Daniel Späth - O liberalismo na crise fundamental: Crítica do "movimento pós-crescimento"

 

Liberalismo e crítica dos juros

"Quem se acomodou ao acolchoado serviço completo non-stop, não pode, ao mesmo tempo, preservar a soberania dum indivíduo que liga as suas exigências apenas às possibilidades que podem ser reproduzidas se necessário pelos seus próprios esforços." (1)

"Acolchoado serviço completo non-stop" – esta descrição da situação social por Niko Paech, o espírito norteador do movimento pós-crescimento, não aponta de modo nenhum para a antecipação utópica de uma sociedade livre; pelo contrário, trata-se aqui de uma ilustração do capitalismo de crise no início do século XXI. Se estas frases de Paech podem dever a sua existência, por vezes, a uma hipostasiação professoral do seu próprio ponto de vista particular, cujo "acolchoado serviço completo non-stop" está entretanto ele mesmo em erosão sucessiva e cada vez mais resvala para relações de emprego precário, a cegueira expressa para com a pobreza e a miséria existentes, no entanto, não pode ser explicada unicamente a partir deste campo de referência subjectiva. Afinal de contas, manifestou-se com o movimento do pós-crescimento nos últimos anos um grupo político que sabe como ter sucesso, tanto no meio da esquerda radical como no meio académico.

A primeira impressão relativamente à pedra angular do conteúdo político do movimento pós-crescimento, que é bastante diversificado, pode dar o referencial teórico mais importante dos seus autores. Assim Niko Paech e Irmi Seidl referem-se nos seus escritos muitas vezes a Silvio Gesell, o conhecido crítico dos juros, cujo trabalho principal Die natürliche Wirtschaftsordnung durch Freiland und Freigeld [A ordem económica natural através de terra livre e dinheiro livre] oscila entre a doutrina ordo-liberal e a ênfase anarquista na natureza. E, de facto, segmentos do movimento do pós-crescimento têm um entendimento muito liberal em termos de "capitalismo de Manchester", o que se aplica mais a Zahrnt do que a Paech (2). Dado que a chamada crítica dos juros, como é sabido, já dá sempre abertamente o flanco ao anti-semitismo, ainda assim com ela é lançada uma luz sobre um contexto que também na Teoria Crítica – da Dialética do Esclarecimento até aos actuais debates – se mantém bastante no escuro: sobre a relação entre liberalismo e anti-semitismo.

Este espaço vazio da crítica da ideologia da esquerda radical é mediado pelo ensaio de Moishe Postone Antisemitismus und Nationalsozialismus [Anti-semitismo e nacuional-socialismo], sem dúvida ainda hoje extremamente importante. Nele Postone deriva a formação da ideologia anti-semita a partir da forma do valor, de tal modo que concebe como estrutura fundamental da ideologia anti-semita a contradição dela constitutiva entre a "manifestação abstracta" (dinheiro, mercado mundial, etc.) e a "manifestação concreta" (trabalho, produção, mercadoria) daquela forma. Pois, segundo Postone, a peculiar separação de uma esfera aparentemente natural do capital relativamente ao valor, esfera que seria reformulada de uma aparentemente abstracta, é mera ilusão, porque a substância do capital, o "trabalho abstracto" (Marx), ele próprio experimenta uma abstracção real na produção, que degrada o conteúdo material do trabalho social em mero meio de representação daquela substância. A divisão entre produção enraizada e circulação artificial, conclui Postone, surge como constitutiva para o anti-semitismo, na medida em que ele denuncia a última como judaica no sentido da primeira.

Por muito esclarecedora que seja a análise de Postone em termos de crítica da ideologia, todavia é-lhe inerente uma conclusão equivocada de longo alcance, que também na esquerda radical se tornou  num inveterado auto-entendimento: pois, sendo o jogar da "produção natural" contra a " circulação abstracta" uma verdadeira condição do pensamento nacionalista, fetichista o pólo concreto ("trabalho nacional") e move-se assim já sempre na formação ideológica estruturalmente anti-semita. Fora da linha de tiro, contudo, fica assim implicitamente o pensamento liberal iluminista, como ele fica impregnado da formação ideológica anti-semita, pelo menos tendencialmente, ainda que designe como positivo o lado abstracto do capital (a circulação). Que o anti-semitismo e até mesmo o anti-sionismo é na verdade constitutivamente mediado com a razão iluminista, é o que se vê não só em Kant (3) e Hegel (4), mas também no teórico que desempenha um papel importante no movimento pós-crescimento: Silvio Gesell.

Ora a teoria de Gesell revela-se como liberal, próxima da apologia aberta do capitalismo de Manchester, dado que afirma a circulação como bastião do progresso social, perfeitamente na tradição da filosofia do Iluminismo. O valor ou preço é por ele considerado como um juízo do pensamentos do proprietário do dinheiro sobre as mercadorias que circulam no mercado, situação em que este esforço de abstracção intelectual sublima a crua pulsão alimentar dos sujeitos e leva a uma estrutura moralizada das necessidades dos indivíduos. Embora Gesell afirme realmente o lado "abstracto" do capital no sentido de Postone, a circulação, no entanto baseia-se por sua vez numa redução concretista do mesmo: de facto o valor ou o preço não é uma mera abstracção do pensamento na esfera da circulação, mas uma abstracção real na própria produção. Assim a análise de Gesell desemboca na mesma divisão dicotómica entre "abstracto" e "concreto" que o pensamento nacionalista; apenas já não é do ponto de vista da produção naturalizada, mas do ponto de vista da circulação.

Assim, Gesell move-se numa forma estruturalmente anti-semita de argumentação, pois a realização do juízo intelectual do valor no acto da troca é para ele contrariada pela dignidade aparentemente abstracta do dinheiro. A vontade do proprietário das mercadorias será forçada ao acto de troca imediato pela materialidade do seu produto: "A mercadoria manda, não tolera oposição; a vontade do proprietário de mercadorias é tão impotente que nós com razão a podemos ignorar. Na procura, pelo contrário, impõe-se a vontade do proprietário do dinheiro; o dinheiro é o servo dócil do seu senhor" (5) O dinheiro, por outro lado, não material e portanto não-perecível, permite o acto livre de vontade que possibilita que ele seja retirado do mercado e acumulado; uma possibilidade que não está à disposição do proprietário das mercadorias, dada a transitoriedade material dos seus produtos: "O dinheiro que fica fora da data como um jornal, que se estraga como as batatas, que enferruja como o ferro, que evapora como o éter, é o único que consegue afirmar-se como meio de troca de batatas, jornais, ferro e éter." (6) Como o conceito de valor para Gesell exprime um mero juízo do pensamento sobre a necessidade incorporada na substância das mercadorias, também o dinheiro é até certo ponto "materializado", ou seja, subordinado ao mesmo processo de transitoriedade que a mercadoria. Com esta teoria do "dinheiro livre", vai finalmente ser abolido o juro, que tem a sua origem naquela vontade livre do proprietário do dinheiro para o entesouramento, o que poderia assim forçar a um "custo adicional" os proprietários de mercadorias condenados à troca.


Pós-crescimento e anti-semitismo estrutural

Também o autor mais conhecido do movimento pós-crescimento, Niko Paech, se junta a esta idéia de um "dinheiro livre ou com taxa negativa". Para ele, a crise tem sua origem em motores de crescimento que se autonomizam, a que se deveria pôr termo, para que os indivíduos ficassem novamente em posição de produzir de acordo com a sua "escala humana". (7) Paech diferencia aqui entre os motores de crescimento "económicos" e "simbólicos", sendo que ambos os níveis na sua teoria em última análise convergem. Como motor de crescimento económico funciona no sentido de Gesell em primeiro lugar o juro; uma consequência da redução à ideologia da circulação, que reduz o conceito de valor exclusivamente ao processo de compra e venda, tornando realmente obsoleta a produção de qualquer modo já ontologizada: "Não admira que o termo "produção" já há muito tempo tenha cedido o lugar ao conceito geral de "criação de valor". Pois os valores económicos (...) já há muito que não são produzidos através de tarefas humanas em sentido físico, mas sim como resultado de actos simbólicos, aos quais (...) simplesmente é atribuido um valor monetário." (8)

À semelhança de Kant e Gesell, Paech concebe o valor como um mero juízo do pensamento ("atribuir valor"), que já não terá nada a ver com "tarefas em sentido físico", mas agora é reformulado à maneira pós-moderna, uma vez que a implosão social das "formas objectivas de pensamento e de existência" (Marx) está prestes a resvalar para a arbitrariedade objectivada. Em conformidade com o anti-objectivismo e anti-essencialismo pós-modernos, Paech renega-se cabalmente como positivista: para fazer passar o juro por primeiro motor do crescimento económico, ele ilustra o problema "num exemplo de pagamento extremamente simples": (9) Para o efeito ele constrói uma "mini-economia" em termos de individualismo metodológico, que consiste em um produtor de bens de consumo, um número indefinido de trabalhadores, bem como "fornecedores de outros factores de input". Porque o lado da oferta (produtor de bens de consumo) tem de fazer um lucro, falta no lado da procura (salários dos/as trabalhadores/as como consumo) uma certa quantia para comprar bens de consumo.

Isso significaria, no entanto, que o produtor de bens de consumo teria de investir mais capital no período seguinte de produção, única maneira em que o hiato da procura poderia ser fechado – com a consequência então lógica de que a diferença entre a oferta e a procura só iria aumentar, sendo o lucro ainda condição necessária também no novo período de produção. Como o lucro para Paech, no entanto, consiste sobretudo no juro, surge devido à crescente diferença entre a oferta e a procura  uma espiral de crescimento exponencial induzida pelas cadeias de crédito e do juro, uma vez que a diferença de ambos os lados (produtor de bens de consumo e consumidores) tem de “ser financiada por capital alheio” “para o que têm de ser pagos juros.” (10) Como para Gesell, também para Paech o conceito de valor surge no movimento superficial de compra e venda, como um mero juízo, que seria impedido na sua realização pela vontade dos proprietários do dinheiro, que exigiriam um custo adicional (juro) pela sua "mercadoria imperecível". No entanto, em comparação com a crítica do juro de Gesell, cristaliza-se em Paech uma diferença não desprezível: se para Gesell o juro ainda se atravessava no caminho do crescimento do capitalismo, na acepção de Paech, bem pelo contrário, ele funciona como "motor de crescimento", assunto a que vamos voltar.

É claro que os/as autores/as do movimento pós-crescimento conhecem a conexão tradicional entre a crítica do juro e a formação ideológica anti-semita, não em último lugar porque eles já foram submetidos a críticas do lado da "Teoria Crítica" sobre este ponto. Entre outros, Jutta Ditfurth, Peter Bierl e Robert Kurz criticaram ao meio do movimento pós-crescimento tardio a sua desvalorização da formação ideológica anti-semita, ao que Paech então respondeu. Ele insiste, na sua "Réplica às acusações contra o arquivo da Fundação para a reforma da legislação sobre a moeda e a terra", em dividir a categoria do anti-semitismo estrutural na antítese entre "conteúdo científico" da teoria de Gesell, por um lado, e a sua "convicção" pessoal, por outro lado: "As ideias básicas para a reforma do juro, da moeda e da terra são tão fascistas como a pesquisa schumpeteriana sobre a inovação, o design do Volkswagen carocha ou as ideias de conservação da natureza assumidas por Hermann Göring. Adoptar essas ideias não significa tomar a posição política ou ideológica do seu criador."

A incapacidade de lidar com a mediação entre a dimensão económica e a sócio-psicológica do anti-semitismo radica nas premissas pós-modernas de Paech, dissolvendo a primeira na última, com o que o momento estrutural das formas anti-semitas de pensamento necessariamente tem de ser perdido: a inversão económica da crise fundamental numa crise de dívida induzida pelo juro, crise que na verdade é essencialmente devida a uma crise do próprio modo de produção e de vida e surge na superfície dos processos de mercado apenas como uma crise financeira, é, em primeiro lugar, teoricamente, completamente errada e, em segundo lugar, tudo menos uma questão neutra da "Crítica da Economia Política".

Desde o século XVIII e da teoria ideológica iluminista, constituiu-se uma crítica redutora de um ponto de vista da mercadoria tacanho equiprimordialmente com a conotação anti-semita do dinheiro, em que o anti-semitismo representa o ponto culminante do sofrimento digerido regressivamente no "patriarcado produtor de mercadorias" (Roswitha Scholz). Se nem todo o crítico do juro é anti-semita, todos os anti-semitas ligam o juro (ou o capital financeiro) com a "conspiração mundial judaica". Pelo menos desde Auschwitz, a operacionalização académica de uma "ciência neutra" que se contrapõe a uma "atitude" desonesta, deve ser decifrada como racionalização anti-judaica; qualquer flirt com uma crítica do juro ou do mercado financeiro estruturalmente anti-semita está proibida por princípio à crítica social radical. Que o velho objectivismo da crítica do valor volte agora a pescar nessas águas turvas, apenas aponta para a sua decomposição ideológica, que no entanto já se manifestara na rejeição da crítica da dissociação-valor e da conexa crítica do sujeito. (11)


"Survival of the fittest” [A sobrevivência do mais apto] em tempos de crise capitalista fundamental

Mas seria também demasiado unilateral avaliar o movimento do pós-crescimento só com o critério geral da crítica da economia. Pelo contrário, este movimento exprime uma atitude psico-social que oferece à classe média ameaçada pela queda uma válvula para canalizar o seu asselvajamento ideológico. Por trás da idéia de um regresso da produção a uma economia cooperativa e de subsistência, através de "trapalhadas monetárias" (Marx) na circulação hipostasiada, está o pavor do sujeito de classe média de perder as últimas sinecuras; um medo que confere à utopia pequeno-burguesa de um liberalismo de quintal implicações ameaçadoras.

Abstraindo do facto de que a relação social de mediação não pode ser simplesmente quebrada local e particularmente – nessa medida é apenas lógico que a troca de mercadorias e o Estado ainda vão continuar a existir numa economia pós-crescimento –, a tentativa de regular os mercados financeiros e de substituir a produção pela auto-suficiência faria paralisar repentinamente a produção social e levaria a um estado de excepção. A "saudável redução" à "verdadeira naturalidade" do ser humano provocaria uma queda no abismo, executada pela administração da crise, o que parece que se abre cada vez mais também como opção para a classe média de esquerda.

Isso vê-se na diferença entre Gesell e Paech: se Gesell ainda se refere positivamente a um conceito naturalizado de valor, como apologia dos proprietários de mercadorias contra os proprietários do dinheiro (o retorno da economia à natureza humana enquanto "dinheiro livre e terra livre"), isto já não é possível para o sujeito de crise pós-moderno, uma vez que a sua reificação naturalizada como sujeito da socialização da dissociação-valor esbarra na barreira histórica interna desta "natureza" aparente. Por outras palavras: se A Ordem Económica Natural de Gesell ainda via no regresso da economia à "natureza humana", através da abolição do juro, a condição de possibilidade da continuação da acumulação, a crise fundamental suspendeu tal opção, pelo que não desistir do crescimento nas actuais condições pode estar bastante conforme com o postulado de uma sociedade sem crescimento. (12) Assim, enquanto Gesell ainda pôde bater-se pelo lado do proprietário da mercadoria, Paech perdeu aqui qualquer chão debaixo dos pés. O motor do crescimento económico do juro é completado pelo motor do crescimento cultural pelo lado da procura, pelo consumo, que reforça ainda mais a dependência do juro.

Por trás do conceito de natureza do movimento pós-crescimento espreita assim a natureza do sujeito da economia de crise, a sua corporalidade como mero portador da força de trabalho, situação em que este, com o processo de desvalorização da substância do valor social global, corre o risco de se tornar tão supérfluo como qualquer outro; "Vida nua" (Agamben), tornada disfuncional e, nesse sentido, "que não pode ser morto, mas pode ser oferecido em sacrifício". Em Paech o que no valor, definido como símbolo económico (juro) e cultural (o consumo como símbolo de status), aponta para a "naturalidade" do ser humano, é um ponto de viragem ao qual o culturalismo pós-moderno em si de modo nenhum está imune: a viragem do happening cultural no pólo complementar escondido da naturalização. A dialéctica das "relações da sociedade com a natureza" não se pode desconstruir facilmente.

"Saudável redução", portanto, é literalmente uma expressão perfeita; o movimento pós-crescimento, de facto, trata do corpo e da vida. Uma vez que o regresso à naturalidade corresponde à restauração da "soberania" e da "responsabilidade individual", nesta utopia negativa todos aqueles que não se consideram capazes estão em maus lençóis. Na medida em que a "vida nua" supérflua pôde ganhar mais peso no processo de desvalorização, ampliou-se entretanto na consciência de classe média (de esquerda) um consenso, já nem sequer tácito, sobre quem tem que ser primeiro "liberto da fartura". Especialmente descarada se apresenta neste contexto a antologia editada por Angelika Zahrnt e Irmga Seidel Postwachstumsgesellschaft: Neue Konzepte für die Zukunft [Sociedade pós-crescimento: novas concepções para o futuro]. Sobretudo o artigo de Hans-Peter Studer Gesundheitswesen als kosteneffizientes Solidarsystem mit Eigenverantwortung [Sistema de saúde como sistema solidário de baixo custo com responsabilidade individual] quebra a este respeito quaisquer barreiras de inibição.

Relativamente à questão do custo dos medicamentos e do tratamento do cancro, Studer faz uma comparação estranha, mas não menos clara: "Os avanços na tecnologia médica abrem (...) constantemente novas possibilidades de diagnóstico e de tratamento, no interesse da saúde e da qualidade de vida de muitos/as pacientes. No entanto, isso tem o seu alto preço não só directamente, mas também indirectamente: algumas das conquistas médicas, incluindo novos medicamentos, vendo melhor, trazem apenas melhorias insignificantes ou não trazem mesmo melhoria nenhuma. Eles permitem, por exemplo, diagnósticos mais precisos, mas sem que as correspondentes opções de tratamento estejam disponíveis; ou uma terapia para tratamento do cancro traz apenas (!) um pequeno ganho em meses de vida, enquanto que custa uma fortuna. No entanto, estes novos métodos e técnicas (...) são usados numa quantidade que não beneficia realmente muitos pacientes, mas apenas eleva os custos às alturas (!)." O que é um pequeno ganho em meses de vida quando já falta o carvão?

Feita esta decisão de princípio, Studer apresenta-se como acabado filósofo da vida que sabe como responder à questão da doença e da saúde com refinamento dialéctico. O preto faz parte do branco, a luz da sombra e a doença também poderia ser vista como um caminho para a recuperação. "Um importante ponto de partida para isso é a educação. Em cursos para os pais (...), bem como em acções de formação para os desempregados (!) e cursos de integração para estrangeiras e estrangeiros (!) devem ser mostradas na teoria e na prática as várias maneiras como a própria saúde pode ser activamente promovida. (...) É importante (...) reconhecer que as doenças fazem parte da vida e que até podem – como no caso da febre – ajudar (!) a fortalecer a saúde." E a moral da história deste paternalismo liberal com conotações racistas? "Uma atitude diferente perante a vida e a morte, se se espalhar entre a população, também ajudará a reduzir os serviços de saúde e os custos associados."


Feminismo e Economia: entre ecologia feminista e a desconstrução queer

A reconstrução imanente do conceito de natureza no sentido da teoria do pós-crescimento concentrou-se até aqui na "natureza do valor" ontologizada do sujeito da circulação, escamoteando a sua paradoxal crítica do juro como afirmação do sujeito do mercado que esconde a sua condição constitutiva, nomeadamente da produção e valorização do "trabalho abstracto", insistindo a análise apenas no plano da "Crítica da Economia Política", ou seja, dentro da forma androcêntrica do pensamento. Mas como o valor só pode subsistir através da dissociação do feminino posto como inferior, numa dialéctica social global de iguais originalidades e que se consuma no mesmo nível de abstracção, também a forma androcêntrica de pensar só se pode manter pela dissociação da "natureza feminina" em sua constituição racional. Se Paech invoca a "soberania do indivíduo", que terá recuperado a sua verdadeira força nos quintais e na auto-suficiência artesanal, isto evoca o auto-entendimento androcêntrico que atravessa o movimento do pós-crescimento quase como um todo. Pelo que a crítica feminista no movimento pós-crescimento é um anátema – com uma excepção.

Mais uma vez o movimento do pós-crescimento se alinha assim por uma tradição liberal, cujo conceito de natureza se baseia no controlo da mesma, situação em que a dominação compulsiva da natureza, como se vê nas formas de pensamento androcêntricas, é categorialmente mediada por um conceito de natureza codificado como feminino dissociado, cuja "indomabilidade" e "irracionalidade" aponta para o seu carácter projectivo e reprimido. Assim, por exemplo, se incorpora o conceito de natureza da filosofia transcendental de Kant, na aparência sexualmente neutro, nos ataques sexistas do iluminista (13), que não se podem entender sem aquele, tal como a reconstituição da natureza do sujeito do valor através do "dinheiro livre" e da proibição do juro em Gesell também está relacionada com a redução das mulheres a meras máquinas parideiras, cuja subsistência seria garantida por uma pensão do Estado. Embora tais sexismos não ocorram na literatura pós-crescimento, o negligenciar da reprodução e a redução do conceito de natureza à forma do valor apontam, no entanto, para a sua infraestrutura dominadora da natureza e androcêntrica.

Esta circunstância foi então submetida à referida excepção de uma crítica, uma antologia da AG Gender Attac, com o título de Schneewittchen rechnet ab. Feministische Ökonomie für anderes Leben Arbeiten und Produzieren [Branca de Neve faz as contas. Economia feminista para viver, trabalhar e produzir de outra maneira]. Embora os textos deste volume critiquem tanto a obnubilação do domínio da reprodução como a ideia de sujeito de lonely hero [herói solitário], que não raramente está subjacente à crítica do consumismo, o seu conteúdo permanece em grande parte pouco claro com relação a uma "economia feminista". O volume, surgido a partir de um congresso, combina entrevistas, exposições de pontos do congresso artisticamente concebidas, poemas e discussões em painel; conscientemente, é claro, para fazer justiça à heterogeneidade e diversidade dos participantes, de certo modo performativamente. Uma diversidade de forma que se reflecte nas posições substantivas das autoras, que  integram uma gama desde o feminismo ecológico (incluindo Christa Wichterich), passando pelas feministas queer, até a feministas orientadas pela critical whiteness [branquitude crítica (a)]. Até a forma da antologia frustra assim os esforços de uma análise teórica, juntando-se ao "tabu da abstracção no feminismo" (Roswitha Scholz),  cuja aplicação amplamente pós-moderna se continua a espalhar também na esquerda radical. Se sondarmos as poucas contribuições que fazem jus ao título do volume, entre as quais fetichistas do quotidiano-existencialistas e performativas-artísticas, logo vem à luz nelas aquela dificuldade do fetichismo sexual, cujo princípio formal não se pode apreender imediatamente no plano da aparência, mas sofre uma modificação pela mediação empírica: se o valor surge de facto como o universal (no plano material o "trabalho abstracto" e a forma Estado), a dissociação, pelo contrário, aparece (no plano material das actividades de reprodução dissociadas) como substrato meramente secundário, tratando-se justamente por isso de reconstruir o processo de "dissociação-valor", para decifrar o recalcamento constitutivo da dissociação como pré-condição dinâmica da universalidade na aparência sexualmente neutra do capital,  que na verdade é androcêntrica.

Se, no entanto, a separação de produção e reprodução é vista como um contexto derivado – como é claramente o caso nas referidas contribuições – a revalorização das actividades dissociadas só pode ser feita de duas maneiras, sendo que ambas apontam uma para a outra e continuam igualmente deficitárias: ou as actividades de reprodução são elas próprias expressas através das categorias imanentes ao valor, por exemplo, sendo determinadas como uma "contribuição" que as mulheres têm de prestar além do trabalho assalariado, o que leva a uma distorção da concorrência entre os sexos, ou figuram como uma "poupança" que funcionaria como inibidora da inovação, porque assim as mulheres seriam afastadas do trabalho assalariado e portanto do consumo. Ou então as actividades reprodutivas funcionariam na forma de um não-idêntico contingente, como contraponto emancipatório do valor, como Christa Wichterlich dá a entender no painel de discussão. Em ambos os casos se passa ao lado da "forma de dissociação-valor ", enquanto transmitidos com igual originalidade e localizados no mesmo nível de abstracção.

Isto pode ser devido, principalmente, ao esforço evidente para apresentar uma publicação adequada ao senso comum, pelo que as várias contribuições não só transbordam de um optimismo notório, mas também se aconchegam a uma tendência social geral que se acomoda perfeitamente ao "asselvajamento do patriarcado na pós-modernidade" (Roswitha Scholz). Assim diversas autoras valorizam a quota de mulheres como um progresso imanente da emancipação, sem que este instrumento inteiramente conservador seja enquadrado no seu contexto histórico real que sugere, de facto, que a quota androcentricamente outorgada às mulheres no trabalho assalariado não por acaso se tornou socialmente aceitável justamente em tempos de crise fundamental. A intensificação assim induzida da "dupla socialização" (Becker-Schmidt) das mulheres é o primeiro passo para a delegação da crise nelas, que têm de arcar como "pau para toda a obra" (b) com a erosão tanto das actividades de produção como das de reprodução. A utopia negra do movimento do pós-crescimento revela-se, assim, como muito realista – como antecipação da administração da crise por parte da classe média em declínio.



NOTAS



NOTAS DO TRADUTOR

(a) Tradução arriscada, dado o pouco desenvolvimento dos whiteness studies / critical whiteness studies em língua portuguesa (Nota do tradutor)

(b) A expressão idiomática alemã usada, eierlegende Wollmilchsau, diz literalmente “a porca que põe ovos e também dá lã e leite” (Nota do tradutor)


Original Liberalismus in der Fundamentalkrise: Eine Kritik der „Postwachstumsbewegung” in www.exit-online.org. Publicado com alterações na revista Phase 2 Nr. 49/2014 com o título Postwachstum‘ oder die Krise der Vernunft – zu einem Syndrom liberaler Fortschrittslosigkeit [Pós-crescimento ou a crise da razão – para uma síndrome da ausência de progresso neoliberal]. Tradução de Boaventura Antunes 01/2015