SUMÁRIO E EDITORIAL
Sumário
Editorial
Johannes Bareuther
O ANDROCENTRISMO DA RAZÃO DOMINADORA DA NATUREZA
(PARTE 1)
Natureza demoníaca e natureza mecânica
1. A derivação da Revolução Científica feita por
Bockel a partir da análise da forma de pensar
2. Divisões estruturais na relação com a natureza
3. Francis Bacon como propagandista da razão
dominadora da natureza
4. As perseguições às bruxas como crimes fundadores
do patriarcado produtor de mercadorias e o seu papel no estabelecimento da
racionalidade científica
5. Resumo e visão histórica
Robert Kurz
A LUTA PELA VERDADE
Notas sobre o mandamento pós-moderno de
relativismo na teoria crítica da sociedade – um fragmento
Conflitos sobre a verdade
Da teorização da política à politização da teoria
Na ordem do dia estão a táctica, a estratégia, o
mimetismo, camuflagem.
O dogma "anti-dogmático" da pós-modernidade
O apertar da tarraxa
O lugar na história como campo de batalha das ideias
Linguistic turn
Totalitarismo da linguagem e coisa em si
A história como campo de batalha das ideias, as
ideias como campo de batalha da história
Roswitha Scholz
VIVA O FETICHE!
Sobre a dialéctica da crítica do fetichismo no
actual processo de ‘Colapso da modernização’. Ou: quanto establishment
pode suportar a crítica social radical?
1. A "Nova Leitura de Marx" – breve história da
crítica do fetichismo desde 1965 e sua multiplicação/massificação hoje.
2. O "Novo espírito do capitalismo", o "Eu
empresarial" e a crítica do fetichismo
3. Crítica do fetichismo e trabalho científico
4. Crítica do fetichismo, verdade e conteúdo
5. Feminismo e crítica do fetichismo
6. Resumo: crítica Fetichismo como processamento da
contradição ou crítica radical?
Daniel Späth
CRÍTICA DA FORMA E DA
IDEOLOGIA DOS PRIMEIROS SISTEMAS DE HEGEL – II: O SISTEMA DA ETICIDADE
I. O sistema da natureza
Não identidade na era da crise fundamental do
capitalismo de contradição objectiva
“Filosofia Transcendental" e "Filosofia do
Espírito": a crítica de Hegel a Kant e a lógica de subsunção recíproca do
"Sistema da Eticidade"
A natureza moral e o princípio formal do Espírito
Natureza moral e o "trabalho abstracto" como
"trabalho do conceito"
O "trabalho do conceito" como movimento formal da
circulação
Sistema da natureza e dialéctica positiva: A
dialética hegeliana como lógica da identidade
Roswitha Scholz
APÓS POSTONE
Sobre a necessidade de transformação da ‘crítica
do valor fundamental'. Moishe Postone e Robert Kurz em comparação – e a crítica
da dissociação-valor
Introdução
O argumento de base de Postone
Individualismo metodológico, estrutura – acção e
afins
Forma da mercadoria e forma do capital
Dinheiro – circulação – forma do capital –
mais-valia
Relação entre trabalho abstracto e trabalho concreto
Tempo abstracto, tempo histórico concreto, tempo
biográfico, tempo do mundo do dia-a-dia e tempo concreto do colapso do
capitalismo
Sujeito revolucionário e socialização de classe
média
Dissociação-valor, totalidade fragmentada e
disparidades sociais: algumas observações necessariamente incompletas sobre o
contexto da dissociação-valor como contexto social basilar
RECENSÕES – GLOSAS – COMENTÁRIOS
Gerd Bedszent: Um velho/novo espectro
paira
Gerd Bedszent: Fome
Udo Winkel: Libido e sociedade
Udo Winkel: Viena, os judeus e o
anti-semitismo
Udo Winkel: A I Guerra Mundial
Gerd Bedszent: A Ucrânia – dualidade de
nacionalismo e falência do Estado
EDITORIAL
A crise que se manifestou com o crash de 2008 há
muito tempo que não é uma mera crise económica, se é que alguma vez o foi. O
declínio da relação social constituída pelo capital não pode deixar de afectar
nenhum dos seus subsistemas, ainda que os actores que neles agem gostem de se
imaginar independentes da totalidade social: O Estado burguês está tão próximo
da dissolução como a política e o direito civil. Parece que a crise vai
desembocar num massacre geral a nível mundial, ainda que os centros capitalistas
até agora tenham sido poupados a isso. Esta tendência em desenvolvimento também
já é coberta pelas estatísticas burguesas e é tema de pronunciamentos oficiais:
Nunca houve mais guerras e conflitos armados desde o
fim da II Guerra Mundial do que em 2013. O Instituto Heidelberg para a Pesquisa
de Conflitos Internacionais, no seu
Barómetro de Conflitos, conta a nível
mundial 20 guerras, 25 "guerras limitadas", além de 176 "crises violentas", ou
seja, conflitos sociais violentos e decididos pela força das armas. Não
são afectados por isso – abstraindo de algumas, pequenas excepções – apenas os
países capitalistas centrais: Europa (excluindo a Rússia), América do Norte,
Austrália e Japão.
Mais insegura ainda se apresenta a situação no
Índice de Estados Falhados, ou seja, a
lista de Estados que não estão em condições de exercer as suas funções básicas
ou de as exercer plenamente. Com plena funcionalidade já são apenas reconhecidos
o norte da Europa, o Canadá e a Austrália, estando ainda os outros países
capitalistas centrais em grande parte estáveis, apesar de tudo, enquanto todos
os outros já são considerados falhados ou em risco disso. Ora, como sempre em
pesquisas empíricas deste tipo, pode seguramente discutir-se sobre a sua
metodologia de base, e pode supor-se à partida que esses estudos também contêm
resultados parciais questionáveis. Mas a tendência é clara: Apesar de a crise
ter vindo dos centros capitalistas, quem tem de suportar as suas
consequências em primeiro lugar são aqueles à custa dos quais o
desenvolvimento capitalista se fez sempre.
Isso também é evidente no aumento cada vez maior do
número de refugiados. De acordo com um
relatório da Agência da ONU para os Refugiados, ACNUR,
nunca desde o fim da II Guerra Mundial houve tantas pessoas em fuga como em
2013, ou seja, cerca de 51 milhões, 6 milhões mais do que no ano anterior. Tanto
os menores como o sexo feminino constituem a maioria. Os homens adultos, como
parece daí decorrer, estão na guerra ou já morreram. Dois terços dos fugitivos
são deslocados internos, em fuga de guerras civis para outras partes dos seus
Estados em desagregação; um terço teve que deixar seu país natal. 86 por cento
foram parar a outros países da periferia capitalista, que por sua vez estão
marcados por processos de dissolução e crescentes conflitos semelhantes a
guerras civis, de modo que não se pode esperar que eles possam ficar lá
permanentemente. "Estas massas humanas desesperadas e exaustas de um sistema
capitalista mundial em agonia não terão qualquer outra opção a não ser fugir
para os poucos centros que ainda não se afundam na anomia. A miséria global
crescente dos refugiados é o produto final da crise mundial do capital que – em
colapso nas suas contradições internas e externas – produz uma humanidade
literalmente supérflua." (Tomasz Konicz:
O mundo em guerra civil)
Embora os países capitalistas centrais até agora
apenas tenham recebido uma pequena parte dos refugiados, a sua resposta à
"ameaça" que aqui emerge é clara: Assim como nas sociedades capitalistas os
poucos ricos estão cada vez mais protegidos por seguranças privados, fechados
nos seus guetos, assim também os poucos países relativamente ricos apertam as
regras de imigração e aplicam-nas, se necessário, violentamente: na América do
Norte, através de uma "cortina de ferro" estabelecida na fronteira entre o
México e os Estados Unidos; na UE, através da agência de fronteiras
especialmente criada para o efeito, Frontex, que pretende apanhar os refugiados
ilegais logo no Mediterrâneo, com o argumento cínico de assim evitar que se
afoguem. Esta tentativa de barramento, no entanto, terá provavelmente tão pouco
sucesso a longo prazo como a tentativa, que entretanto se tem de considerar
fracassada, de impor a "nova ordem mundial" por meios militares.
Perante as consequências da crise, cujo elenco acaba
de ser esboçado, é mais que aventureiro interpretar a crise não como crise
(económica) mundial, mas apenas como crise do "capitalismo tradicional nos
Estados Unidos, Europa e Japão", como faz Rainer Trampert na revista Konkret
07/14. Em comparação "meio mundo estaria a caminho da industrialização mais
colossal de todos os tempos". Em última análise, apenas a Europa permaneceria
como "região de crise do capitalismo mundial". Os Estados Unidos, por sua vez,
estariam em vias de saneamento em breve, graças à redução para metade dos custos
da energia por meio do fracking e a uma pausa militar, enquanto uma parte
do resto do mundo teria desencadeado um aumento na produção de mercadorias "que
em 12 anos triplicou a movimentação de contentores para 600 milhões de unidades
por ano". Neste contexto ele apela aos "teóricos do fim dos tempos" de um
declínio global "para darem uma chance à realidade". Está tudo dito.
JustIn Monday com razão acentuou na sua resposta a
Trampert, na Konkret 08/14, que a crise afecta o contexto económico
global. Isto parece ser algo que Trampert não quer ou não consegue pensar. Para
ele, há apenas um sistema de economias nacionais concorrentes entre si, mas não
uma totalidade abrangente do mercado mundial. Ora, para tal ponto de vista, fica
claro à partida que só pode haver sempre vencedores e perdedores (relativos),
mas não um declínio geral.
Uma outra e importante dificuldade em lidar com a
crítica do capitalismo à la Trampert é que esta ignora a diferença entre
valor de uso, valor e preço, ou nem sabe o que isso é e, portanto – tal como a
economia política académica – tem de cavalgar nos fenómenos superficiais do modo
de produção capitalista. Quem, com Marx, pelo contrário insiste na importância
das grandezas não-empíricas, como a massa de valor ou de mais-valia social
global, para avaliar a evolução do capitalismo, é acusado de "esoterismo". Isto,
no entanto, já tem uma tradição de mais de vinte anos. (1) Claro que não vamos
voltar a ela. Resta apenas deixar clara a diferença, para nós importante, em
alguns exemplos:
O que significa o triplicar da movimentação de
contentores em 12 anos? Na verdade, só que os fluxos comerciais têm crescido em
conformidade. Mas isso não é surpreendente, se a produção industrial é deslocada
para países de baixos salários, mas o consumo das mercadorias aí produzidas
continua a ser predominantemente nos países capitalistas centrais. Isso não
permite tirar conclusões sobre a quantidade total da produção de mercadorias.
Acresce que aqui calculam-se valores de uso, que para o capital apenas têm
interesse como portadores de valor e mais-valia (esta constatação,
provavelmente, já é considerada como "esoterismo"). Saber se a mais-valia obtida
com as mercadorias produzidas e embarcadas nos contentores aumentou ou diminuiu
é coisa que fica completamente fora da reflexão de Trampert. Isso exigiria uma
teoria com a qual ele não se quer envolver.
Noutro lugar observa Trampert que a produção
económica anual da Alemanha aumentou de 2000 a 2010 apenas 0,9 por cento. "Ao
mesmo tempo, o valor do capital subiu a alturas astronómicas." Daí conclui ele
que houve um "alto grau de formação de capital". O que realmente atingiu alturas
astronómicas neste período foram as cotações das acções. Obviamente que há aqui
uma confusão entre valor e preço. O capital improdutivo, não valorizável por
falta de crescimento económico real, ataca nos mercados de acções e imobiliário
e aí faz subir os preços (asset inflation [inflação de activos]), mas não
o seu valor. Esta formação de bolhas pela especulação resulta da falta de
oportunidades de investimento real e, portanto, de acordo com Marx, é uma
manifestação da crise. Trampert, no entanto, parece interpretá-la como indício
da boa forma do modo de produção capitalista.
É indiscutível que a produção industrial nas últimas
décadas foi transferida dos países capitalistas centrais para partes da
periferia – a Alemanha é quase a única excepção no que se relaciona com os
processos de desindustrialização associados a isso. Robert Kurz, no seu livro
Das Weltkapital [O capital mundial] analisou este processo como parte da
globalização da economia empresarial. (2) Mas qual é a consequência? O problema,
da perspectiva de uma análise da crítica do valor, não é – como supõe Trampert –
que as instalações industriais foram construídas "a crédito", como já eram há
muito tempo, e nisso ele está certo. O problema do capital mundial é, sim, que a
situação assim alcançada apenas pode ser mantida através de circuitos de
déficit, ou seja, em última instância um fluxo de mercadorias financiado a
crédito da periferia para os países centrais, o que a longo prazo não é
possível. Os países periféricos são competitivos apenas por causa de seus
salários de fome, o que Trampert também parece saber de alguma forma, quando vê
a sua vantagem sobre os países centrais no facto de estes estarem
"democraticamente constituídos e equipados com sistemas sociais aceitáveis". Ora
assim o "novo capitalismo" continua dependente das exportações para os países do
"capitalismo tradicional". Qualquer tentativa de substituí-las por um aumento da
procura interna prejudicaria imediatamente a sua competitividade no mercado
mundial.
A propósito, a China, que após o crash de 2008
lançou um pacote de estímulo económico atrás de outro para manter as taxas de
crescimento e assim fez crescer cidade fantasmas inteiras financiadas a crédito,
parece agora ter chegado ao fim da picada. Em Julho de 2014 o volume de
empréstimos caiu drasticamente e os especialistas agora já prevêem um crash
comparável ao de 2008. Não tem de ocorrer no curto prazo, mas esse processo
mostra quão frágil é o castelo de cartas que o "novo capitalismo" supostamente
suporta.
Perante as muitas e variadas crises nem todos são
tão resistente como Rainer Trampert. O crescente número de falências nacionais e
programas de austeridade, os problemas de legitimação do sistema
democrático-capitalista que lhes estão associados, a agitação social, a ascensão
de partidos de direita e do fundamentalismo islâmico, cenários da guerra civil e
o aumento de conflitos armados entre Estados desencadearam na esquerda um debate
sobre a transformação. Embora na Alemanha de Merkel ainda prevaleça uma calma
enganadora, ultimamente muitos têm o discurso do declínio do capitalismo na
ponta da língua, mesmo que não consigam dizer o que está realmente errado no
fundamental. Procuram-se novas soluções e põe-se o "problema no sistema" que, no
entanto, é normalmente respondido com as velhas receitas de esquerda: democracia
económica, medidas keynesianas, economia solidária, commons e afins.
A redução da crítica do capitalismo que aqui se
exprime está – dito de forma algo generalizada – em que o capital não é
entendido como uma relação social abrangente, mas como um subsistema entre
muitos (a "economia"), que de algum modo se tornou abusador ("capitalismo
predatório") e por isso é preciso recuperar e amansar. Que os seus próprios
subsistemas (política, partidos, sindicatos, universidades, etc.) fazem
igualmente parte do capitalismo e, portanto, são parte do problema e não da sua
solução é coisa que não lhes entra na cabeça.
O resultado é que as análises críticas e as
propostas de solução são despercebidamente viradas para trás nas suas próprias
estruturas: Isso permite, por exemplo, fazer novamente carreira científica com a
crítica do capitalismo, sendo preciso, no entanto, cumprir as regras que vigoram
no trabalho científico. Em particular, a própria ciência não deve ser
questionada, com o que, é claro, se constrói desde o início uma abordagem
abrangente. Correspondentemente, os conceitos discutidos dentro do subsistema
político vão sempre no sentido de restaurar o "primado da política” sobre a
economia. Que a própria política tenha de ser ultrapassada com o capitalismo é
coisa que não pode ser pensada.
Completamente fora da percepção permanece,
finalmente, a medida em que os indivíduos, como forma burguesa de sujeito, são
afectados pela sociedade a que pertencem. O capitalismo é considerado externo a
eles, como se fosse possível ser abolido podendo os sujeitos da mercadoria e do
dinheiro permanecer como estão. Isso resulta em conceitos que podem tornar a
transformação desejada num automatismo. Segundo eles, por exemplo, o
desenvolvimento das forças produtivas e o desaparecimento associado com ele do
trabalho da produção já é considerado suficiente para a passagem à nova
sociedade, que se consuma por si mesma; (3) ou então – esta é a versão
tradicional bem conhecida – assume-se que as contradições objectivas do
capitalismo e o sofrimento das pessoas nestas condições sociais levariam
necessariamente a uma consciência revolucionária. Assim se deixa de ver, com
optimismo, que os indivíduos realmente existentes na maioria reagem de forma
diferente ao facto de se tornarem supérfluos, ou seja, com a formação de
ideologia reacionária, com a organização, especialmente dos concorrentes do sexo
masculino, em actividades mafiosas ou fascistóides – que em alguns lugares e não
apenas na periferia incluem também a polícia – e com o virar da guerra burguesa
de todos contra todos, até aqui ainda mantida sob o controlo da legalidade, em
violência aberta.
Uma vez que o derrube do capitalismo não é um
processo objectivo, mas sim "uma tarefa da acção humana" (Robert Kurz), a
questão de saber que saída assume a decadência da sociedade burguesa será
decidida, em última instância, em saber se e até que ponto conseguem os
indivíduos livrar-se da sua orientação de sujeitos da mercadoria e do dinheiro.
Para a crítica da dissociação-valor, isto significa que nós precisamos mais que
nunca de nos virarmos para as devastações que a sociedade burguesa causa no
interior dos seus membros. É justamente a substituição feita pelo iluminismo das
coerções externas por princípios de coação ancorados nos indivíduos que torna
tão difícil a saída do "jaula de ferro" (Max Weber) do capitalismo para os que
estão presos nele.
Assim também o tema central deste número da revista
é sobre a crítica do "lado subjectivo" da sociedade burguesa e as distorções
ideológicas surgidas no curso do seu declínio.
Quando, no século XVII, figuras como Francis Bacon,
Galileu e Descartes formularam o programa e as primeiras versões dum novo
conhecimento da natureza na forma de leis e da correspondente filosofia
mecanicista, as atrocidades patriarcais da caça às bruxas atingiam o seu auge na
Europa. Johannes Bareuther reflecte sobre esta coincidência histórica
marcante no texto O ANDROCENTRISMO DA RAZÃO DOMINADORA DA NATUREZA. Revela-se
que, na realidade, a ciência mecânica da natureza fica a dever-se essencialmente
à socialização do valor que se impôs ao mesmo tempo, como já Eske Bockelmann
demonstrou. Além disso, porém, também podem ser apontados os vestígios do crime
fundador do patriarcado produtor de mercadorias, por assim dizer da “dissociação
sexual original”, nas categorias e figuras da nova concepção da natureza.
Vestígios que serão apresentados ao longo do texto, em conexão conceptual com a
dialéctica entre a dominação interna e externa da natureza e a correspondente
dinâmica do sujeito burguês masculino, podendo a dissociação sexual ser assim
reconhecida como condição constitutiva da ciência moderna.
O fragmento póstumo de Robert Kurz “A
LUTA PELA VERDADE” é dirigido contra o mandamento pós-moderno de relativismo na
teoria crítica da sociedade. Este mandamento é identificado como resultado da
incerteza transitória, no final da época burguesa, em que também o campo de
crítica do capitalismo legitimado com as ideias de Marx se apresenta muitas
vezes como uma espécie de labirinto para quem está de fora. A resposta
pós-moderna a esta situação consiste agora em viver a "perda de todas as
certezas" não porventura como problemática, mas em elevá-la a dogma, a nova
garantia de salvação, cuja promessa de felicidade consiste em já não ter de se
comprometer com nada e deixar tudo em aberto. Qualquer posição determinada, que
desde logo não reconheça também o seu contrário, é acerbamente criticada por
este dogma. Mas essa imprecisão e ambiguidade não podem ser mantidas por tempo
ilimitado porque a própria gravidade da situação de crise está a obrigar a uma
definição. O pensamento pós-moderno, ao rejeitar uma nova clareza ou definição
de conteúdo e pretendendo ver justamente nessa rejeição o novo em geral, está
apenas a apelar ao potencial de barbárie nele adormecido, sendo apanhado de
surpresa pela sua própria decisão infundamentada.
No seu texto “VIVA O FETICHE! Sobre a dialéctica da
crítica do fetichismo no actual processo de ‘Colapso da modernização’. Ou:
quanto establishment pode suportar a crítica social radical?" Roswitha
Scholz examina em que medida a crítica do fetichismo no actual capitalismo
em colapso não constitui ela própria o pano de fundo da ideologia de crise. Se
outrora a crítica do fetichismo foi determinada por existências de bastidores,
hoje ela existe nas mais diversas cores e formas. Não apenas está infiltrada no
discurso da esquerda, mas ocupa mesmo círculos burgueses. E corre cada vez mais
o risco de se tornar parte da administração da crise e dum novo entrepreneurship
(empreendedorismo). O/a crítico/a do fetiche há muito se move num novo contexto
de rede oportunista no declínio do capitalismo, o que ele/ela no fundo também
sabe. Em vez disso, será bom ganhar distância em relação à própria história
teórica, insistir numa dialéctica de crítica do fetiche e continuar “loucamente”
a intervir no sentido do reconhecimento intransigente de uma necessária "ruptura
categorial ou ontológica" (Robert Kurz). Por isso é preciso olhar com
desconfiança as soluções simples, em termos de uma crítica da dissociação-valor
rebaixada, tanto no contexto do seu tratamento científico como também na forma
de pseudo-concepções práticas.
Na segunda parte da sua “CRÍTICA DA FORMA E DA
IDEOLOGIA DOS PRIMEIROS SISTEMAS DE HEGEL” Daniel Späth expõe o “System
des Sittlichkeit” [Sistema da eticidade] no qual Hegel dá testemunho
detalhado da sua compreensão da dialéctica. O presente texto trata do primeiro
sistema deste escrito hegeliano, o “Natursystem” [sistema da natureza]. Depois
da relação entre intuição e conceito, desenvolvida por Kant na sua "filosofia
transcendental", trata-se de elaborar as ligações epistemológicas entre Kant e
Hegel, a fim de classificar tanto a “filosofia transcendental" como a "filosofia
do espírito" no que respeita à ruptura categorial entre filosofia do sujeito e
crítica do fetiche, entre dialéctica positiva e negativa. Perante este pano de
fundo torna-se depois possível uma reflexão detalhada sobre a dialéctica
hegeliana, que não em último lugar examina o seu ponto de referência social,
assim se evidenciando já nesta primeira parte a parcialidade categorial de
Hegel, no interior duma filosofia do sujeito baseada na lógica da identidade.
No texto "APÓS POSTONE. Sobre a necessidade de
transformação da ‘crítica do valor fundamental'. Moishe Postone e Robert Kurz em
comparação – e a crítica da dissociação-valor", Roswitha Scholz põe em
destaque as diferenças entre Kurz e Postone do ponto de vista do “individualismo
metodológico" (incriminado por Kurz). Expressas em termos esquemáticos, essas
diferenças funcionam assim: enquanto Kurz insiste em ler “O Capital” como um
todo e só depois observar a forma da mercadoria, situação em que o terceiro
volume de “O Capital” assume importância, justamente para o processo das
categorias reais de um colapso/decadência do capitalismo hoje observável também
empiricamente, Postone agarra-se às primeiras 150 páginas de “O Capital” e
desenvolve a partir daí o curso do capitalismo, sem consequências em termos de
teoria da crise. Postone recorre basicamente à forma da mercadoria, Kurz à forma
do capital. Ao mesmo tempo, Postone defende implicitamente um ponto de vista que
tende a ser ideologicamente complacente com a classe média, não em último lugar
porque coloca em primeiro plano sobretudo a ecologia, enquanto Kurz, bem
consciente da questão ecológica, desmascara simultaneamente os interesses de
classe média como ideologia; em Postone, no fundo, existe um "limite interno"
apenas no plano da ecologia, mas não no da economia. Posto isto, Postone e Kurz
(pelo menos no seu último livro "Dinheiro sem Valor") movem-se ambos no plano do
capital como processo total. O plano da "dissociação do feminino" em relação ao
valor (mais-valia), entendido em termos de dialéctica negativa, não surge em
nenhum deles ou surge apenas secundariamente. Da perspectiva da crítica da
dissociação-valor, no entanto, os diferentes planos, o plano material, o
cultural-simbólico e – last, but not least – o psicanalítico terão de ser
relacionados entre si, em seu entrelaçamento dialéctico e simultânea separação,
no seu desenvolvimento processual. Só assim poderá ser suplantada a totalidade
negativa, para além do individualismo metodológico androcêntrico, bem como do
universalismo androcêntrico, o qual, afinal, apenas ele constitui essencialmente
a decadência de crise do patriarcado capitalista.
A rubrica final RECENSÕES – GLOSAS – COMENTÁRIOS
contém seis contributos. No primeiro, com o título "Um velho/novo espectro
paira", Gerd Bedszent comenta a publicação do "Manifesto Comunista" em
áudiolivro, lido pelo actor Rolf Becker, cuja leitura em 3 de Março de 2013
provocou uma chuva de aplausos. Também Gerd Bedszent, no artigo "Fome",
debate-se criticamente com os méritos e déficits de Jean Ziegler e do seu livro
"Destruição em Massa - Geopolítica da Fome”. Udo Winkel comenta em
"Libido e sociedade" a nova edição do escrito com o mesmo nome de Helmut Dahmer;
em "Viena, os judeus e o anti-semitismo", o ensaio publicado no 90º aniversário
Egon Schwarz na editora Fin de siècle; e em "A I Guerra Mundial", os muitos
livros publicados no ano jubilar de 2014 sobre este assunto. A rubrica termina
com um texto mais longo de Gerd Bedszent concluído em Setembro 2014, "A
Ucrânia – dualidade de nacionalismo e falência do Estado", que aborda a génese
histórica da guerra civil desencadeada e assim possibilita uma interpretação
mais adequada do chamado "conflito Rússia-Ucrânia" do que a usada no confronto
entre os média ocidentais, por um lado, e partes da esquerda, por outro.
Em Outubro de 2014 saiu na editora Horlemann-Verlag
o livro de nosso autor Gerd Bedszent Zusammenbruch der Peripherie.
Gescheiterte Staaten als Tummelplatz von Drogenbaronen, Warlords und
Weltordnungskriegern [Colapso da periferia. Estados falidos como campo de
jogos de barões da droga, senhores da guerra e guerreiros do ordenamento
mundial].
A redacção e Elmar Flatschart acordaram
amigavelmente, por razões de conteúdo e organizacionais, a sua saída da equipe
redactorial. No entanto ele continuará por agora ligado ao projecto EXIT
colaborando nos conteúdos.
Mais uma vez agradecemos a Angela Aey pelo seu
trabalho dedicado no layout da revista.
Claus Peter Ortlieb pela redacção, Setembro de 2014
(1) Ver Thomas Ebermann / Rainer Trampert: Über
die Sanierung des Kapitalismus, die Verwandlung linker Theorie in Esoterik,
Bocksgesänge und Zivilgesellschaft [Sobre a restauração do capitalismo, a
transformação da teoria de esquerda em esoterismo, bramidos de veado e sociedade
civil], Koncret-Literatur-Verlag, Hamburgo 1995; sobre os extractos publicados
em três números da revista Konkret em 1995 Robert Kurz tomou posição em
dois textos: Fordistische Fossile [Fossil fordista] in Konkret
04/95, Altdeutsche Radikalität [Velho radicalismo alemão] in Konkret
07/95; outro texto, Abschied von der Realität [Despedida da realidade],
in Konkret 02/97, trata da ideia divulgada por Ebermann / Trampert de que
a globalização seria uma invenção dos interessados. Enquanto antes era
completamente negada a possibilidade de uma crise fundamental, Trampert redu-la
agora à Europa, numa espécie de eurocentrismo negativo. Pelo menos é um passo em
frente.
(2) Já anteriormente na resposta acima citada a
Ebermann / Trampert in Konkret 02/97
(3) Tais concepções encontram-se, por exemplo, no
círculo do "Partido Pirata". Ver, por exemplo, Ludger Eversmann: Projekt
Post-Kapitalismus: Blueprint für die nächste Gesellschaft [Projecto de
Pós-Capitalismo: Modelo para a próxima sociedade], Telepolis Ebook,
Heise-Verlag, Hannover 2014