JustIn Monday - ELOGIO DO ESBANJAMENTO


 
O dinheiro parece escassear em toda a parte. Falta na educação e na saúde, no apoio aos idosos, a promoção da cultura também não tem nada e de qualquer maneira nunca é suficiente para os benefícios sociais individuais. Embora isso já seja uma afirmação perigosa, pois desde Hartz IV tornou-se consensual o slogan de que é preciso financiar o trabalho em vez do desemprego, de tal modo que cresce a despesa pública com o chicote e pode ser reduzida ainda mais com a cenoura. Tudo o resto é considerado "defesa dos direitos adquiridos" com prejuízo da comunidade.
 
Por outro lado: "dinheiro é o que não falta", ouve-se nas sedes dos sindicatos e das bocas de todos aqueles para quem o capitalismo sempre foi um problema de distribuição. Referem-se às fortunas privadas que deviam ser retiradas aos interesses dos seus proprietários/proprietárias e postas ao “serviço de toda a sociedade" através de impostos sobre a propriedade e afins. Uma (grande) percentagem x da riqueza é propriedade de uma (pequena) percentagem y da população. Tal é a ilustração estatística destes planos de redistribuição, que são assim elaborados porque se considera o dinheiro como se fosse apenas um saldo em conta corrente que desapareceu depois de ter sido depositado. Qualquer património acima da média, medida pelas despesas do orçamento familiar médio, surge então como esbanjamento potencialmente imoral por parte daqueles que de qualquer maneira têm muito.
 
Uma ideia fixa que ganhou ainda mais reputação no decorrer da actual crise, para além dos círculos habituais. Porque alimenta a esperança de que a crise da dívida soberana poderia ser resolvida se a procura de impostos aumentasse o suficiente. E a "realização" dessa ideia é actualmente considerada como o primeiro bem "ao serviço de toda a sociedade”. Particularmente a representação do pequeno capital que pressiona no sentido de menos impostos, o FDP [Partido Democrático Liberal], fica assim em apuros. Pois eles gostariam simultaneamente da mais segura redução de impostos e da mais furiosa consolidação orçamental. Em relação às práticas do grande capital capaz de constituir monopólio, que consegue impor como lei geral na sua "localização" as condições de acumulação que o nível de produtividade do mercado mundial lhe prescreve a ele, os esforços das "pequenas e médias empresas" para permanecer na "localização" já no estado de prosperidade surgem como uma actividade criminosa. Em tempos de crise, em que também as condições de acumulação do grande capital se tornam incertas, esta aparência alarga-se às formas legais de evasão fiscal, pelo que se passa a olhar também para as localizações off-shore.
 
Este desenvolvimento é recebido com entusiasmo pelos apóstolos da redistribuição, que vêem aqui uma chance de poder dispor livremente sobre o que na sua imaginação é o valor do dinheiro, tanto no conjunto da sociedade como no salário individual, para fazer subir as contas nacionais. Mas, na verdade, eles transformam-se de parceiros sociais em inspectores fiscais ideais, razão pela qual o problema da distribuição social-democrata aparentemente inofensivo se torna um problema de soberania autoritária. O que facilmente se revelaria, se fosse perguntado, era o que a pequena percentagem da população poderia fazer com sua imensa riqueza. Pois a resposta para isso não é: consumir tudo. Não é nada fácil estourar as quantias aqui em causa em moradias, carros caros, jóias com diamantes ou caviar. E mesmo isso não faria desaparecer do mundo o valor que essas coisas representam. Os equivalentes em dinheiro aterram junto dos produtores e produtoras das mercadorias adquiridas, razão pela qual a sua aquisição pelo menos não devia preocupar aqueles que lutam bravamente por um emprego na Daimler ou na Porsche. E porque o dinheiro no colchão perde o valor, os impostos evadidos também levam os seus proprietários a procurar formas de voltar a investir em meios de produção. O que por sua vez teria de tocar o coração de todos os parceiros sociais até às lágrimas. Apenas o caviar desaparece realmente após o consumo.
 
Efeitos menos stressantes tem o pagamento de bens de luxo, cujos preços não são realmente determinados pela quantidade de trabalho necessária à sua produção, mas pela escassez. A aquisição de obras de arte caras alimenta com o aumento de valor tanto os artistas que assim podem continuar a viver improdutivos, como os proprietários. O dinheiro que flui a seguir a cada revenda constitui uma redistribuição no interior da burguesia que não traz nada a ninguém, mas também não prejudica ninguém. Pois para isso não é preciso trabalhar nada e as mudanças de dono são organizadas não em call centers, mas num jantar elegante ou num vernissage, onde mesmo aqueles cujas obras não atingem altos preços também podem obter um bocado de caviar. Quem dá 500 euros por uma garrafa de vinho é quase como se fizesse uma doação para combater a fome mundial. Pois de modo nenhum o equivalente desta soma é esbanjado a expensas do público em geral. Pelo contrário alguma pessoa pobre fica habilitada a embolsar a diferença entre o valor e o preço, sendo assim mitigada ainda que minimamente a coerção social a trabalhar, bem como a pressão sobre os salários. Pois ambas estas coisas acontecem justamente quando as mercadorias são vendidas tendencialmente pelo seu valor. É de facto uma pena que o acesso a um bom vinho seja regulado de modo tão injusto. Mas isso, por um lado, é um problema menor e, por outro, não deixa de ser um facto que os queixosos e queixosas contra o esbanjamento cantam "Guerra às barracas, palácios para todos" e gostariam de distribuir o estoque de vinhos finos entre todos os alcoólicos por sorteio. O pagamento aos produtores e produtoras poderia nesse caso ser feito de acordo com as regras que se aplicam ao café do comércio justo.
 
Isto no que diz respeito ao mito do esbanjamento privado. O esbanjamento público, em contrapartida, constitui uma bênção mais comum e assim mais tacanha, cuja consideração exige um excurso. Pois todo o financiamento do Estado é em última instância uma dedução do produto excedente social para possibilitar a mediação estatal. Mas um Estado em que domina o modo de produção capitalista não poderia fazer nada com este produto excedente se os produtores o entregassem no Ministério das Finanças na forma de aço, linhas de produção automatizadas e máquinas de lavar – os senhores feudais tinham a coisa mais facilitada. Portanto todo o produto excedente que o Estado pretende reivindicar também tem de surgir em primeiro lugar como parte da mais-valia social global em forma de dinheiro. E para isso ele precisa necessariamente da mediação da circulação do capital financeiro, pois só assim o dinheiro chega ao local da sua valorização como capital. Para resolver a crise, todo o conjunto do capital em off shore não serve de nada, pois quanto mais este fosse alcançado tanto mais o capital financeiro necessitaria de resgate. A acrescer à sua já precária situação. Pois nas contas das grandes empresas as deduções fiscais repercutem-se exactamente como todas as provisões para créditos malparados, cuja garantia em pânico foi o primeiro factor de arrastamento dos orçamentos estaduais para a beira da ruína. Também de modo nenhum é o caso que o capital financeiro se tenha furtado completamente à obrigação de financiar o orçamento nacional. Em vez disso, simplesmente a forma de financiamento mudou, pois deve realmente vir de quaisquer ganhos o dinheiro com que os títulos da dívida pública foram adquiridos, títulos com que os Estados se têm financiado há décadas, e cujo serviço de dívida agora não pode ser cumprido. Neste ponto, a crise faz com que todos os gatos voltem a ser pardos, porque, afinal, é indiferente se os ganhos do capital são reduzidas pelos impostos, ou se não podem cobrar as suas exigências aos credores do Estado, podendo continuar à espera delas com garantias do Estado, ou se tem de ser negociada directamente a redução da dívida. Em caso de redução da dívida falta imediatamente o dinheiro. E, assim, se a garantia estatal for realmente efectiva, a mais-valia tem de surgir no futuro.
 
Só poderá ver aqui uma diferença essencial quem atribuir ao Estado a capacidade de dispor da riqueza capitalista independentemente da necessária valorização do capital real que é realizada com a propriedade do capital. Na verdade, cada euro dos fundos estatais só pode manter a sua capacidade de ser gasto no consumo se em outras partes do processo social global ainda continuar a produzir-se mais-valia. No passado ela deve ter sido produzida, caso contrário nenhuma receita fiscal teria sido obtida, e no futuro ela terá de ser produzida, caso contrário não teriam sido produzidos os bens de consumo que devem ser comprados com os fundos do Estado. O mesmo se aplica ao consumo directo do Estado, porque os bancos centrais só podem criar dinheiro na medida em que há procura de crédito para fins produtivos. Uma vez que eles criam procura através do financiamento directo do Estado, isso de facto reduz a curto prazo a sobreacumulação nos sectores em causa, pois o valor aí empatado ainda será realizado posteriormente. Mas uma vez que a sobreacumulação se caracteriza pelo facto de todos terem demasiado pouco dinheiro porque há muito dinheiro no total, os ganhos assim obtidos aumentam a quantidade de dinheiro de tal maneira que a seguir a procura ainda recua mais do que antes.
 
Tudo isso já afecta os gastos aparentemente amigáveis do Estado. É um perigo público quando os inspectores fiscais ideais relacionam a queixa contra o esbanjamento com a função imediatamente repressiva desses gastos. "O Ministério da Defesa destacou que os fundos não estão totalmente perdidos, porque partes da tecnologia já desenvolvida poderiam ser usadas noutro lugar. No entanto – por agora os milhões já se foram". Assim comentou o Spiegel Online a informação sobre quantos jardins-de-infância poderiam ser financiados com os fundos desbaratados no caso dos drones
 
No entanto também o dinheiro esbanjado pelo Estado não desaparece, mas continua a circular. Projetos de defesa falhados são assim generosamente equiparados de imediato a políticas sociais, ainda que não desenvolvidas mas apenas desviadas. Porque o dinheiro entretanto foi entregue ao orçamento do Estado, há aqui na verdade o problema de que o esbanjamento só é bom para os contemporâneos de tal modo antipáticos que são moralmente depravados ao ponto de trabalhar na indústria de defesa. É pouco provável que tenham sido pagos a partir do orçamento da defesa engenheiros e engenheiras habilidosos, cujas construções no entanto não teriam funcionado porque ingerem regularmente com os seus amigos vinhos de 500 euros à custa de negócios off shore – e aparecem correspondentemente ressacados para o trabalho. Ou que as despesas do Ministério da Defesa fossem imediatamente receitas das empresas de armamento, receitas que agora, como dinheiro, aguardam tornar-se novamente capital de um projecto de armamento. Obviamente que não é fixe. Em alternativa, o dinheiro também poderia ter sido pago a membros de respeitáveis células do Estado. Os que berram perante a leitura do artigo do Spiegel Online "mais do mesmo outra vez" e se sentem enganados, ao mesmo tempo no entanto não estariam desempregados graças ao projecto fracassado e, portanto, poderiam pagar as mensalidades do jardim-de-infância para a reprodução do seu próprio carácter social, bem como contratar uma ama da Europa de Leste. Também não seria fixe, mas a cereja em cima do bolo, se os drones completamente desenvolvidos no futuro ficassem disponíveis para a defesa das fronteiras federais, que com eles já interceptaria a ama na fronteira da UE. O Estado é a miséria universal do capital privado, razão por que consegue esbanjar com menos benefícios.
 
As leis da troca e da livre circulação do dinheiro, diz-se algures em Adam Smith, justamente porque são incontroláveis, criaram um laço invisível de amizade universal entre as pessoas. Que a base deste laço é o inferno do trabalho, contra isso levantou-se Marx com a sua crítica do valor do trabalho, sem negar como mera mentira a aparência de liberdade associada à incontrolabilidade: "A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e venda da força de trabalho, é de facto um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. O que aqui reina é unicamente liberdade, igualdade, propriedade e Bentham." Desde que o Estado assumiu a tarefa de controlar a circulação a fim de evitar e adiar as crises, a amizade universal aparente em que deve ser dada a todos uma oportunidade na coerção constante à troca surge como o poder de agarrar tudo aquilo de que se precisa, não mais no manuseamento adequado das mercadorias e do dinheiro, mas já apenas no manuseamento inadequado do esbanjamento. O programa político para impedir isso é necessariamente reaccionário, porque a forma do valor do capital real necessário para manter a produção na crise não restringe só o acesso à riqueza – como no caso da acumulação com sucesso. Uma vez que os proprietários e proprietárias têm título jurídico do capital real específico para a produção, a forma de valor regula tanto quem tem acesso à riqueza e em que extensão como também o que pode fazer para preservar o valor da sua propriedade. Daí resultam os seus interesses que apenas podem ser realizados com a expansão da produção o mais possível sem limite. Na crise de sobreacumulação, no entanto, o valor já limita a extensão da produção, e qualquer expansão se torna um esforço não rentável e caro. Assim, mesmo o mais sisudo incremento keynesiano da procura, como a Hamburger Elbphilharmonie [sala de concertos em construção desde 2007 junto ao Elba, em Hamburgo: Nt. Trad.], parece também um esbanjamento. Por muito estabilizador do sistema que possa ser considerado.
 
 
Original Lob der Verschwendung in www.exit-online.org. Publicado em KONKRET, 8/2013