SUMÁRIO E
EDITORIAL
Sumário
Em memória de Udo Winkel
Daniel Cunha:
O ANTROPOCENO COMO FETICHISMO
Tradução e posfácio de Thomas Meyer
Roswitha Scholz
CRISTÓVÃO COLOMBO FOREVER?
Para uma crítica das actuais teorias da colonização
no contexto do "Colapso da modernização"
1. Introdução: "colonização" - uma explicação
corrente da crise actual
2. Robert Kurz: contradição em processo e decadência
do capitalismo
1. Pressupostos básicos
2. Globalização
3. Klaus Dörre: A nova colonização
1. Pressupostos básicos
2. Globalização
4. Silvia Federici: acumulação primitiva, reprodução
e globalização
1. Pressupostos básicos
2. Mulheres, reprodução e
globalização
3. Globalização, (re)colonização e
reprodução
4. A colonização abrangente como
princípio fundamental até hoje?
5. Resumo intercalar
6. Crítica da dissociação-valor, raça, classe,
género, globalização e decadência do patriarcado capitalista
1. Pressupostos básicos
2. Colonização, (re)colonização,
globalização?
3. Administração da crise nacional
e internacional, o tornar-se obsoleto do trabalho abstracto, ruína da periferia
e guerra civil mundial
4. Sobre a relação entre crítica
da dissociação-valor, "raça", "classe" género, globalização e teorias da
colonização.
7. Teorias da colonização e perspectivas de
transformação
Gerd Bedszent
NIGÉRIA - DE PARAÍSO DO PETRÓLEO A ESTADO QUE SE
DESFAZ
Estado instável
Biafra - uma guerra esquecida
Modernização falhada
Triunfo da economia paralela
Da poluição do petróleo ao massacre étnico
O fundamentalismo como reacção à crise
Pregadores do ódio e bandidos
Guerra assimétrica
Economia de pilhagem como participação no mercado
mundial
Robert Kurz
IMPERIALISMO DE EXCLUSÃO E ESTADO DE EXCEPÇÃO
1. Prefácio
2. O apartheid imperial
1. Um mundo de refugiados
2. Imperialismo de exclusão: muros
e faixas de morte à moda liberal
3. O estado de excepção global
1. A lógica do estado de excepção
2. Sobre a história do estado de
excepção
3. O estado de excepção permanente
4. Vida nua e vontade quebrada: o
estado de excepção como nomos oculto da modernidade
5. As casas de terror da economia
empresarial: o capitalismo como estado de excepção coagulado
6. Liquefacção do estado de
excepção como liquefacção da soberania
7. Aburguesamento desaburguesado e
cidadania de miséria
8. Judeus e outros "supérfluos": a
estrutura da exclusão inclusiva
Richard Aabromeit
VALOR SEM CRISE - CRISE SEM VALOR?
Sobre a ausência de uma teoria da crise em Moishe
Postone
A dialética de transformação e reconstituição
O conceito ambíguo de trabalho - e o de valor
A teoria sem empiria?
A velha questão crucial da substância do valor...
Conclusão
Gerd Bedszent
O PLANETA DOS SUPÉRFLUOS
Sobre o livro Planeta Favela de Mike Davis
Richard Aabromeit
Sobre o livro
DAS „KAPITAL“
LESEN – ABER WIE? MATERIALIEN
[Ler “O Capital” - mas
como? Materiais]
de Wolfgang Fritz Haug
Editorial
"Tempos áureos para teóricos e
teóricas da crise!" poder-se-ia pensar, pois afinal dispõe-se de algo parecido
com ter os meios teóricos para avaliar a situação social, ou mesmo com ter
"sabido da coisa antecipadamente". Em última análise, no entanto, perante a
violência das circunstâncias da decadência, está-se mais ou menos tão
desamparado como toda a gente. Ainda assim, o poder analítico de uma teoria
crítica da sociedade e a irreconciliável intenção de revolucionamento desta, que
já lhe está sempre subjacente, talvez possam ajudar a manter uma visão das
distorções actuais "realista" no melhor sentido, visão que, designadamente, não
seja determinada pela expressão pática de situações sentidas justificadamente
como ameaça ou coerção, nem pelas ilusões de estratégias redutoras de superação.
Desde o início da crise do mercado
hipotecário e financeiro em 2007, o stock de riqueza capitalista está
manifestamente em perigo, fazendo aparecer com toda a clareza o processo da sua
dessubstanciação, que já dura há décadas. Os Estados, enquanto puderam,
intervieram na situação do mercado mais do que é habitual e movidos por puro
pânico, a fim de afastar a pressão de desvalorização repentinamente ocorrida dos
próprios capitais nacionais e desviá-la para os seus concorrentes. Além dos
resgates bancários, contam-se entre as intervenções da política de crise na
República Federal medidas como o alargamento das reduções do tempo de trabalho
(1) e os “prémios de abate” de automóveis. Os "créditos malparados", em que o
caráter meramente virtual da acumulação das últimas décadas se torna evidente,
deslocaram-se deste modo para os orçamentos dos Estados, revelando-se a
concorrência de crise ela própria como um bumerangue, mesmo para os vencedores,
pelo menos na União Europeia. Pois não é possível executar simplesmente a
pressão de desvalorização noutro lugar, no capital estrangeiro, porque este já
se tornou o capital próprio, através da concorrência bem sucedida (cf . JustIn
Monday, in Konkret, 4/2015). Como resultado das interconexões e
dependências dos capitais entre si, generalizadas e abrangendo os espaços de
todas as economias nacionais, e da importância há muito tempo assumida pelos
títulos de dívida soberana, como oportunidade de investimento para o excesso de
capital monetário, agora na Zona Euro tiveram de ser “resgatados” orçamentos de
Estado como antes foram “resgatados” bancos. As montanhas de dívida soberana da
periferia europeia são apenas a outra face dos lucros gerados no centro
justamente com base no endividamento. A pressão para o cumprimento do serviço da
dívida está em manifesta contradição com a absoluta impossibilidade de o fazer.
A acumulação para isso exigida, auto-sustentável e não induzida pelo crédito, já
não é possível no nível actual de produtividade. Um corte da dívida, por outro
lado, iria desvalorizar a riqueza acumulada com base no endividamento e agravar
a crise.
A posição implacavelmente
intransigente dos negociadores alemães na última "Ronda do Resgate da
Grécia",
no Verão de 2015, foi uma tentativa de lidar com este problema sem ter
de
reconhecer que ele não tem solução. O facto de os argumentos económicos
contra a
política de austeridade forçada não terem qualquer chance, nem sequer de
serem
ouvidos, como relatou Varoufakis após a sua demissão de ministro, não se
deve
apenas ao carácter particularmente mau de Wolfgang Schäuble, pelo
contrário, é
um sinal claro de negação da realidade do lado alemão (cf. mais uma vez
JustIn
Monday). Isto, no entanto, numa formulação paradoxal, também é bastante
realista, na actual situação económica com as suas contradições e
paradoxos,
quando se pretende agarrar obstinadamente as formas de reprodução social
(o que
os políticos já têm de fazer como máscara de carácter). De facto a
República
Federal, como vencedora na concorrência de crise europeia, conseguiu até
agora
afastar de si as piores consequências da crise, mas não conseguiu
restaurar nem
assegurar duradouramente as condições de acumulação do seu próprio
capital bem
como (como condição para isso) do capital no seu conjunto, ou seja, do
capital
mundial. A partir da convicção arrogante de ter feito tudo certo e ter
sido
sempre diligente, surgiu a cega tentativa alemã, necessária como
condição do seu
próprio sucesso, de impor "aos gregos" aquela disciplina de ferro que o
público
alemão, por sua vez, fantasia como fundamento da sua própria posição
económica.
Mas não se pode reduzir as dívidas e pretender simultaneamente
beneficiar do circuito de déficit. Pelo menos tal não é possível sem
ab-rogar a lógica mais
elementar.
Mas tudo isso foi há muito tempo,
ao que parece. Desde o Outono de 2015, no lugar do colapso do capital mundial,
que é necessário evitar regular e repetidamente, entrou provisoriamente na
consciência pública dos alemães a "crise de refugiados", percebida com igual
ausência de mediação e, portanto, como que abatendo-se subitamente sobre nós. A
sua má “superação” apresenta uma certa semelhança com o tratamento da crise da
dívida soberana europeia. Tal como todos os Estados tentaram externalizar a
pressão de desvalorização sobre os membros mais fracos do contexto económico,
também estão tentando passar o excedente populacional, o capital variável já
desvalorizado, para os seus vizinhos. No entanto, em consequência da crise
económica mundial, ocorreu a inversão que consiste em que, com a cessação de
facto dos acordos de Dublin, na base dos quais justamente a República Federal
antes tinha mantido os refugiados longe de si, nos países da fronteira externa
da União Europeia, agora eles fluem em maior número para o centro da Europa.
Compreensivelmente, preferem tentar a sua sorte onde as condições de valorização
e, portanto, as condições de trabalho e de vida são (por enquanto) melhores.
Por isso os movimentos mundiais de
refugiados são referidos neste país como crise, não por se tratar de uma
catástrofe para todos e cada um dos refugiados, nem por ter sido estabelecida
uma ligação com a crise categorial da sociedade fetichista, mas porque agora se
estima que mais de um milhão de pessoas passaram as fronteiras alemãs em busca
de protecção (sendo, ainda assim, apenas uma fracção dos realmente afectados).
Para além das fronteiras nacionais, consideram-se também ultrapassados os muito
lamentados “limites da capacidade”. Estes limites já estão atingidos para muitos
alemães quando surgem no seu ambiente de vida pessoas percebidas como estranhas
e, portanto, evidentemente, a "islamização" está iminente. À primeira vista, o
reflexo racista parece, de facto, não ser tão virulento como no início dos anos
noventa. Pelo contrário, não foram os refugiados recebidos à chegada com
aplausos e donativos nas estações ferroviárias alemãs? Foram sim, mas depressa
se impôs a suspeita, agora agravada, de que se tratava de uma performance de
deslocamento dos "criadores culturais (2) de boas-vindas", que consiste em
apaziguar com o activismo filantrópico uma certa má consciência relativamente às
fontes da própria prosperidade precária e às possibilidades de vida a ela
associadas, a fim de não ter de esbanjar nenhum pensamento verdadeiro sobre o
estado do mundo. O gesto banal de boas-vindas e a entrega frequentemente pouco
coordenada de roupas usadas aos requerentes de asilo não foram acompanhados de
reflexão sócio-crítica nem de um compromisso político significativo, que pudesse
ser virado consequentemente contra todas as restrições ao direito de asilo,
entretanto decididas duma "cimeira de refugiados" para outra, tanto na Federação
Alemã como na União Europeia.
Ainda que a indignação moral volte
a crescer repetidamente, de cada vez que morrem algumas dezenas ou centenas (ou
até mesmo uma única criança) no Mediterrâneo ou nos camiões dos "traficantes",
enquanto não forem criadas possibilidades legais de entrada, continuando, pelo
contrário, a faixa da morte a ser estendida ao longo das fronteiras da União
Europeia, tem de se presumir que a maioria da população da Alemanha e da Europa
se regozija secretamente com todos e cada um dos que não conseguem entrar na
União Europeia e que, com a sua mera presença, nos lembrariam como nesta
sociedade afinal é fácil, especialmente na crise, ser mandado para trás, para a
existência corporal desprotegida e literalmente sem valor da "vida nua".
Com a "cultura de boas-vindas" do
Verão de 2015, que em todo o caso já foi ofuscada por ataques incendiários a
casas geralmente desabitadas destinadas aos requerentes de asilo e pela ascensão
da AfD e dos "Pegida" (sem que ninguém tenha proclamado uma crise de "racismo"
ou de "nazismo"), a República Federal dirigiu uma campanha de imagem política
para o exterior, que era mesmo urgentemente necessária após as negociações com a
Grécia. Mas a última palavra da política de refugiados aqui continua a ser:
manter fora, prender, deportar. O cúmulo destes esforços, por agora, são as
"zonas de trânsito" propostas pela CSU para as fronteiras da Alemanha, em que os
pedidos de asilo "manifestamente infundados", como é dito, devem ser
imediatamente rejeitados. Também aqui brilha a política alemã na sua lógica
inamovível, que vai dar na exigência de um projecto claramente articulado de
"examinar" os pedidos de asilo antes de poderem ser apresentados, ou melhor,
rejeitá-los antes de terem sido examinados. Acresce que os mesmos políticos que
aumentam constantemente o Estado policial, com base em que a Internet não deve
ser "uma área fora da lei", criam agora áreas sem lei para os refugiados e,
portanto, mais uma vez confirmam a lógica do estado de excepção, no qual o
Estado moderno por si está em vias de cair na crise e ao qual já estão expostos
em todo o mundo os supérfluos obrigados a fugir (também neste país as leis Hartz
(3) já apresentam traços de uma "privação legalizada de direitos" das pessoas
afectadas, como se poderia talvez chamar-lhes).
Assim se volta a demonstrar
simplesmente o que ameaça potencialmente todos, quando o processo de decadência
social não é virado emancipatoriamente. Se a política, durante a história da
ascensão do patriarcado produtor de mercadorias, funcionou temporariamente no
sentido de distribuir a riqueza e os direitos aos grupos anteriormente
desfavorecidos, hoje só pode haver, na forma do político, a disputa (na melhor
das hipóteses travada "democraticamente") sobre quem será o próximo a ficar
privado de direitos e expropriado, na execução da tendência histórica. Quanto
menos parece ser possível estar à altura das circunstâncias com os meios da
teoria, mais urgente se torna uma crítica categorial delas, se não se quiser
acabar por participar nessa disputa, como faz parte da esquerda por todo o lado.
Na medida em que as formas de decadência e asselvajamento da socialização
patriarcal capitalista se tornam mais confusas, a crítica social tem de ser
realmente complexa e tem de esclarecer, também no lado subjectivo, o
processamento ideológico dos processos de crise. Todavia, já unicamente como
condição para isso, por maioria de razão ela tem de desenvolver o conceito da
totalidade fragmentada, que se afunda em virtude da sua própria dinâmica
destrutiva. Os artigos deste número da revista gostariam de dar uma pequena
contribuição para isso sob o tema “A colonização e o terror da exclusão”.
NOTAS DO
TRADUTOR
(1) A redução
do tempo de trabalho aqui referida é limitada aos casos legalmente previstos e
implica compensação salarial dos trabalhadores afectados paga pela segurança
social.
(2) O termo
Kulturschaffender
(criador cultural) surgiu na década de 1920 e teve grande carreira no
nacional-socialismo, no sentido de impor as ideias do regime às massas.
(3)
As reformas Hartz (Hartz I a Hartz IV) foram impostas paulatinamente de
2002 a 2005, no
governo de Schröder e sob inspiração de Peter Hartz, então director de pessoal
da Volkswagen, traduzindo-se numa drástica restrição dos direitos da segurança
social, sobretudo em caso de desemprego, e tendo sido depois macaqueadas noutros
países europeus, nomeadamente Portugal.