que é preciso perceber neste debate no fim do século XVII. Ela mostra que a participação dos cientistas racionalistas na caça às bruxas é perfeitamente consequente. Para eles “os alquimistas eram perigosos não só porque eram religiosa e politicamente radicais, (…) mas porque estavam vinculados a uma ciência permeada por uma linguagem metafórica erótico-sexual e simultaneamente agarrados à igualdade simbólica das mulheres perante Deus” (ibid., p. 66). O radicalismo político (e também sexual) da tradição paracelsiana está na sua aliança com os movimentos heréticos de pobres que durante a guerra civil inglesa se rebelaram contra a ordem dominante e fundaram igrejas livres, com importante participação de mulheres. A exigência e ocasionalmente a prática da igualdade espiritual entre homem e mulher apoiava-se num entendimento da natureza que pode ser designado como “hilozóico”. Segundo ele a natureza é viva e a matéria é animada, atravessada pelo espírito de Deus. (15) Se Deus está em todo e qualquer ser humano, então não há qualquer limitação sexualmente específica da capacidade de conhecimento nem da actividade religiosa (o que, além da pregação, incluía também as actividades de administração da Igreja). Além disso desaparece a necessidade de mediação sacerdotal na relação com Deus, o que constitui um ataque à igreja nacional – equiparado em última instância a um ataque ao próprio Estado - “No Bishop, no King”. Segundo Elisabeth Potter (1989), a adopção e desenvolvimento em Inglaterra da filosofia natural mecanicista e atomista (inicialmente surgida em França em torno de Descartes e Gassendi) também foi pressionada por tais conflitos político(-sexuais). Os representantes desta orientação, como Robert Boyle (também membro da Royal Society), integravam os mais importantes reformadores burgueses e foram eles próprios influenciados durante muito tempo pelas correntes de pensamento hermético e mágico. Agora eles opõem consequentemente à imagem de uma natureza viva, defendida com intuito revolucionário, que a matéria é inanimada, passiva e inerte, e tem de ser posta em movimento exteriormente por Deus. Este “novo ponto de vista mecanicista” (Keller 1986, p. 68) impôs-se finalmente. Ele “cuidava de assegurar o domínio intelectual da masculinidade, excluindo a combinação mesmo alegórica de masculino e feminino – e tanto na sua imagem do cientista como na sua imagem da natureza” (ibid.).
 
 
5. Resumo e visão histórica
 
Ainda demorou até por volta do início do século XVIII até se estabelecer esta estabilidade mecanicista estável e a caça às bruxas poder acalmar. Na medida em que a constituição do sujeito nas camadas burguesas e nobres consegue um fundamento económico durável e em expansão, as mulheres são mais intensamente banidas para a esfera do privado, a natureza interna é disciplinada com a dissociação do feminino e a resistência contra os novos desaforos da disciplina laboral e do autodomínio é quebrada pelo Estado, nessa mesma medida a violenta projecção pode em grande parte desaparecer ou tornar-se latente. Nem as práticas de magia nem a esperança na sua eficácia acabaram realmente da parte das autoridades. A magia popular continuava abertamente no início do século XVIII e mesmo membros da Royal Society, como Newton, continuavam a gastar secretamente muito tempo e esforço em experiências alquimistas. A acusações de feitiçaria nociva deixam de ser apresentadas por pressão política, em vez disso sobem rapidamente os números dos “crimes vulgares” (cf. Federici 2012, p. 249). Com o tempo, “a intelligentsia europeia começou mesmo a fazer gala do nível de esclarecimento alcançado e a reescrever confiantemente a história da caça às bruxas: de tal maneira que as perseguições surgem como resultado da superstição medieval” (ibid., p. 251). Independentemente de se ter tratado de falsificação consciente da história ou de um esquecimento, que a nova forma de sujeito trazia inevitavelmente consigo, apenas no século XIX parece ter havido esforços para pôr a história em dia. Não por acaso Ernst Mach, o pai daquela forma decadente positivista da razão iluminista que domina até hoje a actividade científica, pode nessa época constatar retrospectivamente a simultaneidade do fanatismo violento e do desenvolvimento científico (ver acima) – naturalmente sem ver uma conexão interna e sem sequer mencionar quem foram as vítimas.
 
Na introdução poética de Edmond Halley aos Philosophiae Naturalis Principia Matematica de Newton, a “bíblia da mecânica clássica” (Max Jammer, cit. por Ed Dellian em Newton 1988, p. VII) exprime-se de certa maneira que já não vem qualquer perigo da bruxa. Diz-se aí:
 
“[…] Finalmente descobrimos aqui porque o argênteo Febo / dá passos desiguais, porque ele, que nenhum astrónomo ainda / conseguiu jamais domesticar, rejeita a rédea dos números / […] Nós conhecemos a força com que a inconstante Cíntia / empurra à sua frente o mar que volta a encher [...]” (Newton 1988, p. 7)
 
As figuras míticas de mulheres, como personificações metafóricas de forças da natureza antes obstinadas, surgem neste canto de louvor à genial clarividência de Newton já apenas como vencidas e domesticadas. A recordação de uma natureza magicamente antropomórfica ainda não se desvaneceu completamente por volta de 1700 (16), no entanto já perdeu grande parte do seu poder ameaçador, como o perderam as “mulheres bruxas”, e já está submetida à forma abstracta funcional – ainda que apenas em pensamento. Ao longo de todo o poema fala o excedente imaginário de dominação da natureza que caracteriza o mundo das ideias mecanicista. Antes de as ciências da natureza terem apresentado sucessos técnico-práticos em larga escala (o que aconteceu apenas no século XIX), a suposta descoberta das leis do cosmos (ou antes, da lei da gravidade) é fantasiada como dominação sobre elas. A natureza antes não dominada perde assim o seu carácter demoníaco. Uma vez que ela é apenas um simples mecanismo que ainda é preciso descobrir, ela torna-se a natureza simplesmente ainda não dominada.
 
A violenta projecção sobre a mulher-como-bruxa torna-se uma manifestação marginal, pelo menos no campo da ciência e da filosofia (antes e depois não completamente separadas). No entanto a sensualidade e sexualidade dissociadas continuam problemáticas. Se na propaganda da caça às bruxas elas eram combatidas  como “caracteres sui generis, mais carnais que outra coisa e por natureza perversos” (Federici 2012, p. 233, destaque no original), o desejo feminino ainda era tematizado por volta de 1735 (ao contrário de no século XIX). No “Universal-Lexikon” de Zedler a “concupiscência (enquanto feminina)” (Liv. 10, col. 637 sgs.) ainda é tratada como vício e doença, com muitos sintomas e graduações que é difícil identificar com segurança e podendo afectar qualquer mulher. As formas de expressão da “concupiscência” que causam preocupação ao autor anónimo “vão de tristeza, inquietação, inconstância de temperamento perante o impudor e discursos obscenos, até actos traiçoeiros, melancolia e fúria” (Schmid/Weber 1986, p. 153). Mesmo se aqui ainda transparecem temas da Querelle des Femmes e da literatura sobre bruxas, na figura da insaciabilidade do desejo feminino, as mulheres já não surgem como agressoras com capacidades sobrenaturais e demoníacas. No pretenso excesso libidinoso existe antes um problema constitucional e moral a precisar de tratamento médico e tratável – um problema das mulheres, da sua razão e virtuosidade próprias, menos dos homens ou da ordem social. Schmidt/Weber (ibid.) têm de reconstruir que também se trata de uma ameaça para os homens com base noutra entrada no léxico, onde se diz: “Abster-se razoavelmente da mulher serve muito para a nossa força e vida feliz” (Zedler, Liv. 46, col. 1784). Esta ligação já não é manifestamente evidente.
 
Uma vez que a projecção na mulher como bruxa regride ou assume formas sublimadas, a razão dominadora da natureza pode finalmente apresentar-se como sexualmente neutra. Enquanto os primeiros baconistas se serviam ainda de uma linguagem clara – palavra chave: “filosofia masculina” – no início do iluminismo torna-se possível, quanto às mulheres e aos direitos das mulheres, ter em conta a aparência sexualmente neutra do ideal da razão, contra a realidade patriarcal que surge como um simples anacronismo. Nesse sentido pôde haver temporariamente esboços de um “feminismo cartesiano” que considerava o sexo como mero acidente, na sequência do dualismo estritamente racionalista de corpo e espírito. O espírito, nas palavras de François Poullain de la Barre em 1673, não tem qualquer sexo que pudesse ser invocado para justificar a exclusão de metade da humanidade da vida intelectual (cf. Schiebinger 1993, 251 sg.). No entanto esta não seria a última palavra da burguesia emergente na filosofia e na ciência sobre a relação entre corpo e espírito, bem como sobre a posição e a função da mulher. (17)
 
Os primeiros tempos da razão dominadora da natureza e do seu suporte, o sujeito (proto)burguês, distinguem-se pela auto-submissão e submissão do feminino – constituído, aliás, apenas neste acto. No começo histórico e lógico da autonomia de pensar e agir, que a filosofia iluminista e os revolucionários burgueses haviam de aproveitar, está de pé a subordinação incondicional ao poder do soberano absoluto, que cada um tinha de internalizar e que tinha de ser reproduzido no interior da família como poder do marido (cf. Braun/Kremer 1987, p. 81. sg.; Federici 2012, p. 184). Enquanto a objectividade económico-social do capital ainda não está desenvolvida até à reconhecibilidade, até ser segunda natureza, o soberano personifica a generalidade social. O seu domínio racional sobre os indivíduos singulares equivale ao domínio de Deus sobre a natureza: ocorre em leis que fundamentalmente podem ser compreendidas, ainda que a sua origem se mantenha uma questão infundamentável de fé da respectiva obediência. Essa função do Deus transcendente, de assegurar a legalidade e reconhecibilidade da natureza e de lançar uma ponte sobre o abismo cartesiano entre espírito e natureza, é assumida em Kant no fim do século XVIII pelo sujeito transcendental. Paralelamente a isso, em Rousseau a soberania, antes personificada na pessoa do monarca, é objectivada na volonté générale e a riqueza começa a processar automaticamente, como “mão invisível” (Adam Smith) ou “sujeito automático” (Marx), para além das suas formas tangíveis.
 
O que acontece neste processo com o fantasma da feminilidade não pode ser aqui analisado detalhadamente. Note-se ainda assim que sob as condições da crescente objectivação das relações sociais, da internalização das virtudes burguesas e da dominação da natureza, agora em grande medida também realizada na prática, cresce o mal-estar com o conflito interior do sujeito e com a alienação da “natureza”. O mais tardar desde o romantismo, no início do século XIX, o sujeito masculino reclama para si tudo aquilo que antes fora reprimido a favor da razão calculadora bem como da capacidade de conhecimento e negociação e dissociado como feminilidade: experiência (da natureza) mimética e estética, “sensibilidade” e fantasia (cf. Späth 2012, p. 164-169). Como exemplo literário ao acaso veja-se Friedrich Hölderlin, que põe o seu Hyperion 1797/1799 a lamentar-se:
 
Ai se eu nunca tivesse ido às vossas escolas! A ciência que eu segui até ao fundo do poço da mina, da qual eu esperava com insensatez juvenil a confirmação da minha pura alegria, estragou-me tudo. Convosco tornei-me assim correctamente sensato, aprendi a distinguir-me profundamente daquilo que me rodeia, estou agora isolado no mundo belo, estou assim expulso do jardim da natureza onde cresci e floresci e a secar ao sol do meio-dia.” (Holderlin 1997, p. 14)
 
De modo perfeitamente exacto, a coerção de individuação e identidade (“aprender a distinguir-se”) é aqui posta em ligação com o método analítico da ciência. O protagonista espera da sua amada Diotima o regresso à natureza da sua meninice, guarnecida com as qualidades originais, Diotima que, bem de acordo com o ideal de amor romântico, deve ser portadora de todos os traços de que Hyperion se desprende segundo a sua auto-percepção. Depois de Diotima ter rejeitado a imagem ideal sobre si projectada significativamente ela morre no enredo do romance. O recuo da projecção masculina, que Holderlin como autor tem de ter visto claramente, não liberta assim a figura de projecção feminina dos desaforos da relação de género, mas anula-a novamente como pessoa autónoma (cj. Holfeld 2013). Isto remete, de resto, para um traço androcêntrico do próprio conceito de projecção. Como figura do pensamento crítico, ele é usado não por acaso muito antes de Freud, por exemplo, em Nietzche e na crítica da religião de Feuerbach e de Marx, sem que a relação de género aí tenha sido particularmente problematizada. Pelo contrário, ele parece mesmo reforçar as fantasias de autonomia masculina na sequência do iluminismo. Em caso extremo não deve existir nada de indisponível ou de transcendente que não possa ser reassumido soberanamente na própria subjectividade, que além disso se imagina possivelmente ainda a criar fora de si mesma, como “Eu absoluto” (Fichte).
 
Uma tese possível é que à mulher (burguesa), sob tais condições do crescente desenvolvimento capitalista, não cabe o papel de um recurso, que é preciso manter sob controlo e explorar no modus da dominação externa da natureza, (18) mas torna-se sim uma espécie de “prestadora de serviços”, como governanta da alma do homem. A sua acção na esfera privada deve mediar entre a razão masculina e o seu outro-imanente (sensualidade, emotividade, “amor”, …). Esta acção inclui actividade, mas ao mesmo tempo não deve aparecer como tal. Por isso também é apenas meia verdade o que Braun e Kremer (1987, p. 134) escrevem:
 
“Visto que a produtividade da mulher cada vez menos é determinada em confronto com a natureza externa, é assim possível que ela se torne responsável pelo confronto com a natureza interna e seu cultivo, podendo assim o sujeito masculino furtar-se ao confronto com a sensualidade.”
 
Com a sua tentativa marxo-feminista, que também se pode encontrar em Federici, de caracterizar o agir feminino como “trabalho” ou “produtividade”, tornando-o assim susceptível de reconhecimento, elas passam ao lado do carácter contraditório desta “actividade passiva” e da diferença qualitativa do dinamismo, diligente mas sem objectivo, porque – ao contrário do esforço masculino – meramente reprodutivo, pelo qual as mulheres se distinguirão (cf. Hausen 1976). O sujeito masculino (já) não se furta simplesmente ao confronto com a sua sensualidade (tanto mais que o disciplinamento da sensualidade tratado por Braun/Kremer também é uma forma de confronto). Pelo contrário, o problema é a tentativa de se tornar um “homem completo”, uma personalidade plenamente desenvolvida no sentido da antiguidade clássica, através da reintrodução no sujeito da sensualidade e da ligação com a natureza. A feminilidade é funcionalizada para esta mesma auto-referência masculina, enquanto medeia com as “forças emocionais” (como Kant as designa) já separadas entre si e assim coisificadas (sensualidade, capacidade de imaginação, entendimento, razão, desejo). Elvira Scheich (1993, 1995) também identificou a passagem da exclusão do feminino na mecânica clássica para a funcionalização do feminino no século XIX com base na biologia ou na teoria da evolução nascentes. Mas não posso aqui entrar nesse assunto. Em vez disso seguem-se para concluir algumas conclusões de síntese sobre a temática deste ensaio.
 
Parti da análise da forma do pensamento de Bockelmann que, com a sua lógica dedutiva e a sua fixação na esfera da circulação, permanece completamente no cosmos do universalismo androcêntrico. Com base nos escritos de Francis Bacon e outros, tornou-se claro que a razão dominadora da natureza não consiste apenas na pura forma do pensamento, mas inclui uma específica e tensa relação consigo e com o mundo, que teve de ser construída pela primeira vez na história. A formação do sujeito capaz de domínio experimental-racional da natureza foi de par com a formação do “carácter sexual” polarizado e hierárquico (19), com a expropriação violenta das mulheres das suas ciências naturais e com a limitação violenta dos seus campos de actividade. Na caça às bruxas do começo da Idade Moderna foram aniquiladas ou postas à margem as anteriores relações com a natureza juntamente com as suas portadoras. Simultaneamente resultava do seu desenvolvimento contraditório, não meramente delirante, mas contendo uma certa tendência racionalizadora, a razão mecanicista e formalmente abstracta. Enquanto, para os verdadeiros propagandistas da perseguição, natureza e mulher eram igualmente demoníacas, os mentores da imagem mecânica do mundo estabeleciam a dominação experimental da natureza como alternativa, inicialmente ainda explicitamente “masculina”, ao proscrito trato mágico com a natureza.
 
Nos escritos da fase de formação do patriarcado produtor de mercadorias e das ciências naturais pode constatar-se uma identificação projectiva entre feminilidade e natureza descontrolada, que não deixa qualquer dúvida de que a relação de dissociação sexual é inerente à razão dominadora da natureza. Todavia, o fantasma da feminilidade também é tão dinâmico nas suas funções para as ciências naturais como a estrutura da dissociação no seu conjunto. Não é possível fixá-lo de uma vez por todas porque a relação social com a natureza está sujeita à dinâmica da dissociação-valor. O modo como a relação de género se faz notar na ciência depende, portanto, do grau de desenvolvimento e da configuração das categorias reais sociais em cada caso, da imposição dos “caracteres sexuais” burgueses e da real dominação da natureza. Dependendo do sentido em que as separações e polaridades na relação social com a natureza são acentuadas e resolvidas, assim a feminilidade pode, por vezes, simbolizar a natureza não dominada e a selva, provocando ansiedade, e, outras vezes, ser alegoria do anseio pela pureza e inseparabilidade, no sentido de uma harmonia com a natureza original. Em ambos os casos não vem daí qualquer proveito para as mulheres reais.
 
 
 
 
 
 
NOTAS
 
(1) Limito-me aos contextos relevantes para as ciências da natureza e deixo de lado particularmente uma observação mais próxima do resultado extremamente surpreendente de que o sentido do ritmo, de acordo com acentuado / não acentuado, que nos parece tão natural, é específico da Idade Moderna – ou melhor, está ligado ao dinheiro. Michel Foucault, de resto, diagnosticou um profunda ruptura na mesma época, para a qual, no entanto, ficou em falta uma explicação. Uma leitura de As palavras e as coisas (1966) representa ainda assim um enriquecimento, dado que os campos de saber investigados são diferentes dos de Bockelmann (designadamente, linguística/gramática e história natural).
 
(2) O espaço foi definido por Newton como espaço absoluto, independente de tudo o que nele se encontra, enquanto o seu opositor Leibnitz insistia no carácter relacional da estrutura espacial. Com Bockelmann é fácil reconhecer que a disputa entre eles se desenvolveu no interior da forma de pensar funcional e que ambos se batiam por um dos lados da pura determinação relacional: Newton acentuava o lado da pura unidade do relacionar, que tem de preceder o relacionado, Leibniz pelo contrário acentuava a necessidade e prioridade do relacionado, sem o qual não pode existir relação.
 
(3) A identificação imediata da natureza com a matemática pode encontrar-se, por exemplo, em Galileu e Newton no século XVII. Mas foi rapidamente contestada por Diderot, por exemplo. Kant, por sua vez, viu claramente quanto a aplicabilidade da matemática à natureza e o pressuposto das suas leis sem falhas e completas servem de suporte a uma suposição metafísica infundamentável, que ele em todo o caso considerava simplesmente indispensável para qualquer conhecimento. No fim do século XIX, o mainstream das ciências naturais também se conforma lentamente com o facto de o formalismo matemático ser apenas uma aproximação modelar ou estatística à realidade (Cf. sobre isso Ortlieb 2008).
 
(4) Cf. sobre isto Tuana 1995. Justamente porque a reprodução sexual (e não, por exemplo, “o trabalho” ou o artesanato) dava simplesmente a imagem para a produtividade (um conceito, na verdade, certamente inaplicável) e era o paradigma da interpretação da natureza, por isso mesmo, presumo eu, a parte da mulher na produção de nova vida teve de ser pouco falada nas lições oficiais e nos textos, durante séculos canónicos, do patriarcado pré-moderno.
 
(5) Cf. sobre isto também Ortlieb 1998, p. 3 sg. A meu ver, que o mito possa ser apresentado como forma prévia da razão iluminista dominadora da natureza, por um lado, deve-se ao mecanismo da retroprojecção, por outro lado, no caso de Adorno/Horkheimer, também pode ser entendido como crítica da modernidade no medium da recepção ideológica burguesa das fontes da antiguidade. Através deste modo de exposição os autores dão a entender a atracção das epopeias de Homero para os homens burgueses da Idade Moderna, que renunciam às pulsões, sem traçar uma teoria da civilização a ser levada à letra (embora elementos de tal teoria atravessem a sua obra). Simultaneamente problematizam histórico-filosoficamente a ideia de progresso e apresentam a história anterior na sua unidade negativa – como antes deles Marx e depois deles Robert Kurz, com o conceito de “pré-história”. Mas esta unidade negativa da pré-história não pode consistir no “domínio da natureza”, nem no sentido aqui desenvolvido, nem no sentido de que este domínio seria uma conditio sine qua non da civilização em geral.
 
(6) Tradução alemã do século XVIII, por D. Johann Hermann Pfingsten, Über die Würde und den Fortgang der Wissenschaften [1605] [Sobre a dignidade e o progresso das ciências], p. 172 sg.
 
(7) Na citação de Robert Hooke acima reproduzida também era feita referência “ao antigo caos” antes da criação do mundo, no entanto nos anos de 1680 a matéria, continuando associada à feminilidade, já não tinha qualquer tendência para a queda no amorfismo. A perda do seu potencial destrutivo, a nova passividade forçada, como ainda se verá, deve ser atribuída à caça às bruxas.
 
(8) Um trecho semelhante de The Great Instauration diz no original: “Even as though divine nature took pleasure in the innocent and kindly sport of children playing at hide-and-seek, and vouchsafed of his kindeness and goodness to admit the human spirit for his playfellow at that game” (online: http://ebooks.adelaide.edu.au/b/bacon/francis/instauration/complete.html, acesso: 10.10.2013, destaque de J. B.)
 
(9) Que a ordem feudal não era completamente estática, tendo sido pelo contrário marcada por conflitos permanentes, é o que expõe Silvia Federici (2012) de forma impressionante. Contra Merchant, ela prova ainda que a imagem organicista do mundo não impedia necessariamente a exploração ou perseguição política das pessoas. Imagem que foi assim “compatível com a aniquilação dos heréticos” (cf. Federici 2012, p. 247). Sobre os pressupostos históricos da modernidade ver adicionalmente Weber 2004, 2009.
 
(10) Sobre esta histórica “Querela das mulheres”, ou melhor, “sobre as mulheres” em geral veja-se, por exemplo, a contribuição no capítulo 4 do livro de Wunder/Engel 1998. (b)
 
(11) Amizades entre mulheres e reuniões de mulheres suscitavam cada vez mais desconfiança. “Nesse tempo ocorreu também a mudança de significado da palavra inglesa gossip, que na Idade Média tinha significado 'amigo' e agora assume um significado depreciativo ('mexerico')” (Federici 2012, p. 226).
 
(12) Hobbes, por exemplo, argumentava em 1651 que o feitiço nocivo seria do seu ponto de vista uma superstição sem efeitos físicos, que seria desenvolvida com maus intentos e por isso muito justamente perseguida. A eliminação da superstição, além disso, elevaria a disposição das pessoas para a “obediência burguesa” (cf. Federici 2012, p. 178)
 
(13) Pode questionar-se, por exemplo, se nesse tempo já é possível presumir um desejo heterossexual generalizado. A Idade Média cristã ainda não conhece o homossexual como o tipo humano que é criminalizado desde o século XIX. No entanto, a tradicional rejeição das práticas “pecaminosas” homossexuais e de outras práticas decadentes, como a chamada sodomia, parece ter assumido uma nova dimensão na fase histórica aqui tratada. Já desde o século XIV foram organizados bordéis suportados pelo Estado como medida contra a sodomia e as “práticas sexuais orgiásticas das seitas heréticas” (Federici 2012, p. 62). Paralelamente a isso a violação das mulheres da camada inferior foi quase legalizada (cf. ibid., p. 60 sg.).
 
(14) Como expõem tanto Federici como também Kaupen-Haas, no século XVI a parteira é transformada num instrumento de controlo ao serviço do poder: “Ela própria deve levar uma vida honrada e cristã e ter atenção a isso também nas mulheres por ela cuidadas”; desde então ela deve denunciar os abortos, bem como as grávidas não casadas, e descobrir se possível o pai da criança nascida fora do matrimónio (Kaupen-Haas 1990, p. 178). Esta política teve sem dúvida por consequência um aumento da taxa de natalidade. Mas a caça às bruxas, na sua complexidade e loucura, não pode ser reduzida a um interesse estatal “racional”, que na teoria do mercantilismo também foi de facto tematizado, como sugerem Heinsohn/Steger (a cujo livro de 1985 também Londa Schiebinger se refere, infelizmente). Uma conspiração consciente do Estado e da medicina contra as mulheres sábias com a finalidade de aumentar a população teria consequentemente de ter sido um esforço para elevar as oportunidades de sobrevivência dos recém-nascidos.
 
(15) Ainda em 1786 Kant, em ligação com o princípio da inércia da matéria, rejeitava de passagem o hilozoísmo como “a morte de toda a filosofia natural” (Kant 1997, p. 101, AA 544).
 
(16) Os Principia são publicados pela primeira vez em 1687, seguindo-se novas edições em 1713 e 1726. Em 1686 Robert Boyle ainda se sentia chamado a escrever contra o tradicional “conceito vulgar de natureza”, nomeadamente contra a ideia segundo a qual “a palavra natureza […] representa uma deusa, ou uma espécie de semi-divindade” (cit. em Keller 1986, p. 197). Esta ideia, em todo o caso, só terá “escondido ou limitado o domínio do homem sobre as criaturas inferiores” (ibidem).
 
(17) Ver sobre isso, por exemplo, Steinbrüge 1990, bem como os artigos de Claudia Honegger e de Elvira Scheich no mesmo livro. Infelizmente ainda não foram publicadas as elucidativas ideias de Karina Korecky sobre os materialistas franceses do século XVIII, apresentadas no workshop de Verão da Exit! em 2012 e que ela me disponibilizou amavelmente para leitura. Mas veja-se as suas exposições sobre a filosofia do iluminismo em Korecky 2012 e o registo audio da mencionada conferência em http://audioarchiv.blogsport.de/tag/karina-korecky/ (acesso: 07.03.2014). Ver também Späth 2012.
 
(18) Assim se apresenta em Merchant o contexto de dominação da natureza na idade moderna e ideologia da feminilidade. O seu reducionismo eco-feminista da problemática à fórmula “natureza=mulher” (ambas estão submetidas à dominação capitalista masculina) teve uma certa plausibilidade numa determinada fase histórica, mas visto na generalidade é demasiado simples, como minha exposição terá demonstrado.
 
(19) Esta formulação afigura-se-me agora discutível, após a leitura do clássico ensaio de Karin Hausen (1976), que continua a valer a pena ler, bem como de outras reflexões sobre o mito burguês da feminilidade. Segundo Hausen, os “caracteres sexuais” polarizados e quase sempre constituídos complementarmente, que marcam corpo e espírito com uma diferença essencial entre homem e mulher, surgem no século XVIII e consolidam-se no século XIX. Contudo não se pode negar que a caça às bruxas e a agressiva acusação das mulheres e da sexualidade feminina nos debates do século XVII pertencem à (pré-)história da relação de género capitalista. Cujo resultado histórico, no entanto, é o desaparecimento e não a constituição ideológica da feminilidade, tal como ela é analisada por Hausen. Assim desaparece, no entanto, uma imagem da feminilidade que representa desintegração e ameaça. Na fase burguesa clássica por volta de 1800, pelo contrário, a feminilidade representa uma força protectora e reservada (cf. Hausen 1976). Mas sem dúvida que, no decurso do processo de crise do patriarcado produtor de mercadorias, o fantasma contrário e historicamente passado constantemente regressa da sua latência, ou ressoa na ambivalência das imagens masculinas do desejo e do medo (santa versus prostituta/bruxa).
 
 
 
NOTAS DO TRADUTOR
 
(a) Esse capítulo (15 parágrafos, 1135 palavras) foi totalmente suprimido na tradução parcial para espanhol feita pela revista Mania de Barcelona em 2000, na qual se baseia também a versão do texto disponível em português.
 
(b) A Querelle des femmes desenvolve-se no primeiro terço do século XVI, a partir de um escrito do juiz francês André Tiraqueau de 1513. A controvérsia espalhou-se por toda a Europa e é dada por concluída, no sentido machista da modernidade, por exemplo na Carta de Guia de Casados, escrita em Lisboa por Francisco Manuel de Melo em 1650. Mas no início da querelle ainda tal “carta de guia” era olimpicamente ignorada por mulheres como, por exemplo, Leonor de Lencastre (1458-1525).
 
 
 
 
BIBLIOGRAFIA
 
Bacon, Francis (1979): Essays. Vollständige Ausgabe [Ensaios. Edição completa], edição de Levin L. Schücking. Leipzig
 
Braun, Kathrin/Kremer, Elisabeth (1979): Asketischer Eros und die Rekonstruktion der Natur zur Maschine [O eros ascético e a reconstrução da natureza como máquina]. Oldenburg
 
Bockelmann, Eske (2004): Im Takt des Geldes: zur Genese modernen Denkens [Ao ritmo do dinheiro: sobre a génese do pensamento moderno]. Springe
 
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