"Tentativa de chantagem
irracional”, “direitistas de linha dura dispostos a tudo” e “radicais do Tea
Party.” Estas as apreciações que se puderam ler na imprensa alemã
relativamente ao diferendo sobre o orçamento acabado de fechar nos EUA. No FAZ [Frankfurter
Allgemeine Zeitung] a caracterização da posição do Tea Party foi feita em
separado da categoria “conservadorismo fiscal", considerando a atitude dos
republicanos longe do seu próprio auto-entendimento. Até o ministro das Finanças
Schäuble considerou a insolvência dos EUA um evento “realmente inimaginável” e
os seus colegas por todo o mundo fizeram o mesmo.
Realmente não há muito a
objectar contra isto. O aumento da dívida pública durante a crise, que ainda era
uma nova invenção em reacção à crise económica mundial de 1929 e cuja eficácia
foi teoricamente justificada por Keynes como opção de política financeira,
tornou-se no decorrer do chamado boom fordista do pós-guerra a um imperativo
sistémico. Isto está à vista não só no medo que reina actualmente nos mercados
financeiros, que não poderiam lidar com uma queda do valor dos títulos da dívida
pública dos EUA sem apoios. Muito mais fundamental, embora já não reconhecido
geralmente, isso também é evidente pelo facto de ramos industriais inteiros
dependerem das despesas financiadas pela dívida pública. Da indústria de defesa
aos cuidados de saúde, com um desvio pela indústria automóvel. Se o capital
nesta aplicado também terá de ser valorizado no futuro, isso em última instância
está dependente da continuação da existência do modelo fordista de família e de
trabalho. É verdade que os requisitos de mobilidade actuais continuam a exigir a
posse de um carro. Só que as condições de trabalho precárias não resultam
automaticamente na possibilidade de comprá-lo. O que afecta não só os
trabalhadores, mas também a capacidade de acumulação de capital e, portanto, os
seus proprietários.
Isto também significa que o
deficit spending como medida de resolução da crise está historicamente
esgotado porque ele passou de possibilidade a pressuposto para colocar a
restrição material capitalista na crise novamente numa escala mais elevada. É
preciso obedecer ao imperativo mais incondicionalmente do que nunca, mas isso já
não consegue para o capital o nível de acumulação que ele precisa para ser
transportado acima do seu limite imanente. Pelo contrário, o próprio capital que
circula por meio dos orçamentos de Estado – para manter a imagem – teria de ser
empurrado. Por quem e como, no entanto, ninguém tem uma ideia clara. Esta é a
contradição em que a política fiscal se move abertamente já há alguns anos. Uma
vez que os republicanos se recusaram ao imperativo sistémico na discussão do
orçamento, é inteiramente correcto diagnosticar-lhes um bloqueio irracional. Com
o que a posição contrária, no entanto, apenas com reserva ganha racionalidade. O
facto de Obama ter acusado a Câmara dos Representantes de privá-lo do seu
direito a um orçamento torna claro, por outro lado, que o que deve ser uma
decisão política em conformidade com a Constituição, decisão que de acordo com o
sistema de checks and balances é partilhada por duas instâncias, há muito
tempo que já não existe.
A introdução do seguro de
saúde público, que na variante adoptada pelo governo Obama é sem dúvida melhor
opção em termos de política social do que o sistema até aqui existente, deve ser
considerada em termos de política económica e financeira como uma espécie
keynesianismo atrasado, que pode desenvolver-se contra a tendência global,
porque aqui nos Estados Unidos constitui uma abertura ainda não utilizada. Atrás
da estilização do sistema de seguro de saúde como a queda da civilização,
encenada pelos republicanos, está mais do que uma rejeição da lei como tal. O
uso do tecto da dívida como meio de pressão política não era apenas um recurso
ao último meio disponível para impedir o Obamacare. Por trás disso está também
uma concepção fundamentalmente diferente da natureza da riqueza social. Ted
Cruz, um dos republicanos de linha dura, diz o mais importante: "The American
people don't want Obamacare, and they don't want more debt.
So-called grand
bargains historically have been neither grand nor a bargain - typically
resulting in more debt, more spending, and more government” (traduzido: “O povo
americano não quer o Obamacare nem quer mais dívida.
Os chamados grandes negócios
historicamente não foram nem grandes nem uma pechincha - resultando tipicamente
em mais dívida, mais gastos e mais governo”). Quer ele dizer que os benefícios
imediatos do seguro de saúde no final não trazem nada à nação, porque as dívidas
do Estado são dívidas de todos.
Mas o relato alemão não se
limita a omitir o âmbito limitado do keynesianismo atrasado. O que o torna
nojento é a incapacidade de relacionar os acontecimentos nos EUA com a política
neste país. Pelo que as observações individuais factualmente correctas são
viradas contra os Estados Unidos à maneira do anti-americanismo. Porque aquilo
que está implícito nos artigos e é tornado explícito nos fóruns de discussão é
que os EUA são colectivamente responsabilizados e ridicularizados pelo que
constitui a política de apenas uma das facções políticas de acordo com as
relações de forças. Os observadores alemães, no entanto, não estão interessados
em tais diferenciações, cuja percepção teria aguçado a capacidade de julgamento.
Há alguns anos, eles ainda consideravam os neocons, bastante distintos do
Tea Party, como o mal americano, o que hoje parece que já ninguém se
lembra. Que o Tea Party está agora claramente sob pressão interna do
partido, depois de perder a disputa do orçamento, ao que parece também apenas
marginalmente é trazido ao conhecimento.
Mais relevante ainda é que a
atitude do Tea Party no caso constitui apenas uma variante suave do
travão da dívida na Alemanha que a partir de 2016 proíbe um endividamento de
mais de 0,35 % do produto interno bruto. Em contraste com as políticas
financeiras reais dos Estados Unidos, a política de austeridades alemã,
institucionalizada com uma maioria muito mais ampla, está tentando esquivar-se
permanentemente ao imperativo sistémico e impor isso também ao resto da UE.
Porque os/as protagonistas da política alemã, apesar do seu amor do capitalismo
como sistema dominante, não estão em posição de executar conscientemente as suas
necessidades, neste país há a ameaça permanente de uma viragem repentina para o
anti-capitalismo reaccionário.
Portanto, não é porque entre
as pessoas daqui ninguém é tão louco como o Tea Party que um conflito tão
agudo como o actual nos Estados Unidos é inconcebível na Alemanha. Pelo
contrário, uma política como a de Obama ou como a política monetária do FED
seria desacreditada desde o início como “jogo irresponsável com o futuro dos
nossos filhos” ou similar. Se alguma vez, coisa completamente irrealista, tal
posição se tornasse de algum modo relevante, teria de ser imposta não por
maioria simples, mas por uma maioria de dois terços no Bundestag [Parlamento] e
no Bundesrat [Conselho Federal, Câmara Alta]. Pois o travão da dívida é
obrigatório enquanto não voltar a ser removido da Constituição. O Tea Party
até agora não pode nem sonhar com uma tal cobertura.
É verdade que o art.º 115 da
Constituição contém uma excepção "no caso de catástrofes naturais ou situações
de emergência extraordinárias.” Portanto, é bem possível que no futuro sejam
decididas mais ou menos regularmente excepções, para o que é suficiente uma
maioria simples. No entanto, isso implicaria o acordo sobre a mera existência de
uma crise, o que de acordo com a experiência anterior não é possível sem que os
já escassos conflitos sociais de interesses sejam completamente afogados em
mitos nacionais e propaganda do Estado de todo o povo. E isto por sua vez é a
base para as fantasias de austeridade neste país se escaparem para o
inconsciente social como se fossem catástrofes naturais.
Pois a semelhança da
"disciplina fiscal" alemã com as exigências do Tea Party está apenas na
relação com a realidade capitalista, que ambos abandonam a favor dos mitos
nacionais. Os mitos em si dificilmente poderiam ser mais diferentes; o que,
aliás, mostra que não existe qualquer ligação de derivação lógica entre os dois.
Enquanto a sociedade pós-fascista alemã busca refúgio no Estado autoritário
quando sente a necessidade de fantasiar uma sociedade paralela intemporal sem
crise, a direita americana do tipo de Ted Cruz regride para a declaração de
hostilidade ao "big government”. O olhar para o debate orçamental nos
Estados Unidos, alimentado de desprezo, inquietação e desejo de perdição,
corresponde ao antigo ressentimento anti-americano contra os EUA como Estado sem
raízes e, nessa medida, tem muito menos de simpatia para com o keynesianismo do
seguro de saúde de Obama do que é expressão dos seus próprios esforços para
perpetuar regressivamente o desastre capitalista.